POR BRANKO MARCETIC
TRADUÇÃO
CAUÊ SEIGNER AMENI
Via Jacobina
A Flotilha Global Sumud rompeu parcialmente o bloqueio israelense a Gaza, provocando uma resposta global que desencadeou indignação e represálias de vários governos. É um dos atos de desobediência civil mais bem-sucedidos da história recente.
Ontem, forças israelenses interceptaram a Flotilha Global Sumud (GSF), que passou o último mês navegando pelo Mar Mediterrâneo para entregar ajuda humanitária a Gaza, bloqueando e interceptando os barcos a dezenas de quilômetros da costa do território e prendendo sua tripulação. Trata-se da mais recente operação de uma força militar que passou os últimos dois anos lutando contra mulheres e crianças desarmadas, e agora está mobilizando sua marinha contra barcos de ajuda humanitária.
Até esta manhã, Israel havia apreendido todos os barcos, exceto dois, levando centenas de cidadãos estrangeiros sob custódia e agendando a deportação de alguns. Incrivelmente, no final da noite passada, um dos barcos, o Mekino, conseguiu chegar às águas de Gaza, a cerca de vinte quilômetros da costa do território ocupado, embora os organizadores tenham perdido contato com o barco e sua posição no rastreador oficial da GSF não tenha se alterado.
Se essa geolocalização se provar correta, será um triunfo impressionante: barcos desarmados, que até mesmo a tripulação da flotilha descreve como quase inoperantes, conseguiram romper o bloqueio israelense. Isso levanta a questão, como colocou a relatora especial da ONU, Francesca Albanese, “por que os Estados não rompem o bloqueio com suas marinhas”, para aliviar a fome em Gaza, causada por Israel e condenada por governos do mundo todo?
A confusão reinou quando embarcações israelenses começaram a cercar e abordar os barcos na noite passada, até mesmo entre a tripulação da flotilha. Dividida entre mais de quarenta barcos espalhados por quilômetros de água e sofrendo apagões de comunicação enquanto navios israelenses tentavam detê-los, a própria tripulação frequentemente não sabia exatamente o que estava acontecendo. Mesmo com relatos surgindo durante a noite de que o navio líder, o Alma — cuja tripulação incluía a ativista sueca Greta Thunberg, talvez a militante mais destacado da flotilha — estava sendo interceptado, os membros da tripulação expressaram incerteza em vídeos transmitidos ao vivo se ele havia sido abordado ou não, quantos navios israelenses havia, se estavam parados ou se movendo em direção à flotilha, entre outros detalhes.
Com a chegada da notícia da interceptação do Alma, o editor do Drop Site News, Alex Colston, a bordo do barco Sirius, relatou ter recebido um aviso do exército israelense de que a flotilha estaria violando um “bloqueio legal” se continuasse sua viagem e que sua tripulação seria processada sob a lei israelense. Imagens de vídeo e relatos circularam sobre navios israelenses disparando canhões de água e usando algum tipo de explosivo contra os barcos, além do uso de drones.
A GSF tinha um pressentimento de que Israel se preparava para interceptá-los na noite anterior, quando vários navios da Marinha israelense atacaram a frota na calada da noite. “Enquanto escrevo isto, estamos nos preparando para um ataque iminente”, escreveu David Adler, co-coordenador geral da Internacional Progressista que navega a bordo do navio Family, em uma mensagem final.
A tripulação se desfez de suas facas de cozinha e planejou jogar seus celulares no mar ao ser interceptada. Imagens dos barcos mostravam tripulantes vestidos com coletes salva-vidas sentados pacificamente enquanto aguardavam a captura, levantando as mãos ao serem cercados por navios israelenses. “Quando eles abordarem nossos barcos, não resistiremos”, escreveu Adler.
“Israel declarou efetivamente guerra contra metade do mundo.”
Israel passou semanas antes da interceptação ameaçando física e verbalmente a flotilha, atacando-a e assediando-a com drones de fabricação norte-americana e lançando alegações absurdas de que ela havia sido organizada e dirigida pelo Hamas. Foi a típica propaganda de má qualidade que caracterizou o genocídio como um todo, com o Ministério das Relações Exteriores de Israel, em determinado momento, compartilhando uma imagem do ex-político escocês George Galloway, que, segundo ele, era um oficial do Hamas.
Embora Israel nunca tenha oficialmente reivindicado a autoria dos ataques de drones, um funcionário do governo Trump admitiu sem querer, em uma entrevista recente, o que todos sabiam: que Israel estava por trás do ataque de drones na Tunísia, o que significa que foi quase certamente o culpado pelo mesmo assédio de drones à flotilha nos dias seguintes.
No momento da redação deste texto, com os detalhes ainda sendo divulgados, a interceptação da GSF parece ter ocorrido com, notavelmente, pouca violência, em contraste com interceptações israelenses anteriores, que incluíram múltiplos assassinatos de outros membros da flotilha humanitária por comandos navais israelenses. Isso apesar de o governo israelense ter passado semanas construindo, ainda que preguiçosamente, um caso orquestrado de que a tripulação era composta por membros do Hamas, e apesar do exército israelense ter sido autorizado, nos últimos dois anos, a atacar e assassinar trabalhadores humanitários internacionais impunemente.
Provavelmente, isso se deve à enorme atenção pública dada à flotilha. A indignação pública com a iminência de um ataque israelense atingiu um ponto que levou três aliados dos EUA — Itália, Espanha e Turquia — a enviar seus próprios navios de guerra para acompanhar a frota. Protestos eclodiram em todo o mundo em solidariedade à flotilha. Somente a transmissão ao vivo da interceptação da frota recebeu mais de três milhões de visualizações em doze horas, o mesmo número que uma transmissão ao vivo italiana separada havia acumulado até o momento da publicação.
Águas desconhecidas
Vale a pena refletir sobre o quão anormal e extremo é tudo isso. As águas sobre as quais Israel supostamente tem controle, incluindo a Faixa de Gaza ocupada, estendem-se a doze milhas da costa; a flotilha foi interceptada pela primeira vez a cerca de setenta milhas náuticas de distância. Mesmo que o cerco israelense a Gaza não fosse ilegal — o que é — Israel ainda não teria o direito, seja pelo direito internacional ou pelas normas de comportamento globalmente aceitas que regem a atuação dos países no cenário mundial, de interceptar esses barcos e prender sua tripulação onde o fizeram.
Há também o fato de quem Israel vem atacando. As nacionalidades da tripulação da GSF abrangem 6 continentes e quase 60 países, e seus barcos navegavam sob as bandeiras nacionais de países como Itália, Portugal, Polônia e Reino Unido, todos com cidadãos a bordo.
Parafraseando um membro da tripulação da GSF, isso significa que Israel declarou, efetivamente, guerra a metade do mundo — a ponto de três Estados supostamente amigos sentirem a necessidade de mobilizar suas próprias marinhas para defender seu povo contra o Exército israelense. Trata-se de um acontecimento notável que, se não tivessem abandonado seus cidadãos no último minuto, teria colocado esses governos na posição de, como disse a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, “declarar guerra contra Israel”.
Mas não se trata apenas de metade do mundo. Trata-se também de um leque de aliados e parceiros de segurança dos EUA. A lista de países participantes não inclui apenas países do Norte da África e do Oriente Médio, tradicionalmente mais simpáticos à causa palestina, como Argélia, Jordânia e Tunísia. Inclui também parceiros de segurança próximos dos EUA, como Paquistão e Arábia Saudita, e nada menos que 24 aliados de tratados de Washington — ou seja, países pelos quais os EUA são legalmente obrigados a entrar em guerra se forem atacados — abrangendo a Oceania (Austrália e Nova Zelândia), a Ásia (Filipinas, Turquia e Japão) e mais de uma dúzia de aliados europeus da OTAN, como Espanha, França e Alemanha.
Inclui também os próprios EUA, cujos cidadãos estavam representados na flotilha. No entanto, o governo norte-americano se recusa a fazer um gesto para protegê-los e não ofereceu nenhuma resposta aos ataques em águas internacionais. Também está representado o Catar, ao qual Donald Trump concedeu unilateralmente, ontem, proteção equivalente à da OTAN, horas antes de seus cidadãos serem ameaçados ilegalmente por Israel pela segunda vez em um mês. A ordem de Trump prometia ajudar o Catar, militarmente se necessário, em caso de qualquer ataque à sua “soberania” ou ato de “agressão estrangeira” contra ele.
Há apenas uma semana, o Catar alertou que “qualquer violação do direito internacional e dos direitos humanos dos participantes da flotilha”, incluindo “detenção ilegal”, “levaria à responsabilização”, um apelo reiterado após a interceptação. O Catar quase certamente não invocará a garantia de segurança concedida às pressas por Trump, embora pudesse, e o governo Trump deveria se considerar sortudo: se o fizesse, teria que admitir, a contragosto, que a garantia não tem sentido.
Em outras palavras, este é o incidente mais recente em poucas semanas em que o comportamento renegado de Israel abalou a confiança global no sistema de segurança dos EUA, que cada vez mais parece ter um enorme asterisco em forma de Israel anexado a ele.
É um comportamento renegado de Israel. É difícil imaginar qualquer ato comparável de um país considerado adversário dos EUA, ou mesmo um Estado desonesto, que tenha ameaçado abertamente cidadãos de dezenas de países envolvidos em comportamento lícito e pacífico em águas internacionais e mobilizado suas forças armadas contra eles — porque simplesmente não há nenhuma. Se o Irã ou a Coreia do Norte fizessem o que Israel está fazendo atualmente, haveria apelos públicos à guerra.
Isso não é exagero. Proteger a “liberdade de navegação” foi exatamente o raciocínio usado pelos governos Biden e Trump para justificar publicamente sua guerra ilegal contra o Iêmen, depois que os houthis, no poder, começaram a atacar a navegação comercial no Mar Vermelho. No entanto, aqui está Israel fazendo exatamente a mesma coisa no Mediterrâneo, afirmando o direito de atacar qualquer embarcação civil em águas internacionais que, sem fundamento, declare ser uma ameaça.
As consequências estão chegando rapidamente. A Colômbia, governada pelo presidente de esquerda Gustavo Petro e cujos dois cidadãos foram detidos por Israel, expulsou todos os diplomatas israelenses restantes no país e encerrou o acordo de livre comércio entre os dois Estados. Na Turquia, de onde 24 cidadãos foram detidos, o procurador-geral em Istambul abriu uma investigação onde o Ministério das Relações Exteriores do país chamou de “um ato de terror”.
A Espanha convocou o principal representante de Israel para uma reprimenda. Vários países cujos cidadãos foram sequestrados reagiram com indignação, como a Malásia, cujo primeiro-ministro afirmou que “as injustiças perpetradas pelo regime israelense devem cessar imediatamente” e prometeu tomar “todas as medidas legais para responsabilizar Israel”. Talvez o mais significativo seja o fato de os sindicatos italianos, incluindo o maior do país, terem convocado uma greve geral para sexta-feira em solidariedade a GSF.
Mas talvez, acima de tudo, a interceptação da flotilha seja uma demonstração extraordinária de até onde o governo israelense está disposto a ir para continuar matando palestinos de fome.
A Marinha israelense está fazendo isso tudo — aprofundando seu isolamento global, inflamando a opinião pública entre países amigos e arriscando alienar ainda mais os eleitores de seu principal benfeitor político — para impedir que qualquer possibilidade de um pingo de ajuda externa chegue em Gaza, algo que não tem impacto em suas operações militares contra o Hamas e que, na verdade, prejudica seu próprio povo, que permanece cativo no território assolado pela fome. O governo israelense está mostrando que nada, nem suas relações com outros países, nem a vida de seus próprios cidadãos, é mais importante do que sua capacidade de continuar exterminando gradualmente a população de Gaza.
Os EUA e seus aliados continuarão, estranhamente, a apoiar um Estado estrangeiro que se comporta cada vez mais como um pária global e que, ao mesmo tempo, insulta e desafia abertamente seu país?
é escritor da redação da Jacobin e mora em Toronto, Canada.
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