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A outra catástrofe: Genocídio e fome no Sudão

5 de maio de 2025

Traduzido do original árabe publicado no Al-Quds al-Arabi em 22 de abril de 2025. Publicado no blogue do autor. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

A guerra no Sudão só tem dois desfechos possíveis: Ou as Nações Unidas assumem finalmente a sua responsabilidade, ou o país caminha para a divisão.

Passaram-se dois anos desde que eclodiu a guerra no Sudão entre as duas facções do regime militar que o país herdou do infame Omar al-Bashir. Embora a situação no Sudão não receba nem um décimo da atenção da mídia a nível mundial que a guerra genocida sionista em curso em Gaza recebe, a escala da catástrofe humana é igualmente horrível. Estima-se que o número de mortos da guerra entre militares seja superior a 150.000, enquanto o número de pessoas deslocadas ascende a cerca de 13 milhões e o número dos que estão ameaçados de fome grave atinge os 44 milhões - um número recorde que faz da guerra no Sudão a maior crise humanitária do mundo atual.

É claro que é fácil compreender os fatores geopolíticos que fazem da guerra travada por Israel em Gaza e no resto do Oriente Médio uma grande preocupação internacional, para não falar da invasão russa da Ucrânia. No entanto, a inclinação racista que domina a ideologia “espontânea” global não pode ser negada. Esta sempre fez com que o grau de atenção da mídia global às guerras fosse inversamente proporcional ao grau de negritude da pele dos envolvidos. Um exemplo notável é a guerra de cinco anos na República Democrática do Congo (Congo-Kinshasa), entre o verão de 1998 e o verão de 2003, que causou cerca de seis milhões de vítimas diretas e indiretas. Fora da África Subsariana, o mundo fechou os olhos aos acontecimentos no Congo, ao mesmo tempo que prestou muito mais atenção a acontecimentos com um número de mortos muito inferior, como a Guerra do Kosovo (1999), os ataques da Al-Qaeda a Nova Iorque e Washington (2001), a subsequente intervenção dos EUA no Afeganistão e a posterior ocupação do Iraque pelos EUA (2003).

Em geral, as guerras em que não participam diretamente soldados brancos do Norte global - estadunidenses ou europeus, incluindo, naturalmente, os russos - recebem muita pouca atenção global. É o caso do Sudão, que assiste a uma guerra entre duas partes exclusivamente locais, ainda que alimentada por partes regionais, nomeadamente através do seu apoio à milícia genocida das Forças de Suporte Rápido. O papel mais perigoso neste contexto tem sido desempenhado pelos Emirados Árabes Unidos, em aliança com um ator global, a Rússia. Trata-se da mesma dupla que desempenhou o papel principal no apoio a Khalifa Haftar na guerra civil líbia.

A verdade, porém, é que os países ocidentais, mesmo que não tenham tido um papel direto na guerra do Sudão, são os principais responsáveis pelo que aconteceu ao país. O enviado especial das Nações Unidas para o Sudão, desde o início de 2021 até à sua demissão em setembro de 2023, o alemão Volker Perthes, desempenhou o papel de “homem branco” na sua missão, com um cheiro a colonialismo, e agiu de forma desastrosa, desrespeitando os princípios a que os ocidentais devem aderir, talvez por acreditar que os sudaneses não são dignos de democracia.

Quando o golpe de Estado liderado por Abdel Fattah al-Burhan, que interrompeu o processo democrático resultante da revolução de 2019, ocorreu no outono de 2021, foi durante o mandato de Perthes como enviado da ONU ao país. Perthes procurou reconciliar os militares e a liderança civil que tinham derrubado, em vez de tomar uma posição firme contra os golpistas e apelar à comunidade internacional para que exercesse a máxima pressão sobre eles para que regressassem aos seus quartéis e permitissem a continuação do processo democrático. Esta complacência para com os militares e a tentativa de os reconciliar com os civis, em vez de tomarem uma posição dura contra o seu golpe de Estado, encorajou-os a cobiçar a manutenção do seu controlo total sobre o país. Esta situação levou, dois anos mais tarde, à eclosão de combates entre as duas fações das forças armadas, as forças regulares e as Forças de Suporte Rápido, cada uma delas disputando o controlo exclusivo do país.

A realidade é que a guerra no Sudão só tem dois desfechos possíveis: Ou as Nações Unidas assumem finalmente a sua responsabilidade, organizam a intervenção de forças internacionais, impõem um cessar-fogo a ambas as partes beligerantes e obrigam-nas a retirar para os seus quartéis, deixando que o processo democrático prossiga e dando-lhe todo o apoio, incluindo os meios necessários para desmantelar as malfadadas Forças de Suporte Rápido e impor mudanças radicais às forças regulares sudanesas, convertendo-as de um exército de uma ditadura militar num exército sujeito à autoridade civil. Ou o Sudão caminha para a divisão, o que perpetuaria o domínio militar na sua parte oriental e permitiria às Forças de Suporte Rápido (anteriormente a milícia Janjaweed) impor o controlo total sobre a região de Darfur, permitindo-lhes continuar a guerra genocida racista que começaram a travar no início do século sob a liderança de Bashir (este recompensou-as em 2013, concedendo-lhes o estatuto oficial como uma fação das Forças Armadas Sudanesas).

Por último, no que respeita à grande tragédia do Sudão, é necessário assinalar também o fracasso da solidariedade internacional para com o povo sudanês afetado. Embora nos congratulemos com o enorme desenvolvimento testemunhado pelo movimento de solidariedade com o povo palestiniano contra a guerra genocida sionista em Gaza, não podemos deixar de lamentar a contínua dependência da solidariedade global da orientação da atenção mediática acima descrita. É extremamente urgente que surja um amplo movimento de solidariedade para com o povo do Sudão, em particular nos países ocidentais, mas também em todas as regiões do mundo, incluindo a região árabe, pressionando a intervenção das Nações Unidas para pôr termo a esta grande tragédia.