Voltar ao site

A remilitarização, pedra angular do novo projeto da Europa Potência

19 de setembro de 2025

Tradução: Equipe Radar Internacional


No último mês de março, a presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciava com grande alarido um plano para rearmar a Europa diante do perigo russo e da imprevisibilidade do histórico xerife norte-americano. Um novo aumento, sem precedentes, do gasto militar europeu: até oitocentos bilhões em quatro anos. Para isso, propõe-se flexibilizar as regras onipresentes de disciplina fiscal dos vinte e sete Estados-membros da União Europeia; serão favorecidos novos empréstimos aos Estados mediante a reforma do Banco Europeu de Investimentos (BEI) e, inclusive, será permitido que os governos desviem dinheiro destinado aos fundos de coesão para o gasto militar. O que nunca foi possível para construir uma Europa social agora é possível para construir uma Europa da guerra.


Há apenas cinco anos começava a legislatura europeia com a Eurocâmara declarando a emergência climática que deu lugar a justificativa política do chamado Pacto Verde Europeu; agora, a Comissão Europeia acaba de anunciar o rearmamento europeu. Assim, passamos da era do Pacto Verde para a militarização da economia europeia. Uma boa mostra de como a invasão russa da Ucrânia converteu-se em um elemento chave disruptivo para justificar uma reconfiguração da integração da União Europeia em perspectiva militar.


Mas nós nos equivocaríamos se pensássemos que as veleidades militaristas das elites europeias respondem a um sentimento conjuntural de insegurança diante da ameaça russa. Na realidade, é parte fundamental de um projeto estrutural de longo fôlego que pretende reorientar a União Europeia como potência em um contexto geopolítico de policrise, marcado por uma nova corrida de recolonização do mundo e agudização da competição interimperialista. Nesse contexto, a remilitarização da Europa tem vários papéis chave no novo projeto de UE-potência, tanto externos - falar a linguagem dura do poder no marco da necessidade de assegurar as rotas comerciais que permitem o abastecimento das matérias-primas essenciais que a Europa carece - como internos: construir um novo modelo de integração europeia já não mais baseado apenas no mercado, como também em aspectos securitários/militares; enquanto se empreende uma mudança de modelo produtivo mediante uma reindustrialização em chave militar. Mas vamos por partes.


A militarização como projeto de integração europeia


A União Europeia está submersa em uma crise existencial praticamente desde que perdeu o horizonte de um projeto de unidade política a partir das sucessivas derrotas em referendo do projeto de Constituição Europeia na França e nos Países Baixos. Um rechaço popular ao modelo de integração europeia, que não apenas não foi ouvido pelas instituições e elites europeias, como que, pelo contrário, acelerou o caminho das reformas estruturais com a máxima de que é melhor decretar do que perguntar. Na ausência de uma constituição política, foi aprofundado o constitucionalismo de mercado no conjunto das normas comunitárias, destacando o Tratado de Lisboa, que, embora não tenha formalmente o caráter de uma Constituição, foi construído como um acordo entre Estados com nível constitucional. Uma espécie de Constituição econômica neoliberal que consagrou as famosas regras de ouro: estabilidade monetária, equilíbrio orçamentário, concorrência livre e leal.


A aplicação do artigo 50 do Tratado de Lisboa, razão pela qual ocorreu a separação britânica da UE, produziu uma certa crise existencial em algumas instituições europeias que pareciam assistir impassíveis ao seu lento desmoronamento. Mas, justamente, a saída do Reino Unido do clube europeu abriu uma possibilidade até então bloqueada pelos britânicos: a integração militar. No seu discurso de 2016 sobre o estado da União, com o referendo do Brexit ainda recente, o ex-presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, rompeu o tradicional tabu europeu em questões militares para falar de um fundo de defesa comum, um “quartel-general europeu” e uma “força militar comum” para “complementar a OTAN”. Dessa forma, nos corredores de Bruxelas, abria-se espaço para a velha aspiração militarista, defendida ardentemente por uma França necessitada de um Exército europeu para velar por seus interesses neocoloniais em África.


No marco do 60 aniversário do Tratado de Roma e tendo o Brexit como pano de fundo, a Comissão Europeia apresentou o Livro Branco sobre o futuro da Europa, no qual se chamava a atenção sobre os perigos que a Europa supunha ser um “poder brando” em um contexto onde “a força pode prevalecer sobre a lei”. Um claro convite para reforçar o gasto militar para poder falar na linguagem dura do poder. Porque a Europa na carta que já desenhava o Livro Branco de Juncker tinha um menu muito concreto e reduzido: quem quiser e puder estar convidado a se somar a mais Europa nas áreas de defesa e segurança. Por fim, aí abria-se a porta para a integração militar.


Assim, ao menos oito anos antes do anúncio de Ursula von der Leyen sobre o plano de rearmamento europeu, a militarização da UE era já a grande (e, pelo visto, a única) aposta estratégica das elites europeias. Dessa forma, começa-se a se desenvolver a “cooperação reforçada” entre os Estados membros, com o objetivo de criar um Fundo Europeu de Defesa, uma indústria militar e armamentícia comum e uma maior coordenação policial e militar, com o tão anunciado Exército europeu como horizonte. Um plano de integração militar europeu no qual emerge um conceito chave: a autonomia estratégica, que se converteu desde então em uma espécie de mana milagrosa para solucionar todos os problemas de uma UE sem projeto existencial.


A autonomia estratégica europeia era mais armas


Nesse contexto, chegamos a primeira Comissão von der Leyen, que inicia seu mandato trabalhando, dois anos antes da invasão da Ucrânia, no desenvolvimento do Strategic Compass, um plano de ação para reforçar a política de segurança e defesa da UE tendo como horizonte o ano de 2030. Aprovado finalmente pelos Estados membros em março de 2022, no contexto do início da guerra na Ucrânia, essa Bússola Estratégica foi adaptada rapidamente ao novo contexto e foi utilizada como justificativa de uma política decidida previamente: “Este entorno de segurança mais hostil nos obriga a dar um salto decisivo e exige aumentarmos nossa capacidade e nossa vontade de atuar, reforçarmos nossa resiliência e garantirmos a solidariedade e a assistência mútua”.


Dessa forma, o Strategic Compass repete várias vezes que “a agressão da Rússia à Ucrânia constitui uma mudança tectônica na história europeia” a qual a UE deve responder. E qual é a principal recomendação dessa Bússola Estratégica? O aumento do gasto e da coordenação militar. Precisamente em um contexto em que os orçamentos militares dos países membros da UE já presumiam mais de quatro vezes o da Rússia e onde o gasto militar europeu foi triplicado desde 2007. Dessa forma, no Conselho Europeu de Versalhes foi concretizado o aumento de 2% do PIB de cada Estado membro no gasto direto em defesa. O maior aumento dos orçamentos europeus em defesa desde a II Guerra Mundial até a recente proposta de rearmamento europeu. Nesse sentido, o então presidente do Conselho, Charles Michel, declarou sem rodeios que a invasão russa da Ucrânia e essa reação orçamentária da UE haviam “consagrado o nascimento da defesa europeia”.


Embora a proposta de resgatar o projeto de integração da UE em torno da remilitarização da Europa seja um processo que leva anos, ninguém pode negar que a invasão da Ucrânia o acelerou e, sobretudo, o legitimou socialmente. Sem a autêntica doutrina do choque, endereçada com um forte sentimento de insegurança que se impõe aos países membros da UE, seria impensável impulsionar aumentos orçamentários militares dessas características sem um forte rechaço social e eleitoral. Como afirmou von der Leyen poucos dias depois da invasão russa da Ucrânia, a UE havia avançado mais em matéria de segurança e defesa comum “em seis dias do que nas últimas duas décadas”, em referência ao desbloqueio de 500 milhões de euros de fundos comunitários para equipamento militar para a Ucrânia.


Militarização e agressividade comercial


Uma visão da defesa europeia reunida no Strategic Compass que já não se baseia na manutenção da paz, mas sim na proteção de infraestruturas críticas, a segurança energética, o controle de fronteiras e a proteção das “rotas comerciais chave”. Isto é, proteger os interesses europeus assegurando a “autonomia estratégica” da UE. Nesse sentido, o interesse das elites europeias em falar na linguagem dura do poder está intimamente relacionado com a nova agressividade neocolonial e extrativista verde da UE, que tem como objetivo assegurar o abastecimento de matérias-primas escassas e fundamentais para a economia europeia e sua suposta transição verde, em um contexto de aumento dos conflitos entre velhos e novos impérios.


Como afirma Mario Draghi: “Em um mundo em que nossos rivais controlam grande parte dos recursos de que necessitamos, devemos ter um plano para assegurar nossa cadeia de sobrevivência - desde os minerais essenciais até as baterias e a infraestrutura de recarga -”. A remilitarização europeia não deixa de ser o passo necessário para poder falar a linguagem dura do poder que assegure as matérias-primas e os recursos necessários para as empresas europeias.


Assim, a remilitarização europeia não pode ser dissociada do aumento da agressividade comercial, extrativista e neocolonial da União Europeia, para acelerar o passo na corrida imperialista pela disputa de recursos escassos. Neste marco inserem-se novos mecanismos de investimentos, como o Global Gateway. Um pacote de investimentos público-privados que pretende mobilizar 300 bilhões para tentar competir com o Belt and Road da China, isto é, a Nova Rota da Seda, com o que a UE aspira consolidar seu papel na ordem mundial, contrastando com o auge da presença chinesa em todo o mundo, especialmente nos setores relacionados com as infra-estruturas e conexões.


Dessa forma, a agenda de investimentos Global Gateway e a nova onda de acordos comerciais que a UE impulsionou nos últimos dois anos - renovação dos tratados com Chile e México, conclusão do acordo com o Mercosul, assinatura de parcerias estratégicas sobre matérias-primas com uma dezena de países - foi desenhada no marco da autonomia estratégica da UE com o claro objetivo de assegurar o acesso das transnacionais europeias aos recursos minerais dessas regiões. A competição global para se posicionar nos novos mercados verdes e digitais, frente a imparável hegemonia da China, está na origem da velocidade de cruzeiro com a que a UE impulsionou uma bateria de ferramentas para garantir uma disponibilidade segura e abundante desses minerais.


O impossível Pacto Verde Militar


Embora o Pacto Verde seja insuficiente e não represente plenamente as aspirações das mobilizações climáticas da juventude europeia, serviu de álibi necessário para relegitimar socialmente um desgastado projeto europeu. Especialmente desde a crise de 2008, com os mal-chamados resgates dos homens de preto da Troika, o golpe de Estado contra a Grécia do Syriza, a crise das pessoas refugiadas ou o Brexit. Nesse sentido, o Pacto Verde apareceu como a justificativa perfeita para dotar o projeto neoliberal europeu de uma nova legitimidade política e social, desta vez pintado de verde.


O Pacto Verde europeu não apenas foi uma forma de legitimação social da UE, como também um mecanismo para dirigir a transição do modelo produtivo europeu para novos nichos de negócios verdes e digitais para as multinacionais. Os fundos Next Generation, pintados de verde, converteram-se no carro-chefe da proposta europeia para sair da crise pós-pandêmica. Assim, pretende-se substituir um sistema energético fóssil por outro supostamente descarbonizado, como se bastasse virar a meia ao avesso, sem trocar o modelo econômico, as relações de poder nem as lógicas de exploração do território. De fato, o Pacto Verde não apenas se revelou como insuficiente, como que, como sobremesa, favoreceu um impulso da agressividade comercial da União Europeia e o extrativismo neocolonial, sob a justificativa de obter matérias-primas para a suposta transição ecológica.


Mas com a invasão de Putin na Ucrânia até o Pacto Verde saltou pelos ares: ninguém mais parece se lembrar da emergência climática; vale tudo quando estamos em guerra. Uma boa demonstração disso foi como a directiva “Da granja para a mesa”, a mais ambiciosa do Pacto Verde, converteu-se em mais uma vítima da guerra na Ucrânia. Inclusive o gás e a energia nuclear passaram, da noite para o dia, a ser consideradas energias verdes com o pretexto de romper com a dependência energética russa. Reativaram-se megaprojetos de gasodutos e deu-se uma nova vida para a energia nuclear. Dessa forma, a tão anunciada transição energética necessária para cumprir com os planos de descarbonização ficou sepultada sob as bombas. Mas a corrida armamentícia europeia, além de evidenciar o fracasso do greenwashing verde e digital, supõe uma aceleração rumo ao abismo da emergência climática, consumindo materiais essenciais e escassos - inclusive para assegurar uma transição ecossocial - que agora também serão utilizados nos planos de rearmamento europeu.


Uma reindustrialização armada


O rearmamento europeu e muito mais do que o aumento gasto militar: estamos diante de uma autêntica mudança de paradigma que pretende impulsionar não apenas o gasto armamentício, como também favorecer uma reindustrialização europeia em chave militar, como já defendeu o ex-presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, no seu informe Um plano para o futuro econômico da Europa. Nele afirma que na UE foi possível separar a política econômica das considerações de segurança e utilizar os “dividendos da paz” para perseguir outros objetivos de política pública, graças ao guarda-chuva de proteção dos Estados Unidos. Mas, em um novo contexto de policrise global, necessitamos “aprender a reagir em um mundo geopoliticamente instável, onde as dependências se convertem em vulnerabilidades e a segurança já não pode ser externalizada”.


Porque, como aponta o informe Draghi, 78% das compras europeias de material militar provém hoje de fora da UE, basicamente dos Estados Unidos (63% do total). Reduzir a dependência e aumentar a autonomia estratégica passa por reativar o complexo industrial-militar europeu. Como afirmou o então chanceler alemão, Olaf Scholz, na cerimônia de início das obras de uma nova planta produtora de munição do fabricante de armamento Rheinmetall: “Devemos passar da fabricação a produção em massa de armamentos”. Como defende o informe Draghi, o objetivo seria que, em 2030, pelo menos 50% das aquisições militares sejam formalizadas dentro das fronteiras da União e que 40% de todo material militar comprado seja desenvolvido conjuntamente entre vários países da UE”.


Nesse sentido, em março de 2024 a Comissão Europeia apresentou a Primeira Estratégia Industrial de Defesa, que pretende um ambicioso conjunto de novas ações para apoiar a competitividade e a preparação da indústria de defesa em toda a União. A finalidade primordial é melhorar as capacidades de defesa do bloco, promovendo a integração das indústrias dos Estados membros e reduzindo a dependência na aquisição de armamento fora do continente. Em resumo, preparar a indústria europeia para a guerra. Como afirmou von der Leyen no pleno do Parlamento Europeu: embora “a ameaça da guerra pode não seja iminente, mas também não é impossível”, e hora de que a “Europa dê um passo para a frente”.


Para responder a essas transformações, o informe Draghi propõe uma nova estratégia industrial para a Europa baseada, em particular, na plena realização do mercado único, no alinhamento das políticas industriais, comerciais e de concorrência, no aumento da taxa de investimento total em relação ao PIB até ao redor de 5% anual - cerca de 800 bilhões de euros em investimentos adicionais a cada ano - e a reforma da governança da União. Assim o constitucionalismo de mercado que imperou até agora com uma integração militar e securitária que pretende transformar a economia europeia para a guerra é complementado.


Um reforço ao federalismo oligárquico e tecnocrático da UE


Algumas transformações que apenas serão possíveis - continua o informe Draghi - introduzindo mudanças importantes na estrutura institucional e no funcionamento da União. Acelerando a concretização de mecanismos de decisão conjunta das instituições europeias para favorecer a união dos mercados de capitais da UE e poder atuar em melhores condições dentro da competitividade, cada vez mais intensa, com as outras grandes potências, estejam em declínio ou em ascensão, depois do final da globalização feliz. Um modelo que reforça o federalismo oligárquico e tecnocrático da UE.


Tudo isso em detrimento tanto do Parlamento Europeu como dos parlamentos estatais e, naturalmente, do respeito à soberania dos distintos povos. Um processo que está sendo facilitado pelo habitus do consenso que foi se estabelecendo na UE, no qual se trata de despolitizar as questões abordadas para reduzi-las a mera políticas sem política. Uma boa amostra dessa tendência foi o plano multimilionário de rearmamento que foi aprovado e será e será gerenciado à margem do escrutínio parlamentar da Eurocâmara.


Assim, Ursula von der Leyen decretou a excepcionalidade da situação, recorrendo, de forma bastante questionável, ao artigo 122 do Tratado de Funcionamento da UE para evitar o Parlamento Europeu. Uma acelerada militarização dos espíritos europeus via decreto que não apenas gozou do apoio unânime dos governos dos vinte e sete Estados membros, como também da quase totalidade dos grupos parlamentares europeus, quer mais além do questionamento sobre a sua forma de aprovação - pulando a Eurocâmara - foi celebrado o plano da Comissão para um rearmamento europeu. Um autentico consenso de guerra.


Um gasto público sem precedentes que ainda não está muito claro como será financiado. No momento, a partir da Comissão foi apontado o relaxamento das regras de controle orçamentário para permitir que o gasto militar não seja computado como déficit, a facilitação de novos empréstimos (permitindo um maior endividamento) e, inclusive, o desvio dos fundos de coesão. Mas todas são medidas a curto prazo e com um caráter conjuntural. Como assegurou a presidenta da Comissão, em algum momento os governos terão que reduzir seu déficit para voltar ao ajuste orçamentário. Porque a ativação da cláusula de flexibilidade orçamentária para aumentar o gasto implica rapidamente que, a médio prazo, terá que acomodar o orçamento, seja subindo os impostos ou reduzindo o gasto em outras partidas. Como já apontou em uma intervenção no Parlamento Europeu o secretário-geral da OTAN, Mark Rutte: “Os países europeus gastam facilmente até um quarto da renda inicial em pensões, saúde e políticas de seguridade social e só necessitamos de uma pequena fração desse dinheiro para reforçar muito mais a defesa”. A mensagem está clara: uma Europa social é incompatível com uma Europa da guerra.


A nova Europa em direção a Paris


Uma Europa da guerra que também muda de centro de poder, basculando de Berlim para Paris. Até agora, a locomotiva alemã havia sido, com seu superávit comercial, o indiscutível centro da Europa dos mercados. Agora, com a locomotiva gripada por falta de gás barato russo e diante do giro bélico da UE, a França adquire um protagonismo inusitado nos últimos anos. A indústria armamentícia francesa, com cerca de 20.000 empresas, que dão emprego a cerca de 200.000 pessoas, é a coluna vertebral da UE em matéria de defesa. De fato, Estados Unidos e França dominam atualmente as exportações mundiais de armas, já que Washington aumentou em 17% suas exportações entre 2014-2018 e 2019-2023 e Paris em 47% no mesmo período. Pela primeira vez, a França se posicionou à frente da Rússia na lista de maiores exportadores de armas do mundo, ocupando o segundo lugar, enquanto a Rússia ocupa o terceiro lugar.


Um dos grandes problemas para a autonomia estratégica europeia é a sua extrema dependência da indústria armamentícia norte-americana. No período 2020-2024, os países europeus da OTAN aumentaram em 105% as importações de armas, coincidindo com a guerra da Ucrânia e o aumento orçamentário em defesa. Cerca de 64% desse total foi fornecido pelos Estados Unidos, que é de longe o principal provedor europeu e que aumentou em 12% suas exportações armamentícias ao velho continente em relação ao período anterior. Aqui é onde a indústria armamentícia francesa pode ser um elemento-chave para reduzir a dependência de Washington: e a única com capacidade para tentar, a curto prazo, ocupar parte do espaço que atualmente ostentam os EUA.


Mas não é apenas a indústria militar que garante um elemento diferencial a França nesse contexto, como também o fato de ser o único país da UE com armas nucleares e assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Aqui também a França poderia tentar ocupar o espaço que os Estados Unidos podem deixar. Nesse sentido, Emmanuel Macron já propôs “um debate estratégico sobre o uso da dissuasão nuclear francesa” para estender a sua proteção aos aliados europeus, sugerindo a possibilidade de desenvolver armas nucleares francesas em um país aliado, de maneira similar ao que fez os EUA na Europa. Todavia, essas armas seguiriam sob controle exclusivo da França. O primeiro-ministro da Polônia, Donald Tusk, já declarou no parlamento polones: “Estaríamos mais seguros se tivéssemos nosso próprio arsenal nuclear”, argumentando como razão da sua preocupação diante da “mudança profunda da geopolítica estadunidense”. Mais do que propor que Varsóvia desenvolva uma bomba atômica, parecia responder à oferta de Macron sobre a necessidade de um debate estratégico sobre o uso da dissuasão nuclear francesa.


Desde que Macron alcançou a presidência francesa, há oito anos, seu objetivo tem sido ocupar o assento deixado por Angela Merkel de timoneiro europeu. Para isso, criou seu próprio grupo na Eurocâmara, propôs renovar os tratados europeus e, desde o começo, comprometeu-se com o conceito de autonomia estratégica na sua versão mais gaulesa. Em 2017, em um discurso na Universidade de Sorbonne, em Paris, afirmou: “Em matéria de defesa, devemos dar a Europa a capacidade de atuar de forma autônoma, complementando a OTAN”; em 2019 decretou a morte cerebral da OTAN e agora propõe um escudo nuclear europeu independente dos EUA, sob um guarda-chuva francês. Um projeto neo gaulês europeu em sério risco, quando o próprio Macron se encontra nos seus dois últimos anos de mandato, com uma importante instabilidade parlamentar e com um horizonte onde emerge a figura de Le Pen. Seguramente veremos como nos próximos meses Macron irá pressionar para avançar em decisões centrais antes que seu mandato termine.


A militarização dos espíritos europeus


A remilitarização converteu-se na pedra angular do novo projeto de Europa potência no marco da policrise global, complementando o constitucionalismo de mercado que tem imperado até agora com um pilar securitário mais reforçado em prol de uma suposta autonomia estratégica europeia. Mas o plano idealizado nos escritórios da Comissão Europeia tem um problema difícil de ser solucionado: a falta de ardor guerreiro da sua população.


Nesse sentido, o vice-presidente dos Estados Unidos, J.D. Vance, assegurou que já não existem os “exércitos vibrantes” de outrora, que “ao menos pudessem defender o seu território”, salvo algumas poucas “exceções”. Algumas semanas antes havia publicado na sua conta pessoal da rede social X: “Sejamos honestos: há muitos países que oferecem apoio, seja de forma privada, seja em público, mas que nao tem nem a experiência no campo de batalha nem a equipe militar necessária para fazer uma diferença real”... em referência ao oferecimento britânico e francês de enviar tropas para a Ucrânia. As diferentes declaraçoes de J.D. Vance desde a conferência de segurança de Munique, em fevereiro passado, colocaram o dedo na ferida, evidenciando o grande problema da defesa europeia: nem as sociedades nem os exércitos dos vinte e sete Estados-membros da UE possuem capacidade de sustentar um conflito armado. E enquanto não recuperarem essa capacidade, nenhuma política de rearmamento será crível. Como afirmou o então chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell: “Os exércitos europeus estão nos ossos”.


A desmilitarização da sociedade europeia, com a paulatina profissionalização dos exércitos e o desaparecimento dos serviços militares obrigatórios, tem sido uma tendência mantida desde a invasão da Ucrânia. Mais uma vez, a guerra da Ucrânia está servindo como álibi para empreender uma autêntica militarização dos espíritos europeus, que pretende restaurar os serviços militares como uma forma de assegurar uma força de reserva aos exércitos profissionais.


Desse modo, Donald Tusk anunciou os preparativos “para oferecer a cada adulto da Polônia um treinamento militar em grande escala e permitir a essas pessoas que se convertam em soldados de pleno direito em situações de conflito”. Na Itália, a Liga de Matteo Salvini apresentou ao Parlamento um projeto de lei para reintroduzir um serviço militar ou civil entre as pessoas de 18 a 26 anos durante seis meses, como uma espécie de serviço comunitário; enquanto isso, Alemanha, Holanda e Bélgica querem estabelecer incentivos econômicos e sociais para as pessoas jovens para que participem de um serviço militar voluntário, engrossando assim as listas de reservistas. Na França, Macron já propôs em 2017 recuperar o serviço militar, embora recentemente tenha apostado em um modelo como o alemão: reforçar o Serviço Nacional Universal voluntário, oferecendo incentivos para passar de 40 000 a 100 000 reservistas nos próximos dez anos.


Nesse sentido, o kit de sobrevivência lançado pela Comissão Europeia para que cada lar esteja preparado para sobreviver durante 72 horas sem ajuda externa diante de “agressões”, “catástrofes naturais”, “pandemias” ou “ciberataques” e uma boa amostra de como se constroem narrativas para treinar a população a viver com medo, sob a aparência de conselhos úteis. Um medo que pretendem que seja a gasolina que acenda o ardor guerreiro da população, para justificar o rearmamento europeu e voltar a encher os exercícios de voluntários. Uma autêntica militarização dos espíritos europeus que vai mais além do aumento do gasto militar e que supõe uma autêntica mudança de paradigma na Europa, que nos aproxima cada dia mais de um perigoso cenário de guerra.

Miguel Urbán, ativista, militante do Anticapitalistas e ex-deputado do Parlamento Europeu.