UMA ENTREVISTA DE Hugo Albuquerque
Via Jacobina
Burkina Faso revive hoje a experiência revolucionária dos anos 80, revisitando o legado de Thomas Sankara. Nesta entrevista exclusiva à Jacobina, conversamos com o militante sankarista Inoussa Ganbaaga para entender como jovens oficiais estão mudando a realidade na região, após alguns anos do levante popular contra o imperialismo ocidental.
O Armazém do Campo de São Paulo, sede do MST na capital paulista, recebeu a visita de delegações da África Ocidental para o evento Vozes da África: Revoluções Pan-Africanas Hoje e o Legado de Thomas Sankara, que ocorreu pouco mais de um ano após a formação da Confederação dos Estados do Sahel, colocando na mesa os desafios atuais das revoluções pan-africanas e a luta contra o neocolonialismo no continente.
Na ocasião, foi exibido em primeiro mão o documentário Sahel: pátria ou morte, dirigido e roteirizado por Pedro Stropasolas, sobre as visitas que a equipe do Brasil de Fato fez à região — falando como se desenrola a luta na região africana, assolada pelo colonialismo europeu, sobretudo francês, que operou diretamente por instrumentos internacionais como à Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao).
Muitos dos levantes populares dos últimos anos foram desacreditados pelo papel de jovens oficiais na proa do movimento, mas isso esconde o papel de intelectuais, feministas e velhos combatentes socialistas — os quais tiveram em Burkina Faso nos anos 1980, sob a liderança do revolucionário Thomas Sankara, um exemplo que resistiu ao seu covarde e brutal assassinato, com cumplicidade ocidental, que marcou o golpe contra a rápida experiência socialista no país.
Por essa razão, a Revista Jacobina falou com Inoussa Ganbaaga, de Burkina Faso, militante sankarista, membro do Comitê Memorial Thomas Sankara (Cimts) e participante dos Comitês de Defesa da Revolução entre 1983 e 1987.
HUGO ALBUQUERQUE: Como podemos avaliar a experiência do presidente Traoré? Qual a sua perspectiva sobre o socialismo em Burkina Faso?
INOUSSA GANBAAGA
O capitão Ibrahim Traoré, que chegou ao poder em 30 de setembro de 2022, não hesitou em exibir o caráter sankarista de suas origens, dando uma grande demonstração de apoio à revolução de Thomas Sankara nos anos 1980.
A primeira grande manifestação ocorreu em 2 de outubro daquele ano, que é a data da publicação do discurso de orientação política de Thomas Sankara. Isso já era um sinal para nós. E com o tempo, ele confirmou isso, seu governo publicou o discurso de orientação política e o distribuiu em escolas etc.
Traoré afirmou que o processo que ele lidera – e chama de revolução progressista e popular – tem inspiração na revolução democrática e popular de Thomas Sankara. Portanto, seu livro de cabeceira é o discurso de orientação política que ele adapta à situação atual. Porque há muitas coisas que mudaram muito.
“Empresas francesas estabelecidas na França, mas com filiais em Burkina Faso, que não pagavam impostos no nosso país, isso acabou. A partir de agora, as empresas pagam impostos em Burkina Faso se estiverem estabelecidas e operarem lá.
Traoré questionou completamente até, por fim, romper com os acordos militares com a França, aqueles mesmo que Sankara denunciou no passado. O exército francês deixou Burkina Faso. Não havia mais conselheiros militares franceses, eles partiram. Esse foi um ato extremamente importante.
O segundo ponto importante diz respeito a empresas francesas estabelecidas na França, mas com filiais em Burkina Faso, que não pagavam impostos no nosso país, isso acabou. A partir de agora, as empresas pagam impostos em Burkina Faso se estiverem estabelecidas e operarem lá.
Terceiro: desde 2023, não há embaixador entre Burkina Faso e a França. O embaixador foi deposto pelo povo e o governo seguiu a vontade popular. Portanto, a partir daquele ano, o encarregado de negócios tem administrado os assuntos. Burkina Faso também não tem embaixador. Traoré não hesita em tomar essas atitudes. Não há assunto tabu para ele.
A exemplo de Sankara, Traoré fala e discursa muito, com propósitos pedagógicos. Há muitas outras ações concretas que exigem mobilização popular e que ocorreram atualmente em Burkina Faso, tudo apoiado pela iniciativa presidencial na direção da construção da pátria.
Por exemplo, há uma iniciativa voltada para a reconstrução de estradas e rodovias e, também, para levar água às diversas regiões do país. São contribuições voluntárias que abastecem os estoques, o armazenamento e a mão de obra da iniciativa também. É a população que está se organizando. E eles vão trabalhar todos os dias: há homens, jovens, idosos, mulheres que vão trabalhar nisso.
Durante essas férias, ocorreu o que foi chamado de imersão patriótica. Mais de 60 mil formandos do ensino médio deste ano foram internados nas regiões, nas províncias, onde receberam o educação básica sobre o amor à pátria – essa conscientização dos jovens foi um ponto muito importante.
Durante os 27 anos do regime anterior, os jovens foram abandonados completamente à própria sorte. Ibrahim Traoré e sua equipe perceberam essa lacuna e quiseram corrigi-la, começando pelos jovens que precisam ir para a universidade. Mas essa imersão patriótica é importante inclusive entre os que conseguiam ir para a universidade, mas se envolviam em brigas de gangues e violência. E ela tem essa função pedagógica para se comportarem melhor.
O regime atual, que decretou uma revolução progressista e popular, está objetivamente seguindo os passos de Thomas Sankara que se tornou o grande herói nacional. Traoré assinou um decreto que consagrou Sankara com esse título e está implementando o projeto que ele iniciou – para simbolizar isso, foi construído inclusive um grande memorial para Sankara, que já está pronto.
HA
As sociedades da África Ocidental são muito complexas. Há a questão da relação entre cristãos e muçulmanos no interior do povo de Burkina Faso e com a própria revolução. Como funciona isso?
IG
Nós temos uma sociedade fortemente religiosa.
A maioria da população é muçulmana. Há católicos, cristãos evangélicos e todas as denominações, mas também há seguidores de religiões tradicionais africanas, os quais foram reconhecidos pelo Estado, que também lhes dedicou um dia de celebração, como o Natal ou o Tabaski.
E até o advento do terrorismo, não havia problemas em nosso Estado. Portanto, não havia dificuldades entre religiões. E nossas famílias são mistas. Em uma família, você pode ter tantos muçulmanos quanto cristãos, católicos em uma única família. E nós visitamos nossos parentes, mesmo de outra religião, nessas datas.
“O problema é o imperialismo, ele veio distrair nosso povo, bloqueando nosso desenvolvimento e para explorar melhor os recursos no nosso país.”
Por exemplo, em todas as celebrações de Tabaski, outras religiões vêm rezar para desejar boas festas aos muçulmanos. No Natal, muçulmanos e outras pessoas também vão à igreja e etc.. É assim que sempre agimos. Louvor não é um problema para nós, não é um problema de forma alguma.
O problema é o imperialismo, ele veio distrair nosso povo, bloqueando nosso desenvolvimento e para explorar melhor os recursos no nosso país. Se você observar onde a crise de segurança está se alastrando, essas são áreas onde existem enormes recursos minerais.
E entre os combatentes terroristas não há apenas os muçulmanos. O islamismo é a maneira de fazer isso, nós os consideramos, e essa é a verdade. Como bandidos sem lei que são manipulados pelo imperialismo na verdade. Quem quer destruir nossos países? Ibrahim Traoré disse isso muito bem, e na realidade, no país, não precisamos lidar com o terrorismo.
Se você observar o equipamento que os terroristas têm, deve haver um Estado por trás deles: eles têm bombas e meios para monitorar as posições de nossas forças. Não somos um país em guerra civil, é o imperialismo que nos ataca.
O terrorismo, por meio da cumplicidade do Ocidente, conseguiu recrutar o nosso próprio povo para esses grupos. Mas, hoje em dia, há cada vez menos cidadãos dos nossos países da África Ocidental. Os combatentes que lutam vêm de outros lugares como Ucrânia, Mauritânia, Afeganistão, Síria e etc.. Cada vez mais visivelmente, os combatentes que vêem não são o nosso povo. E o refúgio deles é a Mauritânia e a Argélia. Quando os atacamos, eles se refugiam lá e depois retornam.
Portanto, não estamos numa situação de guerra civil, e os grupos terroristas armados não têm outras exigências além de “convertam-se, convertam-se, não façam isso ou aquilo”.
HA
Hoje, nós também estamos aqui no Brasil sob uma ofensiva do imperialismo como vemos pela política de tarifas de Trump. Nesse sentido, o Brics aparece como uma alternativa anti-imperialista – como isso é percebido no Oeste Africano?
IG
Quando soubemos da criação do Brics, recebemos essa notícia como um contrapeso ao unilateralismo americano. Brasil, Rússia, China e países africanos se unindo… É definitivamente uma força que pode reequilibrar o jogo. E por esse entendimento, nós estamos fazendo o pedido oficial de adesão – que está em processo.
Nossos maiores aliados hoje em termos de segurança são a Rússia e a Turquia, mas em termos de desenvolvimento de infraestrutura é a China. Desde 2023, não houve mais ajuda orçamentária ou ao desenvolvimento pela França. Acreditamos que o Brics, com sua evolução, se tornará muito importante.
HA
E além do terrorismo no Norte de Burkina Faso, o que podemos dizer hoje do papel do presidente francês Emannuel Macron e da ameaça francesa?
IG
Macron, embora seja um ator-chave no jogo imperialista francês no país, tem sido um elemento positivo na aceleração da História. No passado, Macron não hesitava em dar ordens aos Estados da África Ocidental. Ele não sabia, nem entendeu, que esses jovens oficiais da região não tinham absolutamente nada a ver com os antigos jovens que a França conhecia. Em parte a França não sabe mais o que se passa nos nossos países porque não há muitos oficiais querendo lhe informar do que se passa.
Recentemente, Macron ordenou à Cedeao que impusesse sanções e, também, constituísse uma força militar para atacar o Níger, que passou por um levante popular. E ele disse isso abertamente, não escondeu. Mas depois ele voltou atrás e teve, inclusive, que retirar os militares franceses do país, nosso vizinho.
No entanto, Paris ainda tem proxies na região como a Costa do Marfim, que age, basicamente, como um departamento ultramarino francês. Tudo o que Macron ordena, o presidente marfinense atende.
HA
Muitos brasileiros são originários da África Ocidental. Temos uma herança ancestral significativa. Até as nossas principais religiões de matriz africana têm relação com a sua região. Mas apesar dessa herança, a África Ocidental é uma esfinge para o Brasil. Mas para vocês, o que pensam sobre nós?
IG
É a primeira vez que eu venho ao Brasil, que eu conhecia pelos livros e pela televisão, principalmente pelas suas lindas novelas – sim, nós praticamente crescemos com elas, vendo de tudo, inclusive as favelas.
Infelizmente, é uma elite da África que conhece o Brasil – e imagino que seja uma elite brasileira que conheça a África. Estávamos falando em garantir uma maior aproximação entre nossos povos… Bem, isso está sendo feito timidamente, mas deverá haver um momento de aceleração para que os africanos possam entender que quando dizemos “americano” não nos referimos aos estadunidenses.
Os brasileiros são, também, “americanos”. Eu tenho a sensação de que podemos ir longe juntos e até devemos; é uma questão de sobrevivência: América Latina e África estão no contexto da mesma luta, contra os mesmos colonizadores que tomaram nossas terras. São os mesmos que vieram ocupar aqui. E vimos o que aconteceu com a presidência de Dilma e o que foi o governo Bolsonaro. E vemos as dificuldades que existem hoje para fazer melhor do que esta presidência atual, porque é preciso ir além disso.
HA
O que vocês esperam para o futuro?
IG
A Esperança nos mantém vivos. Estamos condenados, África e América Latina, a nos descobrir melhor e a estar melhor juntos, a conviver melhor, a ser mais unidos. A solidariedade é fundamental em nossas organizações de esquerda. Nem sempre estivemos unidos, nem no mesmo país, nem nas organizações de esquerda, nem na esfera internacional. Sempre houve tensões, e isso é uma questão que precisa ser resolvida se quisermos avançar.
Contanto que não silenciemos sobre certas coisas e cheguemos ao cerne da questão. Observe que nosso principal inimigo, a contradição principal, é o imperialismo.
Então, desse ponto de vista, espero que haja mais despertar. Mais conscientização, mais mãos estendidas. De repente, nos veremos no internacionalismo. E a Revolução? Constituímos uma rede com dezenas de países falando sobre isso. Isso pode ser uma faísca que permitiria acender a luz.
é publisher da Revista Jacobina, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP e advogado.
Inoussa Ganbaaga
militante sankarista, membro do Comitê Memorial Thomas Sankara (CIMTS) e participante dos Comitês de Defesa da Revolução entre 1983 e 19877