Júlio Holanda - Biólogo, mestre e doutorando em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), militante ecossocialista da Subverta.
Imagem: Reprodução Carta Capital
1. Na abertura da Assembleia Geral da ONU de 2025, não havia grandes ilusões sobre o que Donald Trump poderia oferecer ao debate climático. Afinal, durante sua primeira gestão, os Estados Unidos se retiraram do Acordo de Paris, sabotando um dos poucos consensos multilaterais sobre a urgência da ação climática. Contudo, ele conseguiu ir além e realizou um verdadeiro show de horrores, com mentiras, desinformação e negacionismo climático. Trump chamou as mudanças climáticas de “o maior golpe já perpetrado sobre o mundo”, acusando a energia renovável de estar “destruindo grande parte do planeta” e zombando da ciência ao insinuar que especialistas mudam de discurso conforme lhes convém. Foi um ataque calculado e coordenado à ciência e à urgência de enfrentar um colapso ambiental já em curso;
2. A estratégia de Trump é antiga e conhecida. Ao chamar o aquecimento global de “golpe”, ele não apenas nega dados empíricos acumulados por centenas de pesquisadores, mas sugere uma espécie de conspiração mundial, minando a confiança pública na ciência. Essa tática conspiratória não é nova, foi usada em outros momentos contra a teoria da seleção natural, contra os direitos civis, contra as vacinas. É sempre o mesmo recurso, transformar evidências em armadilhas, fabricando dúvidas sem embasamentos e estigmatizando os cientistas como vilões. Enquanto Trump recita frases de efeito, a atmosfera continua a se saturar de gases de efeito estufa (GEE), os oceanos se aquecem, eventos extremos se multiplicam e aumentam os refugiados climáticos e migrações em todo o mundo, tema inclusive muito questionado pelo presidente dos EUA em sua fala;
3. Quando ele afirma que as energias renováveis “não funcionam” e “são mais caras”, ignora deliberadamente o acúmulo de evidências que mostram o contrário. Hoje, em várias partes do mundo, a energia solar e eólica já são mais baratas do que os combustíveis fósseis, além de não contribuir com as emissões de GEE. No Brasil, por exemplo, a capacidade instalada de eólicas saltou de 6 GW em 2014 para 35 GW em 2025, correspondendo a 17% da matriz elétrica nacional, sendo a segunda fonte de participação na matriz elétrica. É verdade que há desafios de armazenamento e intermitência, mas a solução não é desacreditar a transição, e sim investir em ciência, inovação e justiça energética;
4. O mais grave, contudo, é que tal discurso não se limita a um desabafo individual. Ele envia um recado político: se uma das maiores potências mundial trata a crise climática como farsa, abre-se espaço para que outros governos relaxem compromissos, para que empresas retardem mudanças, para que sociedades inteiras caiam na tentação da dúvida fabricada. A negação de Trump não é apenas a recusa de um dado científico, é a recusa de responsabilidade histórica, a conta é simples: os EUA são o maior emissor histórico acumulado de gases de efeito estufa do mundo e consequentemente um dos principais responsáveis pela crise climática
em curso, sendo necessário então ser responsabilizado de forma equivalente;
5. Mas é importante lembrar que o enfrentamento da crise climática não pode ser reduzido a uma oposição entre negacionistas como Trump e defensores entusiastas de qualquer forma de energia renovável. O Brasil conhece bem as contradições dessa transição, por exemplo, os ventos que deveriam significar algum fio de esperança se tornaram fonte de conflito e expropriação. Usinas eólicas ocupam dunas, praias, áreas de pesca artesanal, afetam o modo de vida de agricultores, indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Limitam o acesso a bens comuns, degradam os ecossistemas e redesenham o território desde uma lógica privada e sem nenhum tipo de consulta às populações locais.
6. Na região Nordeste, que passou a ser entendida como “região solução” para a chamada transição energética, multiplicam-se denúncias de violação de direitos, degradação ambiental e desestruturação das relações sociais nos territórios afetados pelos projetos. Quilombolas, indígenas, pescadores e pequenos agricultores relatam como o barulho das turbinas, a poluição da água, do ar e do solo e a supressão da vegetação provocam impactos diretos à saúde, à economia e à cultura local;
7. Dessa forma, ao mesmo tempo em que o mundo deveria buscar mecanismos para abandonar os combustíveis fósseis, o crescimento apressado das renováveis ameaça destruir comunidades que sempre viveram em relação equilibrada com a natureza e que são as menos responsáveis pela crise climática. A crítica a Trump, portanto, deve ser ampliada: não basta denunciar o negacionismo grosseiro de quem chama o clima de golpe; é preciso também questionar a forma como as falsas soluções estão sendo implementadas, sobretudo no sul global pelos mesmos representantes do capitalismo fóssil e extrativista;
8. A chamada transição energética global tem sido marcada também pela corrida por minerais ditos “estratégicos” (lítio, cobre, níquel, cobalto, terras raras) considerados essenciais para baterias, painéis e turbinas. Na América Latina, isso significa uma pressão renovada sobre territórios indígenas e de comunidades tradicionais, áreas de alta biodiversidade e regiões historicamente exploradas por mineração. O discurso da “energia limpa” esconde, assim, um ciclo de extrativismo que se atualiza, convertendo antigas zonas de sacrifício em novas fronteiras de saque. Se não enfrentarmos essa lógica, construindo uma alternativa pós-extrativista, corremos o risco de trocar o petróleo por outro tipo de dependência, igualmente destrutiva e colonial;
9. Na América Latina, os Governos celebram mega projetos eólicos, solares, de hidrogênio verde e de minérios “estratégicos” como justificativa para alcançar os compromissos climáticos, enquanto as populações locais arcam com os custos territoriais e sociais. Trata-se de uma nova onda de colonialismo energético, onde os países da periferia global fornecem eletricidade “limpa” a grandes centros urbanos e industriais do norte global, mas não recebem os benefícios em forma de justiça social, participação ou distribuição de riqueza. O risco é repetir, com outra roupagem, o padrão de dependência e espoliação que historicamente caracterizou
nossa inserção na divisão internacional do trabalho no capitalismo;
10. As respostas para sair dessa crise não parecem estar localizadas apenas na matriz energética, mas no modelo de desenvolvimento. Uma transição verdadeira não pode ser construída contra os povos, mas com eles; não pode tratar territórios como espaços vazios, mas como lugares de vida, cultura, ancestralidade e perspectiva de futuro. É preciso barrar o mito do progresso, do desenvolvimento a qualquer custo, do produtivismo e consumismo, além da lógica do descarte, marcas registradas das sociedades capitalistas. A Convenção 169 da OIT, que estabelece direitos fundamentais para povos indígenas e tribais, buscando superar práticas discriminatórias e garantir sua participação na tomada de decisões que os afetam, precisa ser respeitada e aplicada em todo território nacional. O tratado determina a garantia de consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais sobre os projetos em seus territórios. Inclusive, a opção pela não instalação dos empreendimentos deve ser uma alternativa viável, respeitada e garantida pelo poder público;
11. Por fim, espaços como as Assembléias da ONU ou as reuniões das Conferências do Clima (COPs) mantêm seu valor como espaços institucionais importantes de articulação diplomática e multilateral. Entretanto, não podemos nutrir a ilusão de que uma mudança estrutural sairá desses espaços. Romper com o sociometabolismo do capital e a falha metabólica com a natureza são tarefas que só poderão nascer da luta organizada dos povos, dos movimentos sociais, dos trabalhadores e trabalhadoras e das comunidades que, na linha de frente, sabem que a sobrevivência do planeta não se conquista com retórica, mas com ação direta, coletiva e transformadora.