Por Bruno Huberman
Os bombardeios israelenses e a violência étnica não são acaso — são parte de uma estratégia imperialista para impedir a unidade e autodeterminação dos povos do Oriente Médio.
Na quarta-feira, 30/04, Israel bombardeou o sul da Síria, próximo à cidade de Nawa, matando nove civis. Segundo o ministro da Defesa israelense, Israel Katz, o ataque foi uma “operação preventiva” para conter “grupos extremistas que estavam se preparando para atacar a população drusa”. No entanto, a realidade foi exposta na declaração feita no dia anterior pelo extremista de direita e ministro das Finanças, Bezalel Smotrich: “A luta não acabará até que centenas de milhares [de palestinos] deixem Gaza […] e a Síria seja dividida em partes”.
Desde a queda de Bashar al-Assad, em 8 de dezembro de 2024, após treze anos de guerra civil iniciada com os levantes populares da Primavera Árabe no final de 2011, o país busca estabilidade. O governo interino é liderado por Ahmed al-Sharaa, ex-guerrilheiro da filial síria da al-Qaeda, a Frente al-Nusra, que moderou seu discurso para ampliar o apoio interno e externo à deposição de Assad. Com apoio da Turquia, al-Sharaa, sob o nome de guerra Abu Mohammed al-Jolani, comandou as tropas do Hayat Tahrir al-Sham (HTS) para derrubar Assad em um momento em que sua permanência no poder parecia consolidada, enquanto as tensões no Oriente Médio se voltavam para as agressões israelenses contra os palestinos em Gaza, o Hezbollah no Líbano e o Irã.
Al-Sharaa chegou ao poder como resultado de anos de esforços imperialistas para desestabilizar e derrubar o governo Assad — liderados pelos EUA e apoiados por Turquia, Israel, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Apesar disso, observa-se um certo alívio para parte significativa da população, anteriormente sufocada pelo regime autoritário de Assad.
Bashar (2000–2014) e seu antecessor e pai, Hafez (1971–2000), buscaram aproximação com o Ocidente após o fim da Guerra Fria, especialmente por meio de reformas neoliberais, mas mantiveram alianças com forças antagônicas ao imperialismo, como Rússia, Irã e o Eixo da Resistência. A saída de Bashar foi interpretada pelo ex-presidente dos EUA, Joe Biden, como uma vitória estadunidense. Rússia e Irã utilizavam o território sírio para avançar interesses políticos, incluindo apoio ao Hamas e ao Hezbollah.
Apesar de seu passado extremista e de confronto com os EUA, al-Sharaa e os combatentes da al-Qaeda sempre estiveram ao lado dos estadunidenses na Síria, como revelou um e-mail vazado de 2012 da ex-secretária de Estado Hillary Clinton. Os EUA buscavam derrubar a família Assad desde o fim da Guerra Fria, visando assegurar sua hegemonia no Oriente Médio frente aos últimos líderes nacionalistas que foram aliados da ex-URSS, como Saddam Hussein, no Iraque, e Muammar Gaddafi, na Líbia.
Com Assad deposto, o plano dos EUA sob Biden era transformar a Síria em um modelo de país islâmico, democrático e secular ao estilo ocidental. A reconstrução da imagem e do discurso de al-Sharaa foi essencial para esse objetivo. Ele tem buscado reconciliar grupos rivais para construir uma nova coesão nacional após anos de guerra civil. Em março, al-Sharaa firmou um acordo para integrar as Forças Democráticas Sírias — financiadas pelos EUA e lideradas por curdos — ao novo governo.
No entanto, al-Sharaa enfrenta uma retomada da violência interétnica conduzida por milícias islâmicas que ascenderam ao poder — algo que pode coincidir com os planos do novo presidente dos EUA, Donald Trump.
Em março, cerca de 1,2 mil sírios alauítas — minoria religiosa que representa cerca de 10% da população e à qual pertencia a família Assad — foram assassinados por grupos armados ligados ao governo. Os massacres começaram após ataques de grupos leais a Assad contra as novas forças de segurança. O medo de levantes armados opositores levou à repressão de comunidades alauítas, xiitas e drusas por grupos paramilitares sunitas.
Durante abril, mais de cem sírios drusos foram mortos por milícias sunitas no que um líder espiritual druso chamou de “campanha genocida”. Os drusos são uma minoria muçulmana presente também em Palestina/Israel e no Líbano, mas sem ambições nacionalistas como os curdos. Representando apenas 3% da população síria, os drusos não constituem um grupo coeso e, ao longo da guerra civil, dividiram-se entre leais e opositores a Assad. A intervenção israelense busca alterar esse cenário, seguindo um antigo plano imperialista de fragmentação da Síria.
Imperialismo, Israel e a divisão da Síria
Durante a guerra civil síria, Israel evitou intervenções abertas a favor dos opositores de Assad, mas teria prestado apoio a grupos como a al-Nusra. Desde a queda de Assad, no entanto, Israel tem avançado agressivamente sobre território sírio, bombardeando alvos estratégicos para enfraquecer qualquer governo futuro. Tropas terrestres ocuparam o Monte Hermon, próximo às Colinas de Golã, território sírio ocupado por Israel desde 1967, e estão a poucos quilômetros de Damasco.
Al-Sharaa evita confrontar Israel, buscando se projetar como líder islâmico moderado, aliado da Turquia e opositor do Irã. Isso implica abandonar a tradicional solidariedade síria à luta palestina, que durante décadas incluiu apoio logístico a guerrilhas palestinas.
O bombardeio israelense, longe de seu declarado propósito humanitário, visa fomentar violência étnica na Síria, fortalecendo a unidade drusa e alimentando ambições separatistas. Esse movimento poderia inspirar outras minorias a buscar independência, reproduzindo um histórico projeto colonial.
Após a Primeira Guerra Mundial, quando França e Reino Unido dividiram os territórios do antigo Império Otomano, os franceses fomentaram divisões étnicas para facilitar seu domínio, fragmentando a Síria entre os estados de Damasco, Aleppo, Alauíta e Jabal al-Druze. Hoje, sob a liderança dos EUA e com Israel como aliado, esse projeto ressurge. Como apontam há anos think tanks israelenses, o objetivo seria dividir a Síria em um Curdistão ao nordeste, um estado alauíta a oeste, o Druzistão ao sudoeste e um estado sunita no restante. Israel faria fronteira com o Estado druzo, grupo com quem mantém relações amistosas na sociedade israelense.
Essa balcanização almeja facilitar o domínio externo e a exploração de recursos, evitando o fortalecimento de um Estado árabe anti-imperialista, como foi a Síria durante décadas. Impedir a união regional, sonhada por pan-arabistas como Gamal Abdel Nasser, é um objetivo dos neoconservadores estadunidenses e israelenses desde o fim da Guerra Fria.
Nacionalismo cultural, supremacismo étnico e o Islã político
A fragmentação étnica se conecta ao avanço do nacionalismo cultural visto em forças como o sionismo e o islamismo wahabista, projetos baseados na construção de estados de pureza étnico-cultural. Isso frequentemente resulta em genocídios e expulsões de minorias, como os palestinos (por Israel) e os Yazidi no Curdistão iraquiano (pelo Estado Islâmico). Na raiz do fascismo está sempre um nacionalismo étnico-cultural.
Desde os anos 1970, forças imperialistas têm favorecido grupos islâmicos para enfraquecer partidos socialistas e nacionalistas árabes. A Revolução Iraniana de 1979, o fortalecimento de Hamas e Hezbollah e o ataque de 11/09 pela al-Qaeda foram exemplos em que essa estratégia teve efeitos inesperados. Ainda assim, a insistência em explorar nacionalismos étnicos persiste, como visto na ocupação estadunidense do Iraque (2003-11) e agora na Síria.
Frantz Fanon, em Os Condenados da Terra, alertava para a “armadilha do nacionalismo” nos processos pós-coloniais, quando a violência, antes voltada contra o colonizador, passa a ser direcionada a minorias internas. Na Síria, o nacionalismo árabe do Partido Baath resultou em repressão dos curdos na década de 1960.
Na Turquia, os curdos também foram historicamente oprimidos, e a rejeição do presidente turco, Recep Erdogan, a qualquer autodeterminação curda é um dos maiores entraves ao plano imperialista de fragmentação síria. Embora a Turquia seja uma potência subimperialista alinhada aos EUA, seus projetos na região são autônomos e podem conflitar com os interesses de Washington, Israel e Arábia Saudita. Erdogan parece usar al-Sharaa para promover sua versão do islã político republicano, em oposição aos modelos iraniano e das monarquias do Golfo.
Ter o islã no centro da política não significa, necessariamente, adotar um nacionalismo cultural reacionário ou supremacista. Apesar de seus problemas, como em relação aos direitos das mulheres, a República Islâmica do Irã não tem histórico de repressão a minorias, ao contrário da violência genocida perpetrada pela Turquia contra curdos e armênios. O grupo iêmenita Ansar Allah, também conhecido como Houthi, tem atacado embarcações e o território israelenses em solidariedade religiosa e política com o povo palestino. Já o wahabismo, como o do Estado Islâmico, defende um supremacismo sunita que faz uma interpretação essencialista do Alcorão. Qualquer tentativa de resgate de origens folclóricas corre o risco de desembocar em movimentos supremacistas.
O reforço aos nacionalismos culturais no Oriente Médio dialoga com o avanço do nacionalismo cristão nos EUA, exemplificado por figuras como Steve Bannon, articulador do retorno de Trump, que busca resgatar supostos valores estadunidenses ameaçados por imigrantes e pela cultura “woke”. Esse movimento reforça a perseguição a imigrantes do Sul Global e a ativistas pró-Palestina, promovendo um supremacismo WASP (branco anglo-saxão protestante), em sintonia com a extrema-direita sionista que governa Israel.
A intervenção imperialista tende a fomentar supremacismos e conflitos étnicos no Oriente Médio, justificando a continuidade da intervenção estrangeira na região. Como no passado, essa estratégia provavelmente sairá pela culatra, mas, no processo, os povos locais pagarão o preço. Cabe aos nacionalismos anti-coloniais históricos promoverem unidade na luta por liberdade e dignidade, enfrentando o imperialismo.