Voltar ao site

Especial COP 30: Redes digitais indígenas como resistência na COP 30

6 de maio de 2025

Via Amazônia Real

Belém (PA) – No último dia 07 de abril, diversas caixas de e-mail no Brasil (e talvez no mundo) receberam uma mensagem de uma liderança indígena feminina do povo Waorani, do Equador. Nemonte Nenquino, uma defensora da terra, escrevia da ‘Amazônia equatoriana’, como ela fez questão de enfatizar, para denunciar que o governo do Equador está tentando leiloar discretamente mais de 3 milhões de hectares de floresta virgem para empresas petrolíferas.

“Essa terra não está vazia, ela está viva. Ela pulsa com o cheiro da terra molhada de chuva, a sabedoria dos mais velhos e o riso das nossas crianças. É o nosso lar”, brada Nemonte em sua mensagem eletrônica. Em seguida, ela faz o alerta: “se o governo conseguir o que quer, nossas florestas vão desaparecer e a força vital que nos sustenta há séculos pode se perder para sempre. Por isso, vamos recorrer à Justiça”.

Na mensagem, a jovem liderança informa que em poucas semanas, os Waorani e outros povos indígenas equatorianos farão uma marcha até a capital do país, exigindo que a Corte Constitucional bloqueie a venda ilegal das terras indígenas. Mas enfatiza que os recursos para isso são pesados e pede ajuda em doações para contratação de advogados para contestar as licenças emitidas e criar uma resistência indígena para defender o ‘que é sagrado’.

Para além da questão dos Waorani, um detalhe chama a atenção. A força que o uso adequado das redes sociais pode impulsionar em demandas de povos tradicionais, entre eles os indígenas. Nemonte sabe disso e usou uma ferramenta digital para ter ampliada sua voz. Não é um caso isolado.

Muitas vozes indígenas de diferentes países das Américas do Sul, têm ecoado nas redes sociais os descontentamentos, as demandas e as críticas em relação ao que tem sido encaminhado até agora para organização da COP 30, a ser realizada em Belém, capital do Pará, no segundo semestre de 2025.

Na teoria, seria uma oportunidade histórica para os povos indígenas que vivem na Amazônia, dado o papel central da floresta no debate climático global. No entanto, a distância entre as demandas indígenas e o que está sendo debatido nos espaços oficiais do evento reflete uma desconexão estrutural, evidenciada pela atuação de jovens lideranças indígenas nas redes digitais.

Embora os povos indígenas sejam historicamente os principais defensores dos ecossistemas amazônicos, seus discursos frequentemente são marginalizados nas conferências climáticas. A COP costuma enfatizar mercados de carbono, compromissos de desmatamento zero e soluções tecnológicas, enquanto as demandas indígenas vão além disso, abrangendo, por exemplo, a demarcação e proteção territorial como medida essencial para a preservação climática; o combate ao extrativismo predatório (mineração, agropecuária extensiva, exploração madeireira); autonomia sobre seus territórios e modos de vida como um pilar da luta climática, além da mudança na estrutura das negociações climáticas, incluindo maior participação indígena nas decisões.

Porém, grande parte dessas pautas segue à margem das decisões oficiais, sendo frequentemente diluída em discursos genéricos sobre “desenvolvimento sustentável” e “soluções de mercado”, que podem, inclusive, prejudicar comunidades indígenas ao impulsionar políticas de compensação ambiental que não levam em conta seus direitos territoriais.

Frente a essa exclusão, jovens lideranças indígenas têm usado as redes sociais como ferramenta de denúncia, mobilização e construção de narrativas alternativas sobre a crise climática. Elas exercem um papel fundamental ao desconstruir discursos governamentais e corporativos que usam a COP para greenwashing (estratégia de marketing que consiste em promover uma imagem de sustentabilidade que não corresponde à realidade); pressionar autoridades e organizações internacionais para a inclusão das pautas indígenas; fomentar o debate público sobre a Amazônia e os impactos da COP 30 nas comunidades locais e criar redes de apoio e alianças internacionais, dando visibilidade global às lutas indígenas.

“Ser repórter é sobre ouvir, eu sou filha do território, e o que faço de melhor é escrever sobre isso. Ariene Susui

Redes como Instagram, TikTok, X e YouTube são usadas para divulgação de informações, organização de protestos e produção de conteúdos educativos e mobilizadores. Ou seja, há uma nova geração de comunicadores indígenas que desafiam narrativas tradicionais sobre o meio ambiente e o papel dos povos originários. Lideranças como Alice Pataxó, Eric Marky Terena e Célia Xakriabá para ficar em três exemplos distintos, destacam como empresas poluidoras financiam eventos da COP enquanto continuam explorando territórios tradicionais. Ou Ariene Susui, do povo Wapichana, jornalista e cofundadora da Rede de comunicadores indígenas de Roraima Wakywaa, ativista que atua desde os 14 anos no movimento indígena pela participação dos jovens e das mulheres nas discussões políticas, ambientais e educação.

Há ainda nomes como Kin Suruí, jovem indígena do povo Paiter Suruí, articuladora do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia e conselheira da Associação de Mulheres Indígenas de Rondônia. Ou como Cristian Arapiun, indígena da etnia Arapiun, comunicador do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA), um dos produtores do documentário En-Cantos. Cristian participou ativamente das recentes e históricas manifestações em Belém, contra as medidas excludentes do governador Helder Barbalho em relação à educação indígena. Há outras vozes que tem se destacado, como a de Ayla Tapajós, uma jovem jornalista e mestranda em Direitos Humanos e Cidadania, que utiliza o jornalismo, com o intuito de visibilizar as lutas e conquistas dos povos indígenas do Brasil. Ayla produziu o documentário “Resistência Cultural” e é um desses jovens nomes indígenas que sobressaem nas redes digitais. Essas vozes são inúmeras e tem se destacado cada vez mais no território digital brasileiro.

São importantes contrapontos a outros nomes indígenas que, ao contrário, assumem o papel de defender pautas da direita e extrema-direita como Ysani Kalapalo, uma apoiadora de Bolsonaro que depois se disse arrependida, ou como os caciques Rony Walter Azoinayce Paresi, do povo Haliti-Paresi, de Mato Grosso e José Acácio Serere Xavante, conhecido como cacique Tsererê. Ambos apoiaram abertamente o golpe de estado após a eleição de Lula.

O ativismo brasileiro

A COP 30, obviamente, expõe nas redes sociais as vozes em consonância ou dissonância em relação ao que se pensa e se quer sobre o futuro climático-ambiental mundial. No entanto, enquanto os discursos oficiais priorizam acordos entre governos e corporações, jovens lideranças indígenas estão utilizando as redes digitais para denunciar a distância entre essas discussões e suas demandas reais, evidenciando um abismo entre a retórica da sustentabilidade e a prática efetiva de justiça socioambiental.

Nas plataformas digitais, jovens indígenas—como ativistas do Movimento Juventude Indígena, APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e coletivos como a Anmiga (Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade), têm exposto as contradições da COP-30. Organizações como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que existe desde 1989, já se tornou um espaço onde jovens comunicadores passaram a revitalizar ainda mais a luta pela auto representação em relação aos direitos dos povos indígenas. Com cerca de 80 jovens indígenas, de 34 povos, de diferentes territórios da região, tem como princípio básico promover a construção de novas lideranças com novas ferramentas, através da comunicação.

A importância da comunicação também é o foco da Rede Wayuri, criada em novembro de 2017 com o nome de Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro. Composta por comunicadores indígenas de vários povos, como Baré, Baniwa, Desana, Tariana, Tukano, Tuyuka, Wanano e Yanomami, se aprofunda no combate às fake news relacionadas aos indígenas, além de defender os direitos das populações tradicionais. Há ainda a Articulação Brasileira de Indígenas Jornalistas (Abrinjor) que surgiu para debater a importância e os desafios de cobrir temas indígenas a partir de uma perspectiva própria. É uma associação com mais de 50 membros de mais de 30 povos.

O ativista Takak Xikrin, liderança jovem do povo Xikrin do Katete do município de Parauapebas (PA), militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração- MAM- é uma dessas vozes críticas nas redes sociais. “O apresentado para nós indígenas é que virão muitos investimentos, mas esses investimentos podem afetar diretamente na cultura e modo de viver dos povos tradicionais. Muitos dizem que podem trazer soluções para preservação da natureza, mas nós indígenas entendemos que isso não é bem assim”, afirma à Amazônia Real. Segundo ele, são as lideranças indígenas que sabem e convivem com os problemas dentro do território. “Mas nem sempre somos ouvidos, e nós sabemos que existem organizações indígenas que nos representam, mas às vezes não ecoam nossas vozes do jeito certo”, reclama. Nesse sentido, ele defende plenamente o uso das redes digitais. “Comunicadores indígenas tem o papel fundamental em divulgar a luta dos povos indígenas em defesa dos direitos e territórios, já a mídia não indígena muitas das vezes não exerce seu papel quando se trata de indígenas”.

É um campo de polos opostos. A ausência de vozes indígenas em decisões estratégicas da COP reforça um modelo de governança climática excludente, que trata a Amazônia e os territórios indígenas como meros espaços de mitigação ambiental. O fortalecimento do protagonismo indígena é essencial porque esses povos protegem 80% da biodiversidade mundial e são atores centrais no combate às mudanças climáticas. Além disso, é inegável que o conhecimento tradicional indígena oferece alternativas sustentáveis reais que vão além das soluções mercadológicas promovidas nas COPs. E por fim, algo que de tão óbvio nem deveria ser lembrado. A Amazônia não pode ser debatida sem seus guardiões históricos, e a COP 30, realizada em Belém, tem o dever de garantir esse espaço de fala.

“Entendemos que o conhecimento tradicional pode ser a solução para preservar a nossa Amazônia e que a demarcação das terras indígenas pode ajudar bastante no combate ao desmatamento e garimpo ilegal , que tem provocado e contribuído com a crise ambiental”, resume Takak.

Lucas Tupinambá, liderança tupinambá do baixo Tapajós do Pará, afirma que até o exato momento as lideranças indígenas do oeste do Pará, não se sentem incluídas nas discussões da COP 30. “Estamos vendo os avanços graves dos efeitos das mudanças climáticas e é preciso que todos nós povos tradicionais, façamos um pacto em defesa do nosso planeta, seja onde for, em diversas regiões deste nosso país”. O ‘seja onde for’ destacado por ele, inclui obviamente o universo digital. E isso não tem sido deixado de lado. “Nossa organização de base vem se organizando através de formações de etnomídia aos jovens dos nossos territórios, ensinando formas de fazer incidências através de matérias nas redes sociais”, explica Lucas Tupinambá.

“Se a COP 30 não integrar as demandas indígenas de forma concreta, há o risco de o evento se tornar apenas mais um palco para acordos diplomáticos sem impacto real nas comunidades afetadas pela crise climática. Dessa forma, a presença digital das lideranças indígenas se torna um instrumento essencial para pressionar mudanças reais e evidenciar a distância entre os debates oficiais e a realidade dos povos originários”, complementa.

A geógrafa Hevilin Tupinambá, influencer indígena trans, segue esse pensamento. “Por mais que se tenha uma Cúpula das Amazônias, ou qualquer espaço para defender pautas por meio das OSCs, são os grandes donos do capital que vão negociar a Amazônia — os que dominam os grandes empreendimentos e que se prendem a uma suposta “prática sustentável” apenas para continuar explorando e sustentando o capitalismo, sem respeitar os saberes ancestrais e os direitos dos povos originários. Iniciativas como o crédito de carbono ignoram o fato de que as árvores também são ancestrais e sagradas para os nossos povos. Ou você alugaria o seu avô para uma empresa nos EUA dizer que está poluindo menos?”, indaga.

Com quase 5 mil seguidores apenas no Instagram, Hevilin destaca a importância do uso das redes digitais para ecoar as vozes de povos tradicionais. “As redes digitais têm desempenhado um papel estratégico para denunciar violações de direitos, mobilizar protestos com cobertura ao vivo, disseminar informações diretamente dos próprios parentes, combater fake news e disputar narrativas contra um governo que se utiliza da desinformação para contar um lado tendencioso sobre as mobilizações dos povos — como foi o caso da ocupação da Secretaria de Educação do Pará”.

Em relação a esse jogo de disputa narrativa nas redes digitais, Hevilin enfatiza a contradição intrínseca existente nesse ambiente. “Enquanto os povos e suas lideranças arriscam suas vidas em atos e protestos contra leis que atropelam seus direitos, contra invasões de seus territórios por projetos e obras ligados à COP30, contra o marco temporal, há aqueles que são convidados pelo governo para gravar vídeos dizendo o quanto é “boa” a COP30 na Amazônia, para fazer shows homenageando determinado povo, de tal etnia… mas que não fazem um PIX para fortalecer o movimento dos parentes, não dão um like numa publicação do movimento indígena — e muito menos compartilham — para não perderem seu lugar à mesa com os que estão faturando com essa COP. É triste ver lideranças indígenas que hoje ocupam cargos políticos e que deveriam falar pelos povos e pela floresta, corroborando com a estrutura política corrupta e desenvolvimentista do atual governo. É evidente que têm sido cooptadas para jogar o jogo do capital branco”.

A fala forte da influencer trans indígena mostra que a insurgência digital dessas lideranças não é apenas crítica—é estratégica. Afinal, ao viralizar denúncias, forçam instituições como a ONU e financiadores, por exemplo, a responderem. Os ensinamentos também vêm de situações anteriores, já que as redes digitais foram ferramentas essenciais para articular protestos, como os ocorridos durante a COP26 e COP28. Por fim, essas vozes ecoam a contranarrativa ao desenvolvimentismo, ao mostrar que a Amazônia não é um “estoque de carbono”, mas um território de vida, exigindo políticas anticoloniais.

“O capital é incompatível com o ancestral. Só dialogando com os povos originários e com seus saberes milenares sobre preservação da natureza conseguiremos reverter essa crise climática. Mas, aparentemente, isso não é conveniente para os grandes empresários e para governantes de países que lucram com o capitalismo predatório — como os Estados Unidos — que não querem os povos originários nas mesas de negociação da COP30 pautando a mitigação dos impactos ambientais”, afirma Hevilin.

Marcia Mura, integrante do Coletivo Mura, que surgiu para combater a narrativa de apagamento do Povo Mura em Rondônia, destaca a existência de canais indígenas e de aliados que pautam as demandas e violações de direitos indígenas. “Organizações indígenas regionais e nacionais que também estão fazendo formações políticas, debatendo e informando sobre a COP 30”, diz. “Tenho visto manifestações de diferentes povos, principalmente da Amazônia sobre não se sentir representados. E por isso precisamos usar esses canais para disseminar nossas demandas”, complementa.

Se a COP30 repetir o modelo de exclusão das edições anteriores, sua legitimidade estará em xeque. As lideranças jovens indígenas já estão transformando as redes em trincheiras de resistência, provando que a justiça climática só existirá quando seus povos forem sujeitos políticos, não objetos de discurso. A pergunta que fica é: os tomadores de decisão estão prontos para ouvir—e agir—ou continuarão a falar “sobre” os indígenas, sem falar “com” eles?

“Não nos sentimos ouvidos. Por mais que haja alguma iniciativa do governo em dialogar com os povos, nós não estamos dispostos a negociar direitos — muito menos a floresta e os nossos territórios, que são sagrados para nós. E, para uma COP que está sendo vendida como a “COP da Floresta”, não há, por parte do governo, a preocupação em preservar o que ainda temos de floresta na região de Maery, hoje conhecida como Belém do Pará, tampouco com seus guardiões, os povos que nela habitam”, afirma Hevilin Tupinambá, numa mensagem enviada por intermédio de uma rede digital. E que chegou ao seu destino. Como todas as outras mensagens enviadas à coluna para essa reportagem.

A imagem que abre este artigo é de autoria de Alberto César Araújo/Amazônia Real e mostra jovem Kayapó durante oficina de fotografia na Terra Indígena Baú, no Pará.

Ismael Machado é jornalista, roteirista e cineasta. Já trabalhou como correspondente dos jornais ‘O Globo’ e ‘Jornal do Brasil’ na região Norte e como colaborador da Folha de São Paulo. Foi repórter especial do jornal Diário do Pará. É autor dos livros ‘Golpe, Contragolpes e Guerrilhas: O Pará e a ditadura militar’ (2014), vencedor do Prêmio IAP de Literatura 2013, na categoria Livro-Reportagem e a biografia ‘Paulo Fonteles-Sem Ponto Final’. Já obteve doze prêmios em jornalismo, inclusive duas vezes os prêmios Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos em Jornalismo. Fez roteiro e direção do curta Amador, Zélia, vencedor do Edital Lei Aldir Blanc 2021. Fez roteiro, produção executiva e direção do documentário ‘Na Fronteira do Fim do Mundo’, pela produtora Floresta Urbana (PA), 2021 (Seleção oficial ‘Montreal Independent Film Festival’ 2022). Roteirista e diretor do longa de ficção ‘Flashdance TV’, selecionado no edital Novos Realizadores 2022. Autor de oito livros publicados.