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FRANÇA: SARKOZY CONDENADO, UM JULGAMENTO HISTÓRICO

6 de outubro de 2025

Por Chantal Liégeois

Imagem: Reprodução Brasil 247

No dia 25 de setembro, o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy foi considerado culpado de associação criminosa no caso do financiamento líbio e condenado a cinco anos de prisão, multa de 100 mil euros e cinco anos de inelegibilidade, com mandado de prisão, o que significa que ele não escapará da prisão mesmo recorrendo da decisão (o que ele anunciou que fará). Em 13 de outubro, uma audiência definirá quando terá início a sua prisão.

O processo judicial

A acusação central é a constituição de um pacto de corrupção selado com a ditadura da Líbia de Kadhafi para financiar a campanha de Sarkozy em 2007, uma corrupção de alta intensidade que se estendeu até as mais altas esferas do Estado.

Após vários anos de investigação pelo Ministério Público Financeiro Nacional e três meses de audiências no início do ano (janeiro-abril de 2025), o veredicto foi proferido: Sarkozy, dois dos seus ex-ministros e vários intermediários foram considerados culpados. No total, dos 12 arguidos, 9 foram condenados a penas de 2 a 6 anos de prisão e multas pesadas.

O ex-presidente foi processado por quatro crimes: corrupção passiva, receptação de desvio de fundos públicos, financiamento ilegal de campanha e associação de malfeitores. Apenas este último foi considerado contra ele, pois a justiça não conseguiu uma prova material que o dinheiro líbio efetivamente entregue, foi reinvestido na campanha de Nicolas Sarkozy. Porem o crime foi qualificado de “extremadamente grave” pela juíza.

A presidente do tribunal, Nathalie Gavarino, explicou que ele era culpado de associação criminosa : «É um crime contra a nação, contra o Estado, contra a República. Na altura dos factos, ocupava funções ministeriais, era responsável por zelar pelo respeito da Constituição. [...] Na qualidade de Ministro e Presidente da UMP, deixou que os seus colaboradores próximos e apoiantes políticos — sobre os quais tinha autoridade e que agiam em seu nome» — solicitasse às autoridades líbias «a obtenção ou tentativa de obtenção de apoio financeiro da Líbia com vista a financiar a campanha de 2007.” Em outras palavras, ele é o principal organizador da associação criminosa.

Esta é uma nova condenação para o ex-presidente da República (70 anos), que já havia sido julgado definitivamente culpado, em 17 de maio de 2023, por corrupção e tráfico de influência, no caso das escutas telefónicas, conhecido como caso Bismuth. Condenado a três anos de prisão (dois com pena suspensa), ele teve de usar uma tornozeleira eletrônica durante as audiências deste julgamento, uma sanção inédita para um ex-chefe de Estado. Ele também foi processado em outro caso por corrupção, o caso Bygmalion (financiamento ilegal de campanha em 2012), no qual também foi condenado a um ano de prisão. O seu recurso para o Supremo Tribunal deve ser analisado a 8 de outubro.

Não é a primeira vez que um ex-presidente francês é considerado culpado de corrupção, mas é a primeira vez na história da República que um ex-presidente irá para a prisão. Este processo é, portanto, um julgamento histórico num caso de corrupção ao mais alto nível do Estado.

Em que consistia o pacto de corrupção

O pacto consistia, do lado líbio, num financiamento oculto da campanha presidencial de Nicolas Sarkozy em 2007 e, do lado francês, em compromissos para analisar a situação penal de Abdallah Senoussi em França e acompanhar o regresso da Líbia, antigo Estado pária (após anos de isolamento devido ao papel da Líbia em atos terroristas), como estado respeitável a nível internacional.

As acusações vieram inicialmente do intermediário neste pacto de corrupção, Ziad Takieddine, de dignitários líbios, do filho de Kadhafi, etc. Em março de 2012, o jornal de investigação Mediapart publicou uma nota atribuída a Moussa Koussa (ex-chefe dos serviços secretos externos líbios), segundo a qual a Líbia teria prometido cincuenta milhões de euros para a campanha de Sarkozy. Essa nota foi verificada e certificada verdadeira pela justiça francesa. Desempenhou um papel importante no início da investigação.

Quem é Senoussi e qual é seu papel? Abdallah Senoussi era um militar líbio, cunhado do coronel Kadhafi, número 2 do regime, antigo chefe dos serviços secretos externos líbios, julgado e condenado à revelia em França em 1999 a prisão perpétua, com mandado de prisão internacional, por ter organizado um atentado contra o avião da companhia aérea UTA DC-10 (170 mortos, dos quais 54 franceses, em 1989). Uma contrapartida do financiamento da campanha de Nicolas Sarkozy pela Líbia consistiu na absolvição judicial de Senoussi.

Durante o seu julgamento na Líbia, em setembro de 2012, Senoussi declarou: «No que diz respeito ao apoio prestado a personalidades ocidentais para lhes permitir aceder ao poder, foi paga a quantia de 5 milhões de euros para a campanha do presidente francês Nicolas Sarkozy em 2006-2007. Eu supervisionava pessoalmente a transferência dessa quantia por meio de um intermediário francês, na pessoa do chefe de gabinete do ministro do Interior. Sarkozy era então ministro do Interior. Havia também um segundo intermediário, chamado Takieddine.» Ouvido separadamente, Ziad Takieddine prestou um depoimento concordante. A investigação irá provar que, em 2006, seis milhões e meio de euros foram transferidos através do canal de Senoussi para a conta Rossfield.

As provas concretas são os cadernos manuscritos do antigo Primeiro-Ministro líbio, Choukri Ghanem, onde ele registou, em abril de 2007, a existência de vários pagamentos de dignitários líbios a favor da campanha de Sarkozy. Com montantes e nomes associados: 1,5 milhões de euros enviados pelo chefe de gabinete de Kadhafi, Béchir Saleh; 3 milhões de euros do filho do ditador, Saif al-Islam Kadhafi; e 2 milhões de euros de Abdallah Senoussi. Os cadernos de Ghanem provam que os fundos efetivamente pagos pelos líbios (fundos públicos) em 2006 foram destinados a financiar a campanha de Nicolas Sarkozy.

Uma vez eleito presidente da República, Nicolas Sarkozy prosseguiu com a execução do pacto de corrupção, desviando os meios do seu cargo para favorecer os interesses do regime líbio. Entre 2005 e 2009, foram realizadas diligências para analisar a situação penal de Senoussi em França. Em maio de 2009, chegou mesmo a ser realizada uma reunião sobre o assunto no Palacio Eliseu, recorda a sentencia.

Vários colaboradores próximos condenados

Entre os condenados, encontram-se dois ex-ministros e pessoas próximas de Nicolas Sarkozy. Claude Guéant, alto funcionário do Estado, era o antigo chefe de gabinete de Sarkozy, secretário-geral do Palacio Eliseu em 2007, ex-ministro do Interior. Acusado de associação criminosa, corrupção passiva, tráfico de influência passivo, falsificação e uso de documentos falsos, branqueamento agravado de corrupção e tráfico de influência. Foi considerado culpado por ter participado na preparação e execução do pacto de corrupção, em estreita relação com Ziad Takieddine (agente intermediário do clã Sarkosy). Ele foi condenado a seis anos de prisão e a uma multa de 250 000 euros. «Você procurou financiamento no estrangeiro. Aceitou uma quantia avultada. E comprometeu-se com Alexandre Djouhri (agente intermediário do clã Kadhafi). Foi insincero perante o tribunal», afirmou a juíza, que recordou que ele já tinha sido condenado noutros processos. O tribunal teve em conta a sua idade (80 anos), o seu estado de saúde, razão pela qual descartou a prisão.

Brice Hortefeux, (67 anos), O fiel tenente e amigo de infância de Sarkozy, nomeado ministro delegado para comunidades locais no seu governo, negociou duas vezes, em outubro e dezembro de 2005, em Trípoli, com Sanoussi, as condições deste pacto, em nome de Sarkozy, então ministro do Interior. «Aceitou encontrar-se com Abdallah Senoussi, condenado por terrorismo», «ao entregar as coordenadas bancárias da conta Rossfield a Abdallah Senoussi, durante uma viagem oficial à Líbia na presença do beneficiário económico dessa conta, Ziad Takieddine, participou na execução desse pacto», «O seu papel foi decisivo, mas a sua participação no crime é limitada» explicou a juíza. Condenado a 2 anos de prisão, multa de 50.000 euros e 5 anos de inelegibilidade.

Ziad Takieddine, empresário franco-libanês, é considerado uma figura-chave, o principal intermediário da conspiração que ligou o clã Sarkozy ao clã Kadhafi e orquestrou o desvio de dinheiro através de empresas offshore, paraísos fiscais e bancos comerciais ao serviço da corrupção. Ele mudou várias vezes a sua versão ao longo dos anos de investigação. Ele foi julgado, mas faleceu no Líbano dois dias antes da sentença do julgamento. A ação penal foi declarada extinta no que lhe diz respeito.

Alexandre Djouhri, considerado o segundo agente de corrupção neste caso, empresário próximo da direita francesa nas décadas de 1990 e 2000, recebido 59 vezes no Eliseu durante a presidência de Sarkozy. Foi condenado a seis anos de prisão efetiva com mandado de detenção imediata e a uma multa de 3 milhões de euros. Dos treze arguidos, foi ele quem recebeu a pena mais pesada. Ele foi imediatamente levado para a prisão.

Wahib Nacer, banqueiro na Suíça no momento dos fatos, ele foi acusado de ter colaborado na montagem financeira de Alexandre Djouhri, efetuando transferências bancárias a seu favor. Considerado culpado de cumplicidade em tráfico de influência e branqueamento agravado, foi condenado a 4 anos de prisão e a uma multa de 2 milhões de euros. Encaminhado para a prisão no final do julgamento.

Personalidades líbias também foram condenadas neste julgamento, como o ex-tesoureiro de Kadhafi, Bachir Saleh, então à frente do Libyan African Portfolio (LAP), fundo de investimento financeiro do regime líbio. O ex-chefe de gabinete líbio foi considerado culpado tanto de corrupção passiva como de branqueamento agravado, e recebeu uma pena de cinco anos de prisão e uma multa de 4 milhões de euros. Já alvo de um mandado de detenção, ele não compareceu ao processo.

Khalid Bugshan: Bilionário saudita, envolvido em esquemas financeiros ocultos por ter permitido que o banqueiro Wahib Nacer utilizasse as suas contas. Foi considerado culpado de lavagem de dinheiro agravado e associação criminosa, e condenado a três anos de prisão, dos quais um com pena suspensa, e a uma multa de 4 milhões de euros. Ausente do julgamento.

Entre os doze homens que estavam a ser julgados, quatro deles – Thierry Gaubert, Édouard Ullmo, Éric Woerth e Ahmed Salem – foram absolvidos de todas as acusações que pesavam sobre eles.

O atentado ao DC 10

Além do enorme prejuízo para o Estado francês, há outras vítimas neste processo. Está relacionado com este caso o atentado contra o avião de passageiros DC-10 da companhia aérea UTA, orquestrado pela Líbia, em 19 de setembro de 1989. O avião, que fazia a ligação entre o Congo-Brazzaville e Paris, explodiu em pleno voo sobre o deserto do Ténéré, no Níger, matando um total de 170 pessoas, entre as quais 54 franceses. Abdallah Senoussi foi reconhecido como o organizador do atentado e a justiça francesa o condenou à prisão perpétua à revelia. As famílias das vítimas do atentado constituíram-se como parte civil no processo Sarkozy, também estarão presentes no recurso. Denunciam a onda de boatos na imprensa, depois do julgamento, bem como os numerosos apelos para difamar os representantes da justiça francesa que chegaram a provocar ameaças de morte contra a presidente do tribunal. Várias associações anticorrupção também se apresentaram como parte civil e foram aceitas.

As relações oficiais entre a França e a Líbia.

As relações entre a França e a Líbia nem sempre foram boas: na década de 1990, o regime de Muammar Kadhafi foi banido da cena internacional pelos atentados terroristas que reivindicava. A França e a Líbia também se opunham, entre outras coisas, à política francesa no Chade. Mas a Líbia é um país com grande riqueza em petróleo. Suas reservas são as maiores da África, à frente da Nigéria e de Angola, e muitas empresas francesas (Total) as exploram e exportam. Em abril de 2004, sob o governo Chirac (com Sarkozy como ministro da Economia), um acordo de cooperação bilateral de grande alcance foi assinado e entrou em vigor em 2005.

Em 2007, França vendeu à Líbia armas (mísseis e sistemas de comunicação) no valor de 300 milhões de euros. Os contratos foram criticados por sua opacidade, mas defendidos pelo novo presidente Sarkozy. Em dezembro do mesmo ano, o ditador Kadhafi foi recebido com grande pompa em Paris pelo presidente Nicolas Sarkozy, com vistas à sua reintegração na comunidade internacional. Uma visita fortemente contestada devido à situação dos direitos humanos sob o regime ditatorial. Em 2010, a pedido de Nicolas Sarkozy, o ministro da Indústria assina, na Líbia, um acordo para a entrega de um reator nuclear ao ditador líbio.

Em 2011, eclode a primeira guerra civil na Líbia, causando milhares de mortos. O presidente Sarkozy recebe em Paris os representantes do Conselho Nacional de Transição (CNT) e é o primeiro chefe de Estado a reconhecer oficialmente este órgão da insurreição como único representante da Líbia. De março a outubro, ocorre a intervenção militar internacional na Líbia (com a participação ativa da França, do Reino Unido e dos EUA), sob a égide da ONU, durante a qual Kadhafi é morto.

Em 2014, a França se torna o segundo maior cliente da Líbia, com 13,1% das exportações líbias, enquanto representava apenas 9,7% em 2012.

A extrema direita e toda a imprensa francesa em defesa de Sarkozy

Desde a condenação do ex-presidente, em 25 de setembro, a desinformação na mídia atingiu seu auge, com uma campanha feroz contra os representantes da justiça francesa que proferiram a condenação e contra a própria instituição. Nos principais canais de notícias, a defesa de Nicolas Sarkozy tomou conta do espaço, em detrimento dos fatos desse grave caso.

Sarkozy também recebe o apoio da direita francesa, de sua família política “Les Républicains” (LR) e do Rassemblement National (RN) de Marine Le Pen. A deputada de extrema direita considera que a execução provisória (envio para a prisão antes do processo de recurso) decidida pelo tribunal correcional de Paris “representa um grande perigo, tendo em conta os grandes princípios do direito, incluindo a presunção de inocência”. Uma reação que ecoa sua própria situação judicial, pois a ex-candidata à presidência será julgada em recurso a partir de 13 de janeiro de 2026 no caso dos assistentes parlamentares europeus. Em primeira instância, ela foi condenada a dois anos de prisão e cinco anos de inelegibilidade imediata por desvio de fundos públicos neste caso de empregos fictícios no Parlamento Europeu.

O quadro sombrio deste caso é expressivo da crise da democracia burguesa. Este caso político-financeiro internacional considerado na sentença “de extrema gravidade”, põe em evidência a ausência de transparência do financiamento político no regime da democracia burguesa, bem como a cobiça de uma classe política disposta a tudo para manter o poder, até mesmo a conivência com um regime ditatorial, pisoteando as normas e os valores do Estado de Direito. Para eles, a justiça só deve ser respeitada quando não os diz respeito. Este julgamento tem uma importância histórica, tal como tiveram os julgamentos de outros chefes de Estado e ditaduras na América Latina. Nesse sentido, também pode-se traçar um paralelo com as recentes reviravoltas de Bolsonaro depois de seu julgamento no Brasil, com apoio de seus comparsas e do Congresso, na tentativa de salvar a pele a qualquer custo. Eles só não estão avançando no momento, devido à mobilização popular. Portanto, denunciar esses casos e manter a pressão nas ruas - “SEM ANISTIA”- é uma arma política popular que deve ser usada em todos os países para enfrentar esse tipo de situação.


REFERENCIAS:

O dossier completo https://www.mediapart.fr/