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“O liberalismo atlantista nunca poderá se recuperar da sua agonia atual”

1 de agosto de 2025

Tradução: Equipe Radar Internacional

[No mês passado, “Saqi Book”s publicou o novo livro de Gilbert Achcar The Gaza Catastrophe: the Genocide in World Historical Perspective. Labour Hub entrevistou o autor sobre o livro e os acontecimentos políticos que o originaram.]


Labour Hub: Há quinze anos, você escreveu: “Nenhuma estratégia nacional para enfrentar o Estado sionista é possível sem combinar a luta palestina e árabe com o esforço de dividir a sociedade judaica israelense desde dentro. Este último objetivo requer que as forças de libertação palestinas e árabes abordem os judeus israelenses e desvinculem uma parte significativa deles da mentalidade sionista”. Esta segue sendo uma estratégia viável? Estamos mais próximos desse objetivo? O que deve acontecer concretamente para nos aproximarmos dele?


Gilbert Achcar: Seja viável ou não, permita-me enfatizar primeiro que esta é a única estratégia possível para pôr fim a esta longa tragédia e ao calvário que sofre o povo palestino, o que poderia ser um passo em direção a uma coexistência pacífica verdadeira e duradoura entre palestinos e israelenses. Não existe alternativa: todos os demais cenários implicam na continuação da ocupação e da violência ou, do contrário, um caos apocalíptico.


No entanto, para abordar mais diretamente o que implica a sua pergunta, lamentavelmente não estamos mais próximos desse objetivo, mas sim mais longe do que em qualquer outro momento desde 1948. Isso se deve a culminação da prolongada deriva à direita da sociedade e da política israelenses, encarnada no atual governo Netanyahu - uma coalizão entre o partido neofascista Likud e os grupo neonazis de Ben Gvir e Smotrich - e impulsionada pelo desastroso efeito do atentado de 7 de outubro na opinião pública israelense. A hostilidade dos israelenses judeus com o povo palestino alcançou um maximo historico, como demonstram as pesquisas, que indicam que a maioria apoia a expulsão dos habitantes palestinos de Gaza.


Mas a deriva direitista de Israel não foi constante. Depois da intifada palestina de 1988 - um levantamento popular organizado por comitês de base em Gaza e na Cisjordânia - a sociedade israelense foi afetada positivamente, até o ponto de devolver os trabalhistas sionistas ao poder e receber com satisfação os acordos de Oslo assinados com a Organização para Libertação da Palestina. Entre os intelectuais israelenses, assistimos ao desenvolvimento de uma tendencia “pos-sionista”, que advogava por uma transiçao do “Estado judaico” para o “Estado de todos os seus cidadãos”.


Esta tendência logo seria revertida pela dialética da violência iniciada pela extrema-direita sionista (o ataque suicida assassino de fieis palestinos por Baruch Goldstein em 1994), inaugurando um novo ciclo que alcançaria um pequeno pico com a reinvasao mais viokenta dos enclaves palestinos realizada por Ariel Sharon em 2002. Sharon chegou ao poder em 2001 na onda que ele mesmo tinha desencadeado ao iniciar em setembro de 2000 a Segunda Intifada, que, diferentemente da primeira, tomou forma de enfrentamentos armados.


Hoje em dia, a perspectiva de um novo giro pro-paz por parte dos israelenses parece bastante remota, mas não é razão para abandonar o “otimismo da vontade” e a esperança de que uma dialética internacionalista entre árabes/palestinos e judeus israelenses possa eventualmente prevalecer, recuperando-se da atual condição abismal e facilitada pelos judeus nao israelenses, uma proporção cada vez mais importante dos quais está se “desprendendo da mentalidade sionista”.


Labour Hub: A militarização e o crescente autoritarismo do Estado de Israel, enquanto mantém normas democráticas mínimas, embora sobre uma base racializada, isso é algo que as elites ocidentais reconhecem na trajetória dos seus próprios Estados e, talvez, portanto, constitui um fator significativo no seu apoio a Israel, apesar do desprezo com que muitos de seus próprios cidadãos consideram as ações de Israel?


Gilbert Achcar: Depende de quais elites ocidentais você se refere. Para os neofascistas que estão no auge em quase todos os países ocidentais, o antigo “berço do liberalismo”, o atual Estado de Israel é sem dúvida um farol. Netanyahu foi um modelo para eles durante muitos anos, além de um facilitador, encobrindo seu antissemitismo e cooptando-os como aliados de Israel com o argumento comum de racismo anti-muçulmano.


Dizer o mesmo das chamadas elites liberais seria exagerado: figuras como Keir Starmer, apesar de seu aparente imparável giro à direita, ainda não chegou ao ponto de ver Netanyahu como um modelo a ser seguido. Preferem que a oposição israelense consiga derrotar o atual primeiro-ministro israelense e recupere uma aparência de liberalismo, tão falsa como a sua. Cabe destacar que a oposição israelense não é muito melhor que a coalizão de Netanyahu em relação a objetivos bélicos contra os palestinos (identificados com o Hamas) e o Irã.


Labour Hub: Durante o último ano e meio, alguns ativistas participaram de manifestações contra a guerra, contra a guerra de Israel contra a Palestina e contra a guerra da Rússia contra a Ucrânia, com um cartaz que dizia: “Da Ucrânia à Palestina, à ocupação e um crime”. Você tem acordo de que o bombardeio não provocado da Rússia contra a Ucrânia encorajou e normalizou o bombardeio israelense contra Gaza, assim como a agressão russa e normalizada reciprocamente com a arremetida israelense?

Gilbert Achcar: Eu não acho que Israel precise de nenhum estímulo da Rússia, nem de nenhum outro Estado. Segue clamando por direitos coloniais sobre o territorio palestino muito antes de que Putin reivindicasse algo da Ucrania. Desde a sua criação, Israel tem se baseado na ocupação e na anexação forçadas: travou guerras e guerras contra os palestinos e todos os seus vizinhos árabes.


A violência das forças armadas israelenses contra os civis aumentou de forma constante com o tempo e alcançou seus picos com a invasão do Líbano em 1982, a repressão da intifada palestina em 1988-1993, o ataque de 2002 a Cisjordânia e a Gaza, o bombardeio do Líbano em 2006 e os repetidos ataques a Gaza desde 2007.

Assim, se Israel ou Rússia normalizou a violência um do outro, foi o primeiro e não o segundo que teve influência sobre o outro. No entanto, o que foi muito mais importante para encorajar e normalizar a agressão russa contra a Ucrânia foi a invasão do Iraque pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido em 2003, violando flagrantemente a chamada ordem internacional baseada em normas, como mostrei no meu livro A nova guerra fria.

Labour Hub: Poderia surgir um retorno a uma ordem internacional baseada em normas depois de uma mudança de governo em Washington? Mas existe alguma possibilidade de que o liberalismo atlantista, que, segundo você, está “agora definitivamente desacreditado”, possa se recuperar?


Gilbert Achcar: Não acredito que o liberalismo atlantista possa jamais se recuperar da sua agonia atual. Voltar a reconstrução de uma autêntica ordem internacional baseada em normas - a mera aparência já não funcionaria - requer uma mudança de liderança tão radical em Washington que não marcaria o início de uma renovação do atlantismo, mas sim a inauguração de um capítulo completamente novo na história mundial, muito mais progressista do que o que se seguiu depois da Segunda Guerra Mundial.


Por enquanto, os únicos autênticos defensores de uma ordem internacional baseada em normas encontram-se no Sul Global, em países como África do Sul ou China. Desta última, permitam-me destacar que, apesar de suas constantes críticas no Ocidente, tem sido uma firme defensora da Carta das Nações Unidas nas relações internacionais, com constância muito maior do que qualquer governo ocidental. Isso também se aplica a sua postura original sobre a Ucrânia, como salientei há algum tempo.


Labour Hub: O genocidio de Israel contra os palestinos em Gaza é caracterizado frequentemente como o primeiro genocidio transmitido ao vivo, o que reforça a sua inegabilidade. Este mês ocorreram as comemorações do genocidio de Srebrenica, que ainda não foi plenamente reconhecido pelos Estados ocidentais como um genocidio contra todo o povo bosnio, no qual estes mesmos Estados foram possivelmente cumplices. Quão útil você acredita que é enfatizar esses paralelismos para quem se solidariza com Gaza, como parte de uma luta mais ampla contra os direitos humanos, ou se trata de uma distração que impede de se centrar nos detalhes específicos dos crimes de Israel?


Gilbert Achcar: O que os ativistas têm enfatizado principalmente e o caráter duplo que leva os governos ocidentais a reconhecer o massacre de aproximadamente 3% da população de Bósnia Herzegovina como genocidio e a se negar a reconhecer a qualificação de genocidio de proporção comparável de palestinos assassinados desde outubro de 2023. Da mesma forma, o caráter duplo que levou os governos ocidentais a condenar severamente a invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022, enquanto respaldaram a invasão israelense de Gaza em outubro de 2023, foi amplamente comentado e foi um fator chave no descrédito final do liberalismo atlantista e da sua pretensão de se ajustar aos princípios.


Labour Hub: Como eu disse no final, é difícil ser otimista sobre a situação, embora, à medida que continua a pressão pública, as elites ocidentais começam a expressar sua preocupação em relação à política israelense. Há motivos para ser mais otimista agora do que quando você terminou o seu livro?


Gilbert Achcar: Terminei de escrever o livro em fevereiro deste ano. Conclui com um prognóstico profundamente pessimista sobre o resultado da atual guerra genocida em Gaza, em particular devido à “segunda chegada” de Donald Trump à Casa Branca. Lamentavelmente, desde então não ocorreu nada que me fizesse revisar meu pessimismo sobre o futuro previsível.


A única fonte de esperança que vejo - esperança e não otimismo, uma distinção que para mim é muito importante - reside no efeito que as catástrofes do mundo atual tem nas novas gerações, desde as mudanças climáticas cada vez mais catastróficas até a catástrofe de Gaza. De fato, uma proporção cada vez maior de jovens sente repulsa pelo que está acontecendo e se irrita com que permitiu que isso ocorresse, seja como perpetradores, seja como espectadores.


Tenho muito esperança de que essa radicalização surja e se desenvolva um novo movimento progressista que assimile as lições do fracasso da esquerda do século XX e lidere o caminho para a reversão do atual aumento neofascista e um novo impulso para outro mundo que nao seja este cada vez mais feio em que vivemos.

Gilbert Achcar é professor emérito de Estudos de Desenvolvimento e Relações Internacionais na SOAS da Universidade de Londres. Seu novo livro, The Gaza Catastrophe: the Genocide in World Historical Perspective, foi publicado por Saqi: 17 de julho de 2025 HubMP2012.