POR HUGO ALBUQUERQUE
Via Jacobina
Nova primeira-ministra do Japão ameaça a China, criando uma das maiores tensões entre os dois países desde o final da Segunda Guerra Mundial - trazendo sérios riscos para o mundo todo.
Sanae Takaichi se tornou, no final de outubro, a primeira mulher chefe de governo do Japão. Essa notícia, que parecia interessante inicialmente, não resistiu a uma pesquisa básica sobre as posições políticas dela: ao longo de três décadas como deputada pelo hegemônico Partido Liberal-Democrata (PLD) [Jiyū-Minshutō 自由民主党] — ou, apenas, Jimintō 自民党 — Takaichi foi uma das vozes mais ativas da extrema direita de seu país.
Em menos de um mês no cargo, Takaichi vociferou um discurso belicista antichinês que atinge a questão de Taiwan. Ao sugerir que o Japão poder intervir em Taiwan, baseado em um suposto risco que ela correria por conta da China, ela reabriu feridas antigas e dolorosas. Um fato que passa despercebido nessa declaração é de que o Japão anexou Taiwan entre 1895 e 1945, exercendo um domínio colonial impiedoso, como parte de um plano imperialista para submeter toda a China continental.
O aparente recuo de Takaichi, depois da pressão chinesa, não muda o caráter estratégico do seu governo, mas representa apenas uma dissimulação tática. Nesse sentido, a extrema direita japonesa se move na forma de aproximações sucessivas, a famosa marcha do pato, no qual recuos escondem sua direção obstinada — e perigosa. As intenções são claras, e ainda que se possa simplificar a situação como ela estar sendo usada por Donald Trump, a história é mais complexa do que isso.
O atual governo japonês é sintoma do ganho de força da ala de extrema direita dos liberais-democratas. Isso é marcado pela relativização do passado imperialista, visitas ao templo de Yasukuni, onde estão consagrados inúmeros criminosos de guerra, e uma postura hostil contra a China. A esquerda nipônica ainda resiste, embora muito minoritária, e tem protagonizado embates duros, muitas vezes vocalizados por Taro Yamamoto, líder do partido de esquerda Reiwa Shinsengumi [れいわ新選組].
O elogio ao passado feito por Takaichi está junto da sujeição estratégica aos Estados Unidos, em um momento de inflexão antichinesa de Washington. Mas isso não é um paradoxo, no entanto, uma vez que o fascismo japonês, derrotado no campo de batalha pelos Aliados, não foi extirpado, mas apenas domesticado e posto para funcionar sob nova roupagem no pós-guerra — mas antes disso, lembremos que o imperialismo japonês funcionou por décadas sob a sujeição ao eixo anglo-americano.
A situação geral do Japão preocupa: estagnação econômica, diminuição acelerada da sua população, e, paradoxalmente, um pânico moral contra imigração que favorece a extrema direita dentro do PLD, mas também gera novos partidos neofascistas. Enquanto isso, o maior partido de oposição, o Partido Democrático Constitucional [Rikken Minshutō 立憲民主党], parece paralisado — e a nova rodada de confronto com a China é perigosíssima. É necessário, pois, fazer um resgate histórico das causas disso.
À sombra das bombas atômicas, uma reconstrução sem desfascistização
Passados 80 anos da vitória dos Aliados na Ásia-Pacífico, se ignora que embora as forças armadas nipônicas, representando o Eixo, tivesssem apenas cerca de metade do tamanho das tropas nazifascistas da Europa, elas mataram quase o mesmo número de pessoas — e prática de genocídio, tortura e até experimentos com seres humanos vivos, o que levou a instalação do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, um equivalente asiático do Tribunal de Nuremberg.
Depois da derrota alemã e italiana, e o consequente fim da guerra na Europa, o conflito contra o Japão continuava. Os soviéticos mantinham a neutralidade contra Tóquio, mas estavam obrigados a mudar essa posição — assim o foco dos Aliados se voltava todo para a Ásia-Pacífico. No início de 1945, o Japão ainda insistia em lutar, embora estivesse duramente desgastado pelos ataques americanos e, principalmente, a resistência chinesa — decisiva, sobretudo, pelos guerrilheiros comunistas.
O gabinete de guerra dos Estados Unidos se dividia: uma parte defendia a estratégia de pressão sobre a União Soviética para participar de uma invasão conjunta ao território japonês, enquanto a outra esperava deixar Moscou de fora para não compartilhar poder. Os testes bem-sucedidos da bomba atômica favoreceram o segundo grupo, que decidiu por forçar a rendição incondicional, já proposta há meses, por meio dos brutais bombardeios nucleares a Hiroshima e Nagasaki.
Antes disso, é preciso considerar que os americanos já impunham pesados bombardeios convencionais a áreas civis japonesas, tudo para forçar a opinião pública do inimigo a se render. Com o uso de uma arma nova e completamente destrutiva, somada à disposição dos Estados Unidos de usá-la contra civis, a monarquia japonesa se rendeu, e a ocupação americana no arquipélago teve início para durar até hoje, moldando o país para sempre.
O objetivo da ocupação americana do Japão eram semelhante à da ocupação da Europa Ocidental: criar um novo regime político, mas manter o sistema capitalista, só que daquela vez submetido aos Estados Unidos, enquanto se buscava esmagar os levantes populares e operários — inevitáveis tanto pela fúria contra a destruição do país quanto pela queda do antigo aparato repressor fascista. Diferentemente da Primeira Guerra, os Estados Unidos despejaram rios de dinheiro na reconstrução de seus ex-inimigos.
Socialistas e comunistas se tornaram grandes forças políticas, apesar da manutenção da monarquia e o impulsionamento das antigas alas anglo-americanas da nobreza, da burocracia e da política. O choque pela derrota acachapante, o discurso de rendição do imperador e a destruição massiva deixavam o Japão aturdido e em busca de mudança. Em um momento de enorme esperança internacional com o socialismo, a ocupação americana e a direita japonesa tinam um grande desafio.
Para piorar, a direita do Japão estava rachada, o que se expressava pela rivalidade entre Ichiro Hatoyama e Hitoshi Ashida. Após um breve primeiro gabinete de direita, o Partido Socialista [Nihon Shakaitō 日本社会党] conseguiu o impossível: ele venceu as eleições de 1947, despertando pavores consideráveis nas forças de ocupação — teriam os americanos de aceitar a social-democracia também no Japão, ainda mais um tempo de ascensão das esquerdas na Ásia?
A história não contada da esquerda japonesa moderna
Ainda no século XIX, o Japão foi o primeiro país do Extremo Oriente a iniciar uma empreitada industrializadora e modernizante com a Restauração Meiji. Dito isso, ele experimentou a prosperidade, mas também as dores trazidas pelo capitalismo, com a formação abrupta de um proletariado nas décadas finais do século XIX. Não à toa, foi o porto de entrada de ideias como socialismo, anarquismo, marxismo e tantas outras naquela região do mundo — mas a esquerda foi duramente reprimida.
O sistema parlamentar japonês do final do século XIX nasce de uma primeira experiência eleitoral, ainda censitária e duramente restritiva, em 1890, depois reformada seguidas vezes, ampliando o acesso das massas. Duas alas, uma liberal e a outra conservadora, disputavam o poder enquanto o país mantinha duas grandes constantes: a expansão acelerada do capitalismo via imperialismo na Ásia e a repressão à esquerda dentro do país.
Ainda no século XIX, a Coreia foi cooptada pelo Japão, primeiro em uma estratégia de tomar o lugar da China e, depois, aconteceu a anexação formal de 1910. Mas a primeira anexação foi a anexação de Taiwan, até bem pouco tempo apenas uma prefeitura chinesa que foi transformada em província apenas em 1887, embora fosse ocupada pelos chineses desde o final do século XVII — com uma população majoritariamente oriunda da província de Fujian, no continente.
Portanto, a vitória dos socialistas em 1947, além da reconstrução do Partido Comunista em 1945, que foi fundado em 1922, representava o resultado da desmoralização da política tradicional japonesa, a insatisfação dos trabalhadores com as condições do país e uma esperança de reconstrução do país por outra via que não capitalismo. A ocupação americana não poderia tolerar isso, ainda mais com a moral alta dos comunistas na China — que logo faria sua própria revolução –, Coreia e Vietnã.
O aparato de poder que unia a ocupação americana à monarquia rendida do Japão passou a reunir as direitas, enquanto buscava favorecer setores moderados de socialistas e comunistas, os quais se conformavam com o quietismo — e a partir daí, a luta para reprimir reformistas mais radicais entre os socialistas passou a ser interna. O mesmo aconteceu com os comunistas, que foram proscritos do parlamento em 1952, durante o chamado Curso Inverso.
O cenário era claro, com a Revolução Chinesa de 1949, o avanço comunista contra o regime títere da Coreia do Sul e os levantes guerrilheiros no Vietnã o general Douglas MacArthur se via cercado. Disposto a adotar uma estratégia agressiva, ele desobedeceu até mesmo ordens presidenciais, e cogitou um ataque nuclear à China. Dentro do Japão, a política era reprimir as esquerdas, dividindo-a e favorecendo as alas moderadas e domesticadas dos socialistas e comunistas.
O resultado foi a vitória das alas moderadas entre socialistas e comunistas; isso se expressa, por exemplo, pela longa hegemonia de Kenji Miyamoto na liderança do Partido Comunista, (1958-1982) com o comunismo japonês se tornando uma linha auxiliar dos socialistas, rompendo com o Bloco Comunista e, ainda, praticando uma linha muito até pior que o o eurocomunismo — razão pela qual os estudantes rebeledes dos anos 1960 rompem com o partido, por meio da Zengakuren [全学連].
Os socialistas, por outro lado, chefiaram a oposição japonesa de forma cada vez mais moderada, elegendo quase sempre mais do que 100 deputados, e fazendo quase um terço do parlamento. Mas o poder do Partido Liberal-Democrata, formado como reunião das direitas em 1955, sob a liderança moderada de Hatoyama, se tornou o partido hegemônico do país, governando o Japão desde então, apenas com duas pequenas interrupções desde então: entre 1993-1996 e entre 2009-2012.
A política do Japão hoje
Com o fim do Socialismo Real e a crise da social-democracia europeia, os socialistas japoneses desfizeram seu partido. Eram tempos, também, de crise econômica induzida no Japão, praticamente uma segunda rendição incondicional: os acordos de Plaza (1985), quando o país aceitou sacrificar seu desenvolvimento econômico para não ameaçar a liderança americana. O resultados foram duradouros na economia e, logo, na política do país do sol nascente.
Os liberais-democratas perderam o poder também nos anos 1990, com a fragmentação parlamentar, mas foi em 2008, na esteira da crise mundial, que veio sua grande derrota: o então novo partido governante, o Partido Democrático [Minshutō 民主党], de corte liberal, liderado por ninguém menos do que Yukio Hatoyama, neto de Ichiro Hatoyama — o que, por ironia, era sintoma do deslocamento à direita de toda política japonesa: os Hatoyama não mudaram, mas a política do Japão sim.
Esse breve governo não sobreviveu muito tempo, inclusive sofrendo um assédio considerável dos Estados Unidos, que não aceitou políticas como o fim das bases militares do país. O retorno dos liberais-democratas foi marcado por uma inflexão à extrema direita, inclusve pela presença de membros da bisonha organização Nippon Kaigi [日本会議], quase um partido dentro do PLD, de onde vieram todos os premiês japoneses desde então, incluso Takaichi.
Se houve um sopro progressista em 2008, certamente isso se deveu ao enfraquecimento momentâneo do poder dos Estados Unidos no mundo, sendo a ocupação liderada pelo país a principal fonte de sustentação do reacionarismo japonês. Nas eleições para a Câmara Alta deste ano, o Partido Comunista perdeu cadeiras e o Reiwa é quem avançou, mas foram novos partidos da extrema direita a ganhar força, como o Sanseito [参政党] e o Partido Conservador.
Foram essas eleições que levaram a troca do moderado e errático Shigeru Ishiba, ainda que também fosse membro formal da Nippon Kaigi, pela radical Takaichi — que parece realizar de forma terceirizada o papel de assédio à China, dentro dos desígnios de Donald Trump, que tem produzido uma série de pontos de tensão ao redor do planeta. Ainda que tem um caráter cênico, não podemos desprezar os riscos do militarismo japonês.
Esse erro, ocorrido também nos anos 1930, quando as evidências apontavam pela manutenção do Japão na esfera americana, que submetia o país por uma série de tratados navais, os quais, no entanto, lhe produziam espaço para avançar sobre a Ásia. Pouco antes da Segunda Guerra, o Japão não estava numa situação muito diferente de hoje –e não é que precise mudar, uma vez que com o trumpismo no poder na Casa Branca, a aliança aqui pode ser bem orgânica.
Influenciar em Taiwan pode, objetivamente, ser uma retomada do paradoxal imperialismo submetido do Japão do século XIX até a aliança com as Forças do Eixo, somente em 1936 — quando até então ele reproduzida um sistema parlamentar mais à moda ocidental usual do que qualquer forma semelhante do modelo corporativista do nazifascismo. A chave para entender a virada é pensar nas sociedades militaristas lá atrás e aqui também.
A conexão do Dragão Negro e o porquê de Taiwan importar tanto
Ironicamente, enquanto denunciava o imperialismo ocidental no início do século XX, o Japão realizava sua própria atividade imperialista, muitas vezes escamoteada pelo pan-asianismo — que escondia o desejo de domínio territorial japonês sobre a Ásia. Organizações como a Sociedade do Dragão Negro [Kokuryūkai 黒竜会] eram decisivas nisso: seu nome derivava do rio conhecido entre nós como Amur, mas chamado de Dragão Negro por japoneses e chineses.
Essa sociedade preconizava a luta contra o avanço russo sobre a Manchúria, onde se encontra o Amur/Dragão Negro, e está na origem da guerra entre Japão e Rússia de 1904 — com a retumbante vitória nipônica. Mas o Dragão Negro agia influenciando o republicanos chineses, ajudando inclusive Sun Yat-sen a fundar o Kuomintang ou Chiang Kai-shek a tomar o poder depois da morte de Sun — o que pode explicar a linha inicialmente frouxa de Chiang contra os japoneses e a tomada da Manchúria.
Mas um detalhe interessante, apesar do atual Kuomintang, reduzido a partido de oposição em Taiwan, ser defensor da política de Uma só China, o presidencial Partido Democrático Progressista, embora não tenha maioria parlamentar, tem uma linha próxima à burguesia e à pequeno-burguesia de chineses pré-1945 das ilhas — que eram, basicamente, a burguesia comprada e servil ao domínio japonês no período. O histórico da direita japonesa de uso de divisões na China, contudo, persiste.
Com o presidente da ilha William Lai sem maioria parlamentar, a movimentação japonesa é uma encenação que reascende velhas práticas e alianças no Extremo Oriente — onde tudo é sempre muito antigo e duradouro. A independência de Taiwan, com a diferença regional dos chineses min-nan da ilha, que a ocupavam desde antes da chegada dos exilados do continente em 1949-50, elevada à “singularidade nacional”, passa por um interesse comum com o Japão.
Nas comemorações gigantescas sobre a vitória chinesa na Segunda Guerra, entre os ex-premiês do Japão, apenas Yukio Hatoyama esteve presente — e isso foi coerente com sua breve passagem pelo poder, e sua tradição familiar, que se opôs as linhagens mais agressivas do militarismo japonês, exergando hoje a ocupação militar americana, e seu sistema político, como uma real ameaça ao seu país e não a China.
Quando o atual governo nipônico discute posicionar mísseis a pouco mais de 100 quilômetros de Taiwan, volta-se, portanto, à estratégia do imperialismo japonês pré-aliança com o Eixo: uma incômoda sujeição à dupla anglo-americana, que permitia avanços relativos sobre toda a Ásia, especialmente sobre a China. O Japão, convenhamos, não foi realmente desarmado, mas teve suas forças armadas reconstruídas como uma força de apoio dos Estados Unidos no Extremo Oriente.
É claro, isso pode ser diversionismo para esconder os problemas que o Japão passa, sobretudo depois que se tornou uma economia a serviço das operações de carry trade, como enfoca José Kobori: investidores internacionais tomam empréstimos no país para comprar títulos da dívida americana, baseados nos juros relativamente mais baixos do Japão — e há riscos econômicos consideráveis se os juros americanos caírem mais, forçando o Japão a diminuir suas taxas, mesmo com inflação crescente.
Os riscos militares, contudo, são altíssimos. O Extremo Oriente, hoje, possui boa parte do PIB global e produz boa parte do crescimento econômico mundial, portanto uma faísca que possa levar a uma guerra na região seria um evento de proporções catastróficas. Não à toa, Takaichi sofreu duras críticas de muitos dos ex-premiês do Japão, e a China lhe tem enviado advertências duras. Mas com ela em sintonia com a insanidade de Trump, a humanidade tem motivos para estar em alerta.
é publisher da Revista Jacobina, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP e advogado..