Por Beatriz Drague Ramos
Via Brasil de Fato
Um dia antes da proclamação das eleições, grupo tomou o poder, fechou as fronteiras e decretou toque de recolher.
Às vésperas do anúncio oficial do resultado das eleições presidenciais em Guiné-Bissau, que aconteceria na quinta-feira (27), um grupo de militares, ligados ao atual governo do país, promoveu um golpe de estado, ou um autogolpe, como avalia a oposição do país.
“Exatamente no dia 26 [quarta-feira], estava no meu escritório e a minha esposa me liga dizendo que estava ouvindo tiros”, relatou Iancuba N’djai, deputado da Assembleia Nacional Popular, veterano do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).
Foram tiros que duraram cerca de uma hora perto da comissão eleitoral, do palácio presidencial e do Ministério do Interior, sem relatos de vítimas.
N´djai disse ao Brasil de Fato que estava eufórico após a votação do domingo (23) com a possível vitória do candidato presidencial independente apoiado pelo PAIGC, Fernando Dias da Costa. Segundo o deputado, apenas na sua região eleitoral, Dias da Costa havia conquistado 61% dos votos.
Para N’djai, o que está ocorrendo no país é um autogolpe do governo atual do presidente Umaro Sissoco Embaló. “Todos estávamos à espera que no dia seguinte, no dia 27, haveria o anúncio dos resultados finais das eleições, quando, de repente, ouvimos esses tiros e surpreendentemente um golpe de Estado, um tiroteio sem inimigos, sem adversários, não havia ninguém.”
“Essa manobra não foi uma surpresa total, porque, apesar de o sentimento predominante no país ser de revolta, toda a população adulta sabe que era um teatro, um autogolpe que visa exatamente anular o voto popular, anular a expressão popular que foram as eleições na urna”, completou o deputado.
]A coalizão de Dias da Costa, reivindica a vitória com 51,08% dos votos, também defende a tese de “autogolpe”, acusando Embaló de encenar a crise por temer perder nas urnas. Eles exigiram a divulgação imediata dos resultados e a libertação do ex-primeiro-ministro Domingos Simões Pereira, e outros detidos pelas forças de segurança. Em setembro, a Suprema Corte de Justiça, que também atua como Tribunal Constitucional, rejeitou a candidatura de Simões Pereira.
A ruptura e a nova liderança militar
Na quarta, líderes da junta militar autodenominada “Alto Comando Militar para a Restauração da Ordem” anunciaram na televisão estatal a deposição do presidente Umaro Sissoco Embaló, a suspensão do processo eleitoral, o fechamento das fronteiras e a imposição de um toque de recolher.
No dia seguinte, quinta-feira (27), a junta empossou o general Horta N’Tam, até então chefe do Estado-Maior do Exército, como presidente interino, com um mandato de transição previsto para um ano. “Acabo de ser empossado para liderar o Alto Comando”, disse N’Tam no quartel-general, prometendo medidas urgentes para um país que “atravessa um período muito difícil de sua história”.
Paralelamente, o próprio presidente Embaló telefonou para veículos franceses anunciando o golpe. Seu paradeiro era desconhecido até que o Ministério das Relações Exteriores do Senegal confirmou sua chegada a Dacar em um voo especial, após intervenção da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental ( Cedeao).
A situação gerou preocupação internacional, já que o ex-presidente da Nigéria, Goodluck Jonathan, que atuava como observador, ficou incomunicável por um período.
As raízes da crise: inconstitucionalidade e pobreza
A Guiné-Bissau, um pequeno país costeiro da África Ocidental, já registrou pelo menos nove golpes ou tentativas de golpes desde sua independência de Portugal em 1974, até a sua mais recente crise política explodir esta semana.
Segundo N´djai, o golpe militar em curso não é um evento isolado, mas sim o sintoma de problemas estruturais profundos, entre eles, a inconstitucionalidade de diversos atos governamentais, a repressão política e a grave crise econômica do país.
“Os governos do Sissoco foram governos inconstitucionais”, afirmou N’djai. Ele lembrou que Embaló já havia dissolvido o parlamento em 2023, alegando tentativa de golpe, uma ação que violava as disposições constitucionais que protegiam o parlamento nos seus primeiros 12 meses.
N’djai também acusa o governo de Embaló de aumentar os custos dos bens de primeira necessidade, agravando a pobreza extrema. “A cada dez guineenses, sete vivem abaixo do mínimo necessário para sobrevivência, abaixo de 1 dólar por dia.”
Além da instabilidade política crônica, a Guiné-Bissau é conhecida como um importante ponto de trânsito de cocaína da América Latina para a Europa. Especialistas apontam que o tráfico aumentou durante o mandato de Embaló, ligando a fragilidade das instituições à corrupção e à influência de milícias nas estruturas de poder.
Reações internacionais
O Ministério das Relações Exteriores do Brasil divulgou uma nota condenando a “suspensão arbitrária” das eleições e apelou às forças políticas para que retomassem o diálogo pacífico.
O Governo de Cabo Verde, membro da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) e país vizinho, também condenou “com veemência, qualquer tomada do poder pela força” e apelou para o rápido restabelecimento da ordem constitucional, incluindo a conclusão do processo eleitoral.
Iancuba N’djai foi direto no pedido de apoio internacional. “O apelo aqui é para que a comunidade internacional nos ajude a resolver isto com o povo da Guiné-Bissau.”
Entrevistado pelo Brasil de Fato no Níger, Iancuba N’djai é aluno da antiga Escola Piloto, considerada a base da formação ideológica do PAIGC, além de combatente da Liberdade da Pátria durante o processo de independência do país. Ele conheceu Amílcar Cabral, principal líder pela independência do país e fundador do PAIGC, ainda na infância.
“Cabral não só organizou o partido, como conseguiu tornar um partido revolucionário neste país, conseguiu mobilizar o povo, conseguiu unir as diferentes etnias do país. Temos 36 grupos étnicos. Cabral conseguiu, na base do princípio da unidade de luta, unir esse povo para lutar contra o colonialismo português”, pontuou em março deste ano.