A corrida armamentista apenas começou. A única esperança repousa no internacionalismo dos que vivem do trabalho, os explorados e oprimidos
“Estamos de punhos fechados, mas com as mãos nos bolsos.”
– Rosa Luxemburgo
A esquerda mundial se interroga quem venceu a guerra no Irã. A sobrevivência do governo Khamenei no Irã não deve ser romantizada. O desfecho da guerra iniciada pela agressão de Israel ao Irã, e interrompida somente depois do massivo bombardeio norte-americano, um ataque com as armas mais poderosas do arsenal mais letal do mundo, à exceção das armas nucleares, foi uma demonstração inequívoca de que a supremacia dos EUA no sistema internacional de Estados continua de pé, alicerçada na superioridade militar. Não está intacta, mas permanece.
A vitória militar contra o Irã foi de tipo tático, não de natureza estratégica. Existiu algo de fato paradoxal neste desenlace. Dizemos que algo é paradoxal quando estamos diante de uma realidade contraintuitiva, ou seja, que nos surpreende. Militarmente, Teerã conseguiu quebrar a inviolabilidade do “Domo de Ferro” de Israel, mas esta façanha não equivale à devastação que Tel Aviv conquistou ao dominar o espaço aéreo iraniano. A principal vitória de Netanyahu foi política, ao comprometer Trump com uma guerra decidida em Israel. Os super-bombardeiros yankees demonstraram poder arrasador, silenciaram o Irã, e serviram para sinalizar para Moscou e Pequim a potência militar de Washington. Trump impôs a Netanyahu um cessar-fogo, portanto, a suspensão da estratégia sionista de demolição do regime islâmico no Irã.
O cálculo de que uma guerra aérea de destruição das instalações militares e das centrífugas de enriquecimento de urânio seria um gatilho para uma revolução democrática contra o regime se revelou totalmente errado. Os EUA sabiam que as alegações de Israel contra a bomba nuclear eram infundadas. Mas uma invasão do Irã era insustentável, por muitos fatores. Em primeiro lugar, porque Israel não poderia fazê-lo sem um engajamento no terreno de soldados norte-americanos, algo incompatível com a estratégia de Trump.
A supremacia dos EUA está ameaçada. Abriu-se um novo período ou etapa histórica, em função de mudanças nas relações sociais e políticas de força, mas a inércia e rigidez do sistema de Estados é grande. A etapa internacional aberta em 1989/91, quando da derrota histórica da restauração capitalista na ex-URSS, se encerrou. A “ordem mundial” da “globalização” não colapsou, ainda que tenham aumentado os fatores de turbulência. Não fosse a hegemonia dos EUA, seria impensável a guerra de extermínio em Gaza, consideradas as atrocidades do genocídio diário em transmissão ininterrupta pela mídia mundial. Mas é verdade que a vitória militar contra o Irã foi de tipo tático, não de natureza estratégica.
Embora Netanyahu tenha arrastado Trump para uma ofensiva de castigo, Washington nunca considerou um plano de guerra até a derrubada do regime. Há uma coerência com a linha de Washington para a guerra na Ucrânia. A suspensão da entrega de armas para o governo de Zelensky na Ucrânia obedece a uma ruptura, também, com a estratégia da União Europeia diante da Rússia. Trump, diferente de Biden, nunca esteve disposto a manter, indefinidamente, apoio a uma guerra sem possibilidade de vitória militar, a não ser um envolvimento total cujo epílogo teria que ser uma aposta na derrubada de Putin. Isso seria arriscar uma guerra atômica, uma aposta suicida.
Um dos indicadores da mudança na relação de forças entre Estados é o novo lugar da Rússia. Putin invadiu a Ucrânia consciente de que a União Europeia iria sustentar Kiev indefinidamente, mas não iria nunca além do apoio militar a Zelensky. A Rússia se consolidou como um estado imperialista subalterno que ambiciona manter influência regional, demonstrada no controle da Crimeia em 2014, invasão da Geórgia, deslocamento de tropas para o Cazaquistão e Bielorrússia para defender regimes ameaçados por mobilizações populares e, finalmente, invasão da Ucrânia em 2022.
Mas há outros fatores em escala internacional. A França perdeu posições históricas na África Ocidental. A Coreia do Norte permanece intacta com seu arsenal nuclear, na fronteira de Seul, um protetorado defendido pela presença de dezenas de milhares de soldados yankees. O regime do Irã se manteve de pé, apesar da agressão de doze dias de Israel. A Índia não é mais uma semicolônia anglo-norte-americana. A Venezuela possui a maior reserva mundial de petróleo, e é um país independente, que conseguiu resistir a uma pressão impiedosa nas últimas eleições presidenciais. O fortalecimento do Mercosul sob liderança do Brasil, associado ao Chile e Bolívia, e a presença do governo Petro na Colômbia, além da resistência heroica de Cuba, indicam uma perda de influência na América do Sul, o que se agrava pela eleição de Claudia Sheinbaum no México. Não fosse o bastante, os Brics ampliaram participação com novas adesões e a cimeira do Rio de Janeiro, mesmo que não vá além da reafirmação de uma articulação comercial, renunciando a qualquer iniciativa de desdolarização, diante do ultimato de Trump, é uma força de contenção. O mundo ficou muito mais perigoso do que foi nos últimos trinta e cinco anos.
Durante vinte e cinco anos prevaleceu uma supremacia indiscutível da Tríade, sob liderança unilateral dos EUA, mas compartilhada com a UE e associada ao Japão, com a hegemonia de um projeto liberal de mundialização da circulação livre de capitais e mercadorias. Ocorreu o fortalecimento das organizações do sistema ONU, em particular as iniciativas de transição energética diante do aquecimento global que culminaram no Tratado de Paris, consolidação da OMC com a incorporação da China. Mas a realidade foi, desde 2015, qualitativamente distinta. A economia capitalista, em especial nos países da Tríade, passou a andar de lado, pela primeira vez desde o final da Segunda Guerra Mundial. A estratégia de QE (relaxamento monetário) contornou a ameaça catastrófica de uma depressão internacional, mas não conseguiu evitar uma longa estagnação, aprofundada durante a pandemia, enquanto a China permanecia crescendo, quase ininterruptamente. A “globalização” está interrompida, e voltamos a uma situação de crescente protecionismo confirmada pela avalanche de tarifas sobre importações dos EUA, que detém a maior parcela do mercado mundial. Exercerá o poder do mais forte.
Mas Trump é consciente que o peso relativo dos EUA diminuiu e, ainda que mantenha superioridade militar e supremacia financeira, não é mais possível um poder unipolar. Os EUA sob Trump estão com uma nova estratégia de preservação da hegemonia no sistema internacional de Estados. Trata-se de uma contra-ofensiva de longa duração. Ela obedece ao cálculo de que é indispensável isolar o inimigo principal: Pequim. A hipótese de uma lenta absorção subordinada da China no sistema de Estados é improvável. Nos últimos dez anos, desde o Brexit, um laboratório político-eleitoral no Reino Unido, uma fração da classe dominante ocidental se deslocou para a extrema-direita para impor uma derrota histórica às suas classes trabalhadoras, erradicando as concessões feitas às últimas duas gerações: educação e saúde gratuitos, financiamento subsidiado da habitação, transportes públicos, aposentadorias por repartição, férias de treze ou até quatorze salários.
Esta estratégia de aceleração do movimento de acumulação de capital e superexploração obedece, sobretudo, à luta pela preservação da hegemonia mundial contra a China. A febre nacional imperialista nos EUA tem sintomas ideológicos degenerados: machismo, racismo, homofobia, anti-intelectualismo e fanatismo messiânico. Mas a ascensão do neofascismo responde a um projeto estratégico em construção: regimes autoritários que fortaleçam a coesão social interna para poder enfrentar a ameaça que vem do Oriente. A corrida armamentista apenas começou. Diante deste novo período os desafios colocados para a esquerda mundial serão gigantescos. A única esperança repousa no internacionalismo dos que vivem do trabalho, os explorados e oprimidos. Mas o tempo não corre a nosso favor. Mais do que nunca, devíamos estar com pressa. E tirar as mãos dos bolsos.
(*) Valério Arcary é historiador e professor titular aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.