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Tony Blair em Gaza e o plano de Trump: paz, tutela ou ambição de Nobel?

30 de setembro de 2025

O plano de Trump e Blair revela muito mais sobre as ambições de poder das grandes potências do que sobre a busca sincera da paz. A paz duradoura não nascerá de tutores externos nem de líderes impostos.

O anúncio de um plano de 20 pontos para encerrar a guerra em Gaza, divulgado por Donald Trump e aceito por Israel, trouxe uma combinação curiosa: a criação de uma “autoridade internacional transitória” para governar o território palestino devastado e a presença de Tony Blair, ex-primeiro-ministro britânico, indicado para desempenhar um papel central na transição em Gaza.”

Não se trata apenas de mais um capítulo das intermináveis tentativas de paz no Oriente Médio. É também uma jogada política carregada de interesses, memórias dolorosas e aspirações de poder global.

De acordo com a proposta, chamada Gaza International Transitional Authority (GITA), Gaza seria administrada provisoriamente por tecnocratas palestinos supervisionados por um “Board of Peace” internacional. Esse conselho coordenaria a reconstrução, a segurança e a governança até que eleições fossem realizadas. Blair aparece como o “tecnocrata” idealizado para supervisionar o processo, com experiência em diplomacia e contatos no Ocidente e no mundo árabe. Mas, no centro de tudo, está Donald Trump — artífice do plano, fiador político e provável candidato a colher os frutos de um eventual sucesso.

Tony Blair governou o Reino Unido entre 1997 e 2007, liderando o Partido Trabalhista em sua fase mais alinhada ao centro político e ao neoliberalismo, conhecida como “New Labour”. Foi um dos líderes mais midiáticos da virada do século e, ao lado de George W. Bush, tornou-se um dos principais defensores da invasão do Iraque em 2003, decisão que lhe rendeu enorme desgaste internacional. Após deixar o cargo, dedicou-se a consultorias privadas, discursos pagos e missões diplomáticas, incluindo a de enviado especial para o Oriente Médio, função que manteve entre 2007 e 2015. Para muitos, é lembrado como político experiente e habilidoso; para outros, como figura controversa, associada às guerras do petróleo e à imposição de agendas ocidentais na região.

Blair: a face da administração

A escolha de Blair portanto não é casual. Ele conhece a linguagem das negociações multilaterais e ainda cultiva influência junto a líderes árabes e ocidentais. Para Washington, seu nome garante certa credibilidade junto à comunidade internacional e pode facilitar o acesso a financiamento para a reconstrução de Gaza.

A lógica lembra experiências anteriores em Kosovo e Timor-Leste, onde administrações internacionais assumiram o comando após conflitos violentos. O raciocínio é simples: Gaza, destruída por bloqueios e bombardeios, precisaria de uma tutela temporária para se reerguer antes de retomar o autogoverno.

Não se pode esquecer que Tony Blair foi um dos principais arquitetos da invasão do Iraque em 2003. Foi ele quem sustentou, no Parlamento britânico e diante da opinião pública mundial, a falsa alegação de que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa prontas para serem usadas em apenas 45 minutos — um dossiê que depois se revelou manipulado e sem fundamento. O resultado foi a destruição de um país, centenas de milhares de mortos, o fortalecimento do extremismo e uma mancha indelével em sua biografia política. Apresentar hoje Blair como gestor da paz em Gaza é, portanto, uma contradição gritante: o mesmo homem que justificou uma guerra baseada em mentiras aparece agora travestido de pacificador.

Trump: o verdadeiro protagonista

Ainda que Blair surja como executor, o grande protagonista é Donald Trump. Ele não apenas apresentou o plano de 20 pontos em conjunto com Netanyahu, como também se colocou no centro da engrenagem: é Trump quem lidera a negociação, define as condições impostas ao Hamas — como desarmamento e devolução de reféns — e supervisiona a criação da autoridade de transição.

Se Blair é o “gestor técnico”, Trump é o arquiteto político. Ao propor a si mesmo como fiador da paz em Gaza, Trump se projeta como árbitro global, capaz de redesenhar o destino de um dos conflitos mais longos e sangrentos do planeta. E aqui se abre a questão central: trata-se de um gesto genuíno em busca da paz ou de uma operação calculada para reforçar sua imagem e até mesmo pavimentar o caminho rumo ao Prêmio Nobel da Paz?

Semana passada em Nova York, quando Netanyahu subiu ao púlpito na Assembleia Geral das Nações Unidas, dezenas de delegações se levantaram e deixaram o salão em protesto antes mesmo de seu discurso começar — gesto eloquente de condenação silenciosa à narrativa israelense. A Câmara ficou às moscas, um retrato visual do isolamento diplomático que Israel tem enfrentado. Óbvio que essa cena não passou desapercebida por Trump: um sinal da intolerância da comunidade internacional contra o bárbaro genocídio em Gaza.

O cálculo do Nobel

Não é segredo que líderes mundiais frequentemente buscam reconhecimento simbólico por iniciativas de paz. No caso de Trump, o plano de Gaza funciona como uma plataforma para se apresentar como “pacificador” diante da opinião pública internacional. Se fosse bem-sucedido, poderia construir a narrativa de que Trump conseguiu onde todos os outros fracassaram: mediar um cessar-fogo duradouro e reconstruir Gaza.

O Nobel da Paz, nesse contexto, aparece como horizonte possível. Afinal, não seria a primeira vez que um acordo de paz improvável rendesse laureado ao mediador. Mas a estrada até lá é pedregosa. Primeiro, porque a credibilidade de Trump é profundamente polarizada, tanto interna quanto externamente. Segundo, porque a própria natureza do plano — uma autoridade de transição supervisionada por estrangeiros — pode ser vista como uma imposição neocolonial, fragilizando a legitimidade moral da iniciativa.

Paz imposta ou soberania negociada?

Aqui reside o dilema. Uma autoridade internacional pode, em teoria, garantir logística, recursos e reconstrução institucional. Mas não substitui a legitimidade política. Sem protagonismo palestino, qualquer plano corre o risco de ser percebido como ocupação disfarçada, mais uma versão de tutela estrangeira sobre um povo que luta há décadas pela autodeterminação.

A reconstrução de Gaza exige escolas, hospitais, energia, água potável e habitação. Mas exige, sobretudo, o reconhecimento do direito palestino de decidir o próprio destino. Um plano que coloca Blair como gestor e Trump como árbitro pode até mobilizar financiadores e abrir canais diplomáticos, mas dificilmente resolverá o núcleo do conflito: a ausência de um Estado palestino soberano, plenamente reconhecido pela comunidade internacional.

As fissuras internas e o papel de Doha

Não se trata apenas de palestinos versus israelenses. O plano já nasce com contradições internas. A extrema direita israelense, embora formalmente parte do governo Netanyahu, rejeita qualquer cessão de autoridade a organismos internacionais. Para os ultranacionalistas, Gaza deveria ser anexada, não reconstruída sob tutela. Esse radicalismo enfraquece a aplicação prática da proposta e mostra que nem mesmo dentro de Israel há consenso.

Ao mesmo tempo, a ausência do Catar no desenho central do plano revela uma fragilidade estrutural. Doha é o principal mediador com o Hamas, abriga sua liderança política e financia parte da sobrevivência humanitária em Gaza. Sem o Catar, não haverá desarmamento, nem libertação de reféns, nem recursos para reconstrução. Ao tentar ignorar esse ator fundamental, o plano corre o risco de se tornar um exercício de retórica sem base concreta no terreno.

A paz verdadeira exige autodeterminação

O plano de Trump e Blair revela muito mais sobre as ambições de poder das grandes potências do que sobre a busca sincera da paz. Pode trazer alívio imediato, reconstrução parcial e algum respiro para uma população exausta. Mas a paz duradoura não nascerá de tutores externos nem de líderes impostos.

A paz só será possível com autodeterminação dos povos. Isso significa reconhecer o direito inalienável dos palestinos à criação de seu próprio Estado, com soberania política e territorial, e respeitar o princípio básico de igualdade entre nações. Sem isso, qualquer proposta — mesmo que embalada em discursos nobres, acompanhada da presença de Blair e da ambição de Nobel de Trump — será apenas mais um capítulo na longa lista de planos de paz que nunca chegam a ser paz..