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Cinco teses sobre a situação no Nepal

16 de setembro de 2025

Via Brasil de Fato

Após renúncia do primeiro-ministro em meio a protestos liderados pela juventude, narrativas circulam sobre as motivações.

Se a sua casa não está limpa, as formigas entrarão pela porta e atrairão as cobras.

A crise no Nepal se agravou no início de setembro, derrubando o governo de centro-direita de KP Oli. O estopim imediato foi a regulação e proibição das redes sociais em 4 de setembro. Os protestos contra essa medida foram recebidos com disparos da polícia, que resultaram na morte de 19 manifestantes. A repressão provocou manifestações ainda maiores, com ataques às casas de políticos, ao edifício do Parlamento nacional e ao palácio presidencial.

Diversas narrativas disputam espaço sobre o atual levante, mas duas se destacam:

Fracasso sistêmico de governança: anos de promessas não cumpridas, corrupção e alianças oportunistas teriam gerado uma crise de legitimidade não de um partido em particular, mas de todo o establishment. O levante atual seria uma reação popular contra a negligência acumulada.

Tese da Revolução Colorida: os protestos seriam orquestrados por forças externas, em especial pelos Estados Unidos, com destaque para o financiamento da National Endowment for Democracy do Congresso norte-americano à organização Hami Nepal (fundada em 2015).

Ambas as leituras permitem que atores políticos no Nepal desviem responsabilidades – seja culpando forças estrangeiras ou um vago conceito de “classe política”. Nenhuma delas aborda a ordem burguesa subjacente e seus problemas: uma economia de clientelismo de mais de um século, o controle da terra, das finanças e dos contratos públicos por um oligopólio ligado à monarquia, e um modelo de crescimento dependente da exportação de trabalhadores migrantes e do endividamento para projetos de infraestrutura. Assim, as fontes estruturais do descontentamento popular são reduzidas a conceitos simplistas e chamativos, como “corrupção” e “revolução colorida”.

Nenhuma dessas teorias é totalmente falsa ou verdadeira. Ambas são parciais e, justamente por isso, podem induzir ao erro. Este texto não pretende corrigir essa parcialidade por completo, mas oferecer algumas ideias para o debate. As cinco teses abaixo são apresentadas apenas como pontos de partida para a discussão, não só sobre a crise nepalesa, mas também sobre o dilema de muitos países do Sul Global.

1 – Gestão equivocada da oportunidade

Com a promulgação da nova Constituição em 2015, havia grande expectativa de que a esquerda pudesse avançar nas condições sociais do país. Nas eleições de 2017, partidos comunistas conquistaram 75% das cadeiras no Parlamento. No ano seguinte, unificaram-se para formar o Partido Comunista do Nepal – uma união mais eleitoral do que programática. A ausência de um programa comum para enfrentar os problemas do povo por meio do Estado diluiu a oportunidade histórica que se abria.

A sigla se dividiu em 2021. Desde então, partidos de esquerda se revezaram no poder, vistos pela população como marcados por individualismo e oportunismo. Quando o então ministro do Interior Narayan Kaji Shrestha (Centro Maoísta, 2023-2024) tentou investigar práticas de corrupção, inclusive em seu próprio partido, foi forçado a renunciar. A partir de 2024, o governo passou a incluir a fração direitista da esquerda (liderada por KP Oli) e a direita tradicional (Congresso Nepalês), consolidando-se como centro-direita. A longa luta por democracia – da Revolução de 1951, passando pelo Jana Andolan de 1990 e o Loktantra Andolan de 2006 – parece derrotada, mas deve ressurgir sob novas formas.

2 – Falha em enfrentar os problemas básicos da população

Em 2015, o Nepal vivia problemas graves. Um terremoto devastador em Gorkha matou mais de 10 mil pessoas e deixou centenas de milhares sem casa. Um quarto da população vivia abaixo da linha da pobreza. Discriminação de casta e étnica aprofundava a sensação de injustiça. A região de Madhesh, na fronteira com a Índia, se sentiu ainda mais marginalizada pela Constituição. Serviços de saúde e educação públicos, historicamente subfinanciados, não correspondiam às aspirações de uma classe média emergente.

Governos de esquerda conseguiram avanços importantes: reduziram a pobreza (pobreza infantil de 36% em 2015 para 15% em 2025), expandiram a infraestrutura (acesso à eletricidade em 99%) e melhoraram indicadores de desenvolvimento humano.

Entretanto, a distância entre expectativas e realidade permanece grande. A desigualdade não caiu no ritmo esperado. A migração aumentou em níveis alarmantes. A percepção de corrupção segue elevada (107º lugar entre 180 países em 2024). A inflação e os acordos comerciais e financeiros desfavoráveis – como o retorno ao programa do FMI – restringiram ainda mais a capacidade fiscal do Estado.

3 – O refúgio na ideia de uma monarquia hindu

Parte da pequena burguesia nepalesa, frustrada com a dominação das castas superiores e influenciada pela política hindutva do estado indiano de Uttar Pradesh, passou a reivindicar a restauração da monarquia hindu. Cartazes com a imagem de Yogi Adityanath, líder do partido de direita Bharatiya Janata Party (BJP) e governador de Uttar Pradesh, circularam nos protestos. Forças como o Partido Rastriya Prajatantra (RPP) e aliados criaram comitês pró-monarquia em 2025.

Desde os anos 1990, a Hindu Swayamsevak Sangh (HSS), ligada à RSS indiana, organizou bases e quadros no Nepal. O bloco hindutva, articulado em torno da retórica anticorrupção e da caridade, mobiliza festivais religiosos, influenciadores online e setores marginalizados. Com estrutura sólida e discurso autoritário, apresenta-se como alternativa para restaurar a “ordem” em nome da monarquia e do Estado hindu.

4 – O desgaste da válvula migratória

Nepal tem hoje a maior taxa per capita de migração laboral do mundo, desconsiderando pequenos territórios. Dos 31 milhões de habitantes, 534,5 mil trabalham oficialmente no exterior. O número cresce sem parar: em 2000, 55 mil nepaleses tinham autorização de trabalho fora; em 2022-23 foram mais de 770 mil.

A juventude se revolta por não encontrar empregos dignos em casa e ser empurrada a ocupações precárias no exterior. Em fevereiro de 2025, o caso do jovem Tulsi Pun Magar, da comunidade Gurkha, que teria cometido suicídio em uma fazenda de suínos na Coreia do Sul, chocou o país. Nos últimos cinco anos, 85 nepaleses morreram na Coreia, metade por suicídio. Histórias como essa reforçam a percepção de que o governo valoriza mais investidores estrangeiros do que os próprios migrantes – mesmo que suas remessas superem qualquer capital externo.

5 – A influência externa dos EUA e da Índia

O governo de KP Oli manteve proximidade com os Estados Unidos, retomando diálogos sobre o Millennium Challenge Corporation (MCC), rejeitado anteriormente pela pressão popular. Em agosto de 2025, John Wingle, vice-presidente da MCC, esteve em Katmandu para negociar a continuidade de projetos.

Paralelamente, o governo de Narendra Modi, na Índia, estimulou a ascensão de partidos hindu-nacionalistas no Nepal. Se houve influência externa nos protestos de 2025, é mais provável que venha de Nova Délhi do que de Washington. Nenhum escritório do RPP foi atacado, enquanto comunistas foram alvo de violência em março, prenúncio do que se viu em setembro.

O Exército parece ter restaurado uma calma frágil. Mas é uma calma marcada por desordem e perigo. Ainda não se sabe o que virá. Entre os nomes cogitados para liderar uma transição estão a ex-chefe de Justiça Sushila Karki e o prefeito de Katmandu, Balendra Shah. São alternativas de caráter interino, sem mandato para mudanças estruturais. A aparência de neutralidade só tende a aumentar a desilusão com a democracia e prolongar a crise. Um novo primeiro-ministro, por si só, não resolverá os problemas do Nepal.

Vijay Prashad é diretor do Tricontinental: Instituto de Investigación Social, onde Atul Chandra é coordenador adjunto do programa para a Ásia.

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Conteúdo originalmente publicado em Peoples Dispatch