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Coluna Subversiva - A ilusão da “Transição Ecológica Chinesa”: uma crítica ecossocialista à financeirização da natureza e à expansão energética-extrativista na América Latina

13 de agosto de 2025

Júlio Holanda
Militante ecossocialista do Coletivo Subverta/PSOL
Mestre e Doutorando em Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ

julho/2025


1. Introdução

Nas últimas décadas, o modelo de desenvolvimento chinês tem sido objeto de admiração e controvérsia em igual medida, pois inaugura e consolida no mundo o que alguns autores denominam de “economia planificada de orientação socialista de mercado”1. A impressionante capacidade de planejamento estatal, com abertura de mercado, a rápida urbanização e os significativos avanços em indicadores sociais2 — como a redução da pobreza, a ampliação do acesso à moradia, infraestrutura e serviços públicos — consolidaram a China como um protagonista central na ordem econômica global. Esses avanços, alicerçados em reformas agrárias, industriais e urbanas, são frequentemente apresentados como evidência de um caminho alternativo ao neoliberalismo ocidental, sustentado por uma forte presença do Estado e uma política de investimentos estratégicos.

Estátua de panda em Pequim em um dia limpo e num dia poluído em 2017. Reprodução BBC News Brasil

Além disso, a China tem apostado em um modelo de desenvolvimento que busca conciliar o crescimento econômico com a proteção do meio ambiente, a chamada “civilização ecológica”3. Embora esse conceito possa ser atribuído a várias tradições culturais, é principalmente a partir do marxismo ecológico4, que o governo chinês tem utilizado dessa noção para descrever uma forma de crescimento econômico que inclui com centralidade a proteção ambiental na agenda mais ampla de construção e reformas em todo território chinês. Esse conceito se origina da nova visão do Partido Comunista da China (PCC) que definiu cinco características chave para o avanço da modernização chinesa, incluindo: “abordar a realidade de uma enorme população, prosperidade comum para todos, avanço material e ético-cultural, harmonia entre a humanidade e a natureza e desenvolvimento pacífico”5.

Uma modernização por meio da coexistência harmoniosa entre humanidade e natureza que a China busca impulsionar, através de um “socialismo de mercado verde” mantendo altas taxas de crescimento econômico, é tarefa complexa e de longo prazo. O sucesso da China em direção à “civilização ecológica”, dependeria de se afastar das experiências do socialismo real, que não incorporaram a questão ambiental com centralidade, mas também em se afastar da armadilha do "capitalismo verde" e da lógica produtivista ocidental. Sem dúvidas, a China contemporânea, tendo estabelecido um conjunto de reformas e políticas sociais importantes, teria condições objetivas e materiais mais favoráveis para promover a “civilização ecológica”.

Contudo, por trás da narrativa de sucesso, emerge um conjunto de contradições socioambientais profundas e estruturais. A trajetória de crescimento acelerado tem gerado impactos severos sobre ecossistemas locais e regionais, intensificando a poluição atmosférica e hídrica, a degradação do solo, a desertificação e a exaustão de recursos naturais6. A busca por fontes energéticas e minerais para sustentar esse crescimento impulsiona, além disso, a projeção global da China7, especialmente sobre os países da América Latina, onde se intensifica uma nova onda de extrativismo impulsionada por empresas chinesas — muitas vezes em territórios de elevada vulnerabilidade ambiental e social.

Particularmente na América Latina, observa-se um avanço sistemático de empreendimentos ligados à exploração de minerais ditos “estratégicos para a transição energética”. Em vez de romper com a lógica predatória do capitalismo fóssil, o que se evidencia é a reconfiguração de seus mecanismos, agora disfarçados de “desenvolvimento sustentável”, “energia limpa”, “mineração sustentável” e “economia verde”. Assim, a chamada transição energética — longe de significar uma transformação radical da matriz produtiva — tende a consolidar uma diversificação do portfólio das grandes corporações e Estados em disputa por hegemonia.

Este artigo, ancorado em uma perspectiva ecossocialista, propõe uma análise preliminar do modelo chinês de desenvolvimento, reconhecendo os avanços sociais internos, mas busca visibilizar os impactos socioambientais externos, sobretudo nas “zonas de sacrifício” da América Latina. Através da análise da financeirização da natureza, da expansão energética-extrativista e das dinâmicas de dependência impostas sobre países latinoamericanos, pretende-se evidenciar os limites da transição ecológica chinesa sob os marcos do capitalismo global. Por fim, são propostas pistas teóricas e políticas que apontam para alternativas orientadas pela justiça ecológica, pelo decrescimento e pela soberania territorial dos povos.

2. China: contradições e limites socioambientais internos

Embora o modelo de desenvolvimento chinês tenha promovido avanços econômicos e sociais notáveis, sua consolidação se deu por meio de uma lógica produtivista centrada na intensificação do uso dos recursos naturais e na expansão contínua das fronteiras de exploração. Essa trajetória gerou uma série de contradições socioambientais, tanto no plano interno quanto nas suas repercussões externas. Ao privilegiar o crescimento acelerado como horizonte estratégico, o Estado chinês não apenas reproduziu, mas aprofundou, em muitos aspectos, padrões históricos já presentes de degradação ambiental associado ao capitalismo industrial.

Internamente, a China enfrenta uma crise ecológica multidimensional há décadas. A intensa urbanização e industrialização nas últimas quatro décadas resultou em altos níveis de poluição atmosférica — com destaque para a concentração de partículas finas nas principais cidades do país, como Pequim, Xangai e Guangzhou. Em que pese os esforços do governo chinês em reduzir a poluição nessas cidades8, nos últimos anos têm se acumulado evidências científicas dos efeitos nocivos da poluição do ar na função pulmonar de crianças9 e aumento de internações hospitalares por pneumonias associadas à poluição do ar em idosos10. Em diversos períodos, por vários dias consecutivos, os índices de qualidade do ar nessas regiões ultrapassaram os limites recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS)11, comprometendo a saúde pública e pressionando por reformas ambientais. Além disso, a contaminação de rios e aquíferos por resíduos industriais, esgoto doméstico e uso intensivo de agrotóxicos compromete a segurança hídrica e alimentar, atingindo especialmente as populações rurais. Os recursos hídricos na China são escassos, severamente poluídos e frequentemente desperdiçados12.

A base energética do país também revela os limites de seu modelo de crescimento. Apesar de ser líder global na produção de energias renováveis, a China segue altamente dependente do carvão mineral, que ainda responde por cerca de metade de sua matriz energética e junto com petróleo somam mais de 70% da matriz nacional. Essa dependência revela uma contradição estrutural: o país projeta internacionalmente a imagem de liderança climática, ao mesmo tempo em que mantém práticas intensivas em carbono para sustentar seu complexo industrial. Na prática, isso significa que apesar de ser líder em energias renováveis, a China ocupa o primeiro lugar em emissões de gases de efeito estufa, quase o triplo das emissões do segundo lugar, os Estados Unidos, conforme a figura abaixo13:

Outro elemento crítico é o deslocamento compulsório de populações em nome do “progresso”. Grandes projetos de infraestrutura — como barragens, ferrovias, zonas econômicas e parques industriais — frequentemente exigem a remoção de comunidades inteiras. Segundo a Anistia Internacional, em 40 remoções forçadas analisadas, resultaram em “mortes, espancamentos, assédio e prisão de moradores que foram obrigados a deixar suas casas em todo o país, tanto na área rural quanto urbana”14. Embora acompanhadas de compensações formais, essas remoções geram desestruturação de laços comunitários, perda de modos de vida tradicionais e marginalização socioeconômica. Esse padrão de gestão territorial autoritário, em nome da eficiência e da meta de desenvolvimento, revela a assimetria entre os objetivos do Estado e os direitos dos cidadãos afetados, o que pode ser associado à noção de racismo ambiental, na qual em nome do “progresso”, a maior parcela de malefícios dos empreendimentos poluentes e atividades produtivas recai desproporcionalmente sobre grupos vulnerabilizados.

3. Consenso de Pequim ou Consenso de Washington?

O debate geopolítico contemporâneo frequentemente apresenta o modelo chinês de desenvolvimento — por vezes chamado de "Consenso de Pequim" — como alternativa ao "Consenso de Washington", hegemonizado por instituições como o FMI, o Banco Mundial e o governo dos Estados Unidos. Enquanto o primeiro estaria baseado em investimentos estatais, planejamento de longo prazo e centralização política, o segundo privilegiaria a liberalização econômica, a desregulamentação e o protagonismo do mercado. Essa narrativa de antagonismo tem sido usada para justificar a expansão global da China como uma suposta ruptura com os modelos neoliberais impostos ao Sul Global.

No entanto, quando se trata da chamada transição energética global, torna-se evidente que, apesar das diferenças ideológicas e institucionais entre os dois pólos15, há uma profunda convergência estratégica no que pode ser caracterizado como “geopolítica da energia verde”16. Ambos os modelos compartilham a crença no crescimento econômico contínuo, na financeirização da natureza e na intensificação da exploração de “minerais ditos estratégicos” — como lítio, cobre, cobalto, níquel, nióbio e terras raras — como base para viabilizar uma transição energética “verde”. Trata-se de uma espécie de consenso em que a superação da matriz fóssil não implica transformação estrutural, mas sim na complementaridade de fontes dentro do mesmo paradigma produtivista e extrativista.

Nesse contexto, China e Estados Unidos disputam controle de cadeias produtivas, rotas logísticas e fontes de abastecimento, mas convergem na lógica de transformar a crise climática em oportunidade econômica. Ambos os países operam com base em alianças público-privadas, mecanismos de compensação de carbono (via projetos de MDL, REDD+ ou mercado de carbono em territórios indígenas e de comunidades tradicionais na maioria dos casos), tecnologias de monitoramento e novos instrumentos financeiros para securitizar e rentabilizar a natureza. O resultado é uma “transição energética” que, em vez de mitigar os efeitos da crise ecológica, desloca seus custos para populações periféricas e ecossistemas fragilizados no Sul Global.

Esse modelo reatualiza a colonialidade do poder, mantendo os países latino-americanos na condição de provedores de matéria-prima, agora sob o rótulo de “commodities verdes”. Resulta na intensificação de processos extrativistas em territórios do Sul Global, como América Latina e África, transformados em zonas de sacrifício para abastecer a indústria de baterias, turbinas e sistemas de energia limpa. Países como Brasil, Argentina, Chile e Congo passaram a ser revalorizados por sua riqueza em lítio, cobre, cobalto e terras raras — minerais considerados estratégicos para a produção de veículos elétricos, painéis solares e tecnologias de armazenamento de energia.

Entre o Consenso de Washington e o Consenso de Pequim, portanto, não se observa um verdadeiro antagonismo em relação à sustentabilidade ou à justiça ambiental. O que se consolida é um consenso extrativista global, onde diferentes formas de governança convergem para manter intocados os pilares do capitalismo industrial, agora reconfigurado sob a bandeira verde da transição. Essa convergência escancara os limites de uma transição energética guiada por interesses geopolíticos e financeiros, e evidencia a urgência de se construir alternativas baseadas em justiça territorial, autodeterminação dos povos e superação do paradigma do crescimento ilimitado.

Portanto, em que pese diferenças significativas entre esses países, como já tratado anteriormente nesse artigo, a crítica ao extrativismo climático não pode se limitar apenas à denúncia de um ou outro pólo de poder geopolítico. É necessário compreender que o antagonismo entre China e Estados Unidos, no campo da “transição energética”, para os países do Sul Global, esconde uma unidade funcional em torno da manutenção da ordem global. É justamente essa unidade — de caráter imperialista da forma contemporânea do capital — que precisa ser desestabilizada se quisermos construir uma transição ecológica efetivamente justa, popular e pós-capitalista.

4. Consenso da descarbonização global

Bringel e Svampa (2023)17 elaboraram, em continuidade com análises anteriores, o conceito de “Consenso da Descarbonização”, entendido como um desdobramento do chamado “Consenso das Commodities”. A autora argumenta que há elementos de permanência entre ambos os processos, mas também transformações importantes. Entre as continuidades, destacam-se a narrativa da inevitabilidade da transição, a concentração de poder em atores não democráticos — como empresas transnacionais e agentes do setor financeiro, e a intensificação das atividades extrativas nos territórios periféricos. Já entre os aspectos inovadores, sobressaem a crescente complexidade geopolítica, marcada pela emergência de uma ordem multipolar em que a China tem papel central; a ascensão de um “neoestatismo planejador”, com Estados promovendo mecanismos de financiamento público-privado para “soluções ambientais” orientadas pelo mercado; e a consolidação de um discurso de legitimidade baseado na urgência climática.

A conversão da luz solar e da força dos ventos em eletricidade exige o uso intensivo de diversos minerais, cuja extração frequentemente provoca impactos ambientais e sociais significativos. No fim das contas, o que se apresenta como uma mudança tecnológica poderia significar apenas a substituição da dependência de combustíveis fósseis — como petróleo, gás e carvão — por uma nova dependência de recursos igualmente finitos: os chamados minerais críticos18. Além dos desdobramentos geopolíticos entre potências como Estados Unidos e China, a noção de minerais “críticos” também produz impactos dentro dos próprios países detentores dessas reserva19.

A possibilidade da utilização da energia eólica e solar no futuro dependerá da garantia do suprimento desses minerais no presente. Segundo dados do Serviço Geológico dos Estados Unidos, a maior parte das reservas desses minerais está concentrada em países do Sul Global. Por exemplo, 55% das reservas de cobalto estão na República Democrática do Congo; 56% do lítio na Argentina, Chile e China; e, aproximadamente, 60% do níquel no Brasil, Indonésia, Nova Caledônia e Filipinas.

Dessa forma, a disputa entre a China e os países do Norte Global acaba por ter repercussões significativas sobre os países do Sul Global. Ela reforça a posição subordinada destes países como fornecedores de matéria-prima e, em muitos casos, pode impossibilitar o seu acesso à energia produzida a partir desses materiais. Segundo o Manifesto Ecossocialista aprovado no último Congresso da IV Internacional em 2025 na Bélgica:

(...) isso confirma a entrada em uma nova era de competição inter-imperialista pela hegemonia global, com os EUA e seus aliados de um lado, e a China e seus aliados do outro. Energia e recursos minerais estão no centro dessa competição inter-imperialista.
(...)
Essa chamada "descarbonização" agrava a apropriação imperialista de terras e a exploração da mão de obra no Sul, com a cumplicidade das burguesias locais (como exemplificado por diferentes projetos de investimento baseados no uso de energia solar e eólica, especialmente em "zonas econômicas livres" de países periféricos, para produzir "hidrogênio verde" destinado a abastecer indústrias em países desenvolvidos).” (tradução livre - grifo nosso).

Ao contrário dos combustíveis fósseis, as novas fontes renováveis demandam grandes quantidades de recursos minerais. De acordo com estimativas da Agência Internacional de Energia (2021), desde 2010 a demanda por minerais para o setor aumentou em 50%, impulsionada pela necessidade de insumos para a fabricação de tecnologias de energia de baixo carbono. Projeções até 2040 pela mesma agência estimam que essa demanda pode dobrar ou quadruplicar, dependendo da velocidade dos esforços de descarbonização nacional. Assim, a capacidade de garantir um fornecimento adequado de recursos minerais é um elemento-chave para o desenvolvimento dos equipamentos necessários para impulsionar a transição a custos acessíveis.

Apesar da China parecer abundante em vários minerais metálicos, uma vez que possui a quarta maior reserva de minério de ferro e a sexta maior reserva de cobre do mundo, o cenário é de escassez relativa. Isso levou a China a investir em cadeias de suprimento globais. Vale ressaltar que entre 2000 e 2015, o valor das importações chinesas da América Latina aumentou de 5 bilhões para 103 bilhões de dólares, dos quais, em 2015, cerca de 70% correspondiam a cinco matérias-primas ou bens semimanufaturados, intensivos em recursos naturais: petróleo, minério de ferro, minério de cobre, cobre refinado e soja.

No caso brasileiro, essa lógica se traduz na ampliação da mineração no Cerrado, na Caatinga e na Amazônia, muitas vezes com projetos simultâneos de corporações dos Estados Unidos e China. Empresas como BYD, Tesla, Ganfeng Lithium e General Motors disputam o controle de reservas, enquanto bancos multilaterais, agências de fomento e governos nacionais promovem reformas legais para “destravar” investimentos20. Dessa forma, o que se observa no debate público é que a retórica da descarbonização, a partir da necessidade e urgência da chamada “transição energética”, serve, nesse contexto, como dispositivo de despolitização — apresentando a questão climática como necessidade meramente técnica e consensual, e não como um campo de disputas política, social e ecológica.

5. Reduzindo ou aumentando as emissões de gases de efeito estufa?

Em que pese o crescimento acelerado de renováveis em todo o mundo nos últimos anos, nota-se que a incorporação dessas fontes na matriz energética tem ocorrido de forma complementar e não substitutiva às fósseis. Ou seja, não tem ocorrido a substituição direta de uma fonte por outra, no sentido de atender os objetivos da mitigação climática e reduzir as emissões21. O crescimento na produção de petróleo e gás em todo o mundo e também no Brasil e as projeções de aumento para os próximos anos, por meio do anúncio de novas fronteiras de exploração na foz do Rio Amazonas22, recorde de produção no pré-sal23, bem como a utilização de tecnologias não convencionais como o fraturamento hidráulico24, são exemplos dessa tendência.

Figura 1 - Evolução das emissões globais de Gases de Efeito Estufa (1990-2023)

Entre 1992, quando foi criada a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, e 2022, as emissões globais de gases de efeito estufa cresceram cerca de 64%, conforme a figura acima. A taxa de crescimento em 2023 foi superior à da década passada (de 2010 a 2019), quando, antes da eclosão da Covid-19, as emissões anuais subiram, em média, 0,8%. Parte da dificuldade tem sido criada pelos interesses do setor de energia. A expectativa dos países produtores de petróleo e carvão, até 2030, é aumentar a extração em quantidade muito acima do que seria seguro para limitar o aquecimento global a 1,5 ºC. O Brasil planeja, até 2050, dobrar a produção de petróleo em relação a 2020. Na figura abaixo fica evidente que mesmo com toda a narrativa e projetos de energias renováveis, elas ainda são praticamente inexpressivas se comparado à matriz energética global, inclusive na China, que é líder em geração de energias eólica e solar.


Figura 2 - Matriz energética de China, EUA, Europa e Brasil em 2021

No caso brasileiro, no que se refere à energias renováveis, o país ocupa a 5ª posição no ranking de capacidade instalada de energia eólica no mundo, com aproximadamente 33 GW e estimativa de alcançar 55 GW até 2030. Além das usinas na terra, a grande novidade no setor eólico é a expectativa de início da geração de energia em alto mar (offshore). São mais de 100 projetos em análise pelo Ibama, e se todos forem efetivamente instalados, serão aproximadamente 15.500 novos aerogeradores em toda a costa brasileira, totalizando cerca de 234 GW de capacidade instalada27. Com relação à energia solar, ela ocorre tanto no modelo centralizado em grandes usinas (12,8 GW), mas também por meio de pequenas centrais de energia instaladas próximas às unidades de consumo (28,9 GW) de capacidade instalada. .

Esses números são expressivos e se analisarmos eles fora de contexto, poderíamos inferir que há de fato em curso uma transição energética mundial e também no Brasil, sendo apoiada pelas grandes corporações globais. Contudo, além do crescimento absoluto da produção de petróleo e gás natural, outro indicador que nos chama atenção são os novos investimentos para as fontes de energia. O atual governo brasileiro, por exemplo, anunciou em 2023 um grande programa de investimento, “Novo PAC” (Programa de Aceleração do Crescimento), com cerca de R$ 1,7 trilhão de recursos para um conjunto de obras em todo o Brasil, incluindo o eixo “transição e segurança energética”.

Os recursos do Novo PAC para renováveis é considerável: R$ 22 bilhões para fonte eólica e R$ 39 bilhões para fotovoltaica. Porém, esse é um valor irrisório se comparado aos investimentos previstos para o subeixo “Petróleo e Gás” do mesmo programa. A previsão é de aproximadamente R$ 387 bilhões somente para combustíveis fósseis, cerca de cinco vezes maior do que os valores previstos para as renováveis28. Isso indica que a política pública visa apenas a diversificação da matriz, aumentando a participação de eólica e solar, mas também de recursos não renováveis. De fato, a previsão do Plano Nacional de Energia 205029 é “manter o Brasil como grande produtor de hidrocarbonetos”, com uma média aproximada de 5.500 milhões de barris por dia (quase o dobro da produção atual, já que em junho de 2024 foram produzidos no Brasil 3,4 milhões de barris por dia).

Para viabilizar uma transformação radical na matriz energética, é necessário não apenas a boa vontade do setor empresarial, mas também a ação direta de agentes do Estado com políticas de incentivo às renováveis e desestímulo às não renováveis. Considerando o atual modelo de desenvolvimento e produção nas grandes cidades e centros urbanos, é inviável pensarmos em uma transição energética em curto prazo, “do dia para a noite”. Contudo, é necessária uma mudança de perspectiva nas políticas públicas e ações mais arrojadas e corajosas: reduzir incentivos à indústria de hidrocarbonetos, com equivalente e gradativo aumento para a indústria de renováveis30.

Não é isso que tem acontecido na prática. Nos últimos cinco anos, por exemplo, foram concedidos R$ 334,6 bilhões em subsídios aos combustíveis fósseis. As energias renováveis, em contrapartida, receberam apenas R$ 60,1 bilhões no mesmo período. Segundo estudo do Inesc31, em 2023, a cada R$ 1 real investido em fontes renováveis, R$ 4,52 foram destinados às fontes fósseis. Em 2024, o Brasil arrecadou R$ 108,2 bilhões das chamadas “rendas do petróleo” provenientes dos royalties, participações especiais e bônus de assinatura, sendo o Pré-sal responsável por 79% desse montante. No entanto, apenas 0,16% desse total (ou R$ 168,33 milhões) foram efetivamente direcionados a ações ambientais e climáticas32.

Além das contradições envolvidas na ampliação de combustíveis fósseis junto ao estímulo para renováveis, tanto no Brasil mas também em outras partes do mundo, a implantação de usinas eólicas e solar tem alterado significativamente as características ecológicas e morfológicas dos ecossistemas costeiros como restingas, manguezais e campo de dunas. Além dos impactos negativos ao meio ambiente, a reprodução sociocultural das populações locais é profundamente afetada, comprometendo o modo de vida, as fontes de renda, de subsistência e lazer de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais33.

6. Uma transição energética capturada pela geopolítica verde

A transição energética tem sido apresentada como um dos pilares da luta global contra as mudanças climáticas. No discurso dominante, essa transição implicaria a substituição progressiva dos combustíveis fósseis por fontes renováveis, como solar, eólica, hidrelétrica e, mais recentemente, o hidrogênio verde. A China aparece nesse cenário como liderança incontestável, sendo a maior produtora mundial de painéis solares, turbinas eólicas e baterias de íon-lítio, além de realizar vultosos investimentos em tecnologias limpas e compromissos internacionais de neutralidade de carbono.

Contudo, o crescimento exponencial das chamadas tecnologias limpas tem se dado dentro da mesma lógica produtivista e extrativista que levou à crise ecológica global. A expansão das cadeias globais de produção de energia “limpa” vem exigindo volumes colossais de minerais ditos estratégicos — como lítio, cobre, níquel, cobalto e terras raras — cuja extração ocorre, em grande parte, em territórios do Sul Global. No caso da China, que controla vastos segmentos dessas cadeias produtivas, o que se observa não é uma ruptura com o paradigma de dominação da natureza, mas sim uma reorganização do capitalismo em moldes “verdes”.

A financeirização da natureza se torna central nesse processo. A “transição” passa a ser uma nova fronteira de acumulação, em que o capital especulativo investe em ativos ambientais, mercados de carbono, energias renováveis e projetos de compensação34 — frequentemente às custas de comunidades locais e ecossistemas vulneráveis. Do ponto de vista ecossocialista, não há dúvidas: trata-se de uma transição gerida pelo capital e para o capital, que converte a questão climática em oportunidade de negócios, sem alterar a lógica fundamental do crescimento infinito em um planeta finito e sem questionamentos à lógica produtivista.

Nesse contexto, é possível falar em uma ilusão da transição ecológica Chinesa. Em vez de transformação estrutural da matriz energética e das relações sociedade-natureza, observa-se uma diversificação do portfólio energético de grandes empresas e Estados. O petróleo e o carvão não são abandonados, mas coexistem com o lítio, o vento e o sol — muitas vezes, operando lado a lado em projetos de infraestrutura e expansão territorial. A ideia de descarbonização acaba se sobrepondo à noção de justiça climática, ignorando os efeitos territoriais, sociais e culturais desses empreendimentos sobre populações vulnerabilizadas.

Além disso, a centralização tecnológica e o domínio chinês em setores estratégicos da transição energética intensificam a dependência tecnológica e produtiva dos países latino-americanos. O controle das rotas logísticas, o monopólio da transformação mineral e a liderança na fabricação de componentes tecnológicos impõem uma nova divisão internacional do trabalho “verde”, em que o Sul continua a fornecer matéria-prima bruta enquanto o valor agregado se concentra no Norte ou em potências como a China.

A suposta transição energética, portanto, não deve ser tomada como um processo neutro ou automaticamente emancipador. Trata-se, antes, de um campo de disputa política, ideológica e territorial. Nessa sessão, a utilização do título “transição energética capturada pela geopolítica verde” compreende que o debate na arena pública sobre matriz energética foi capturado pelos agentes do Estado e pelo setor corporativo, onde as questões econômicas e de mercado prevalecem como critérios mais relevantes para tratar da temática climática.

É imprescindível que a elaboração de políticas públicas para transição energética leve em consideração outros aspectos, além da dimensão econômica, de mercado ou da redução de gases de efeito estufa. O planejamento do setor pelo Estado deve considerar, principalmente, os impactos sociais e ambientais dessas novas infraestruturas e empreendimentos, os quais devem assegurar a proteção dos ecossistemas e biomas, além de garantir uma integração efetiva das comunidades nos processos de tomada de decisão e promoção da justiça ambiental nos territórios.

7. A expansão global do extrativismo Chinês

A internacionalização do modelo de desenvolvimento chinês tem se dado, nas últimas décadas, por meio de uma combinação de investimentos estatais, diplomacia econômica e atuação de empresas transnacionais com forte respaldo do governo central. O lançamento da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI)35, em 2013, institucionalizou essa lógica de expansão, projetando a China como liderança global em infraestrutura, energia e extração de recursos naturais. Essa projeção, no entanto, tem reproduzido — e em muitos casos agravado — padrões extrativistas historicamente impostos sobre o Sul Global, especialmente na América Latina.

Na busca por garantir segurança energética, alimentar e tecnológica, a China tornou-se uma das principais demandantes mundiais de commodities minerais e agrícolas. O continente latino-americano, rico em lítio, cobre, ferro, nióbio, manganês e outras matérias-primas consideradas “estratégicas”, passou a ocupar um lugar privilegiado nessa geopolítica de recursos. Por meio de empréstimos, parcerias estatais e fusões empresariais, o capital chinês tem se inserido em cadeias extrativas com impactos sociais e ambientais alarmantes.

A China tem consolidado uma posição dominante na cadeia global dos minerais críticos, resultado de décadas de investimento estatal e política industrial estratégica. O país controla cerca de 60% da produção mundial e quase 90% do refino de terras raras, com reservas distribuídas por mais da metade de seu território. Essa supremacia se deve não apenas à abundância de recursos, mas também a uma estrutura produtiva baseada em mão de obra barata e regulações ambientais e trabalhistas mais permissivas do que em outros países.

Diante desse cenário, países com potencial para fornecer minerais estratégicos, como os da América Latina e África, tornaram-se alvos centrais na nova disputa global por recursos naturais. A região do Triângulo do Lítio — formado por Chile, Argentina e Bolívia — detém 50% das reservas mundiais desse elemento essencial, enquanto o Chile também lidera na exportação de cobre. O Brasil, por sua vez, possui importantes depósitos de níquel, nióbio e terras raras, o que o insere nessa geopolítica extrativista.

Essa nova corrida por minerais críticos levanta questões profundas sobre os limites ecológicos e o modelo de desenvolvimento vigente. A crítica aponta para o paradoxo da transição energética em curso: ao mesmo tempo em que busca reduzir emissões de carbono, ela sustenta uma lógica extrativista que ameaça territórios, populações e ecossistemas no Sul Global, deslocando as contradições do sistema para o subsolo da Terra36. No fim das contas, o debate sobre modelo de desenvolvimento e alternativas de decrescimento saíram totalmente do debate público, mas isso não pode ocorrer nas organizações políticas revolucionárias, sobretudo aquelas ecossocialistas.

O estudo “Transição Desigual: as violações da extração dos minerais para a transição energética no Brasil”37, divulgado em julho de 2024 pelo Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil mostra que as violações relacionadas à extração dos minerais críticos, no total de localidades cadastradas, no período de 2020 a 2023, soma 249, com 348 ocorrências. O ano de 2020 se destaca com 98 localidades em conflito e 109 ocorrências.

Ao menos 101.239 pessoas foram afetadas entre 2020 e 2023, segundo dados do Observatório. Em 2020 foram 17.390 pessoas, enquanto em 2021 esse número chegou a 53.657, representando um aumento de pouco mais de 300%. Se for contabilizado o número de pessoas afetadas anualmente, incluindo possíveis repetições dos grupos violentados em mais de um ano, o total chega a pelo menos 145.249 indivíduos envolvidos em conflitos com atividades ligadas aos minerais para transição energética no Brasil.

A financeirização da natureza é um elemento central desse processo. Empreendimentos extrativos associados à “economia verde” e à “transição energética” vêm sendo legitimados internacionalmente por meio de discursos que prometem baixo carbono e sustentabilidade. No entanto, na prática, tais projetos reproduzem os mesmos mecanismos de espoliação, devastação ambiental e deslocamento compulsório observados no ciclo do petróleo, da mineração tradicional e do agronegócio. O que muda é a roupagem: agora a exploração é embalada como solução climática.

Paradoxalmente, a China — enquanto se apresenta como liderança na transição para uma “civilização ecológica” — expande suas fronteiras de exploração em países com frágil regulação ambiental e profundas desigualdades socioambientais. A ausência de salvaguardas robustas, a captura institucional de órgãos ambientais e o uso de tecnologias de vigilância e repressão para garantir a viabilidade dos projetos intensificam os conflitos socioambientais e revelam o caráter autoritário e predatório dessa nova fase do extrativismo global. Diante desse cenário, torna-se fundamental problematizar a “transição energética” como uma promessa de superação da crise climática e de desenvolvimento dos países periféricos.

8. A presença chinesa no Brasil: desigualdade e racismo ambiental

A China é o principal parceiro comercial do Brasil e as importações não param de crescer, só em 2024 o crescimento foi na ordem de 22%. Na comparação com outros países, o Brasil lidera o ranking de países que mais aumentaram as importações de produtos chineses em 2024. O país asiático é também o principal destino das exportações brasileiras no setor de agronegócio. Os principais produtos exportados para a China são soja, milho, açúcar, carne bovina, carne de frango, celulose, algodão e carne suína.

O principal produto exportado do agronegócio brasileiro para a China é a soja em grãos, com vendas de US$ 31,5 bilhões e cerca de 72,6 milhões de toneladas. A China comprou 73% do total exportado de soja brasileira. Esse resultado seria motivo para comemorarmos, se não fossem as implicações socioambientais negativas inerentes desse setor no Brasil. Entre 2000 e 2013, aproximadamente 90% do desmatamento ilegal no Brasil foram gerados pela expansão da fronteira agropecuária, onde a maior parte da produção se destina à exportação, com destaque para a China. Pesquisas apontam que há uma relação direta entre o desmatamento da Amazônia Legal Brasileira e a acelerada expansão da agricultura, da pecuária e da mineração oriunda da demanda chinesa38.

Além do agronegócio, a atuação da China no Brasil, especialmente no setor de mineração e energia, tem se intensificado nos últimos anos. Com relação ao setor mineral, o principal país destino das exportações nacionais é a China, que concentrou 71,2% dos minerais metálicos, como ferro e seus derivados, e destacou-se como principal país de destino de cobre, manganês e nióbio representando 25,7%, 70,8% e 44,9% do total, respectivamente39. Esse movimento é evidenciado por investimentos significativos de empresas chinesas em território brasileiro, seja atuando como operador único ou com participação em outras empresas.

Em 2023, a fabricante chinesa de veículos elétricos BYD, que ultrapassou a norte americana Tesla se tornando a maior fabricante de veículos eletrificados do mundo, adquiriu direitos minerários sobre dois lotes na região de Coronel Murta, no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, conhecida como "Vale do Lítio". A aquisição foi realizada por meio da subsidiária Exploração Mineral do Brasil, criada em maio daquele ano com um capital social de R$ 4 milhões. As aquisições estão em sintonia com o novo projeto da empresa chinesa, a fábrica da BYD em Camaçari, na Bahia, que pretende fabricar até 300.000 carros híbridos e elétricos por ano40.

A presença da BYD na região tem gerado preocupações entre as comunidades locais, especialmente indígenas, devido aos impactos ambientais e sociais associados à mineração de lítio41. Em outubro de 2023, Cleonice Pankararu, liderança indígena da Aldeia Cinta Vermelha Jundiba, em Araçuaí (MG), denunciou às Nações Unidas os primeiros impactos da extração de lítio sobre seu território, incluindo a instalação de barragens e redes de alta tensão sem consentimento dos indígenas, o que desequilibra a biodiversidade e ameaça a sobrevivência dos Pankararu.

A GAC Group, uma das principais montadoras da China e concorrente da BYD, anunciou oficialmente sua entrada no mercado brasileiro em 202442. O anúncio ocorre após a divulgação de um investimento de US$1 bilhão no Brasil nos próximos cinco anos. A GAC, que já possui parcerias com empresas como Honda e Toyota, expressou interesse em expandir sua presença no Brasil, e planeja um centro de pesquisa e uma fábrica no país.

Além da BYD e GAC, a CMOC Group Limited, uma das maiores mineradoras da China, adquiriu em 2016 minas de fosfato e nióbio nos estados brasileiros de Goiás e São Paulo, incluindo a mina Boa Vista. Em Catalão (GO), onde a CMOC opera, moradores relatam impactos ambientais significativos, como o "cheiro de barata" proveniente da mineração, que afeta a qualidade de vida da população local43. A expansão chinesa no setor mineral brasileiro também inclui investimentos em infraestrutura para escoamento de minérios. O Projeto Lotus I, por exemplo, prevê a construção de um mineroduto com investimento estimado em US$ 1,4 bilhão, atravessando o norte de Minas Gerais e o sul da Bahia44..

A chinesa CNT (China Nonferrous Trade), subsidiária que pertence ao governo do país asiático, comprou em 2024 as operações de uma mina de estanho na amazônia, num negócio que envolveu mais de R$ 2 bilhões45. A reserva tem estoque estimado para durar um século. Além de estanho, as terras envolvidas na negociação abrigam também nióbio e tântalo, elementos que são utilizados para a produção de itens como satélites, capacitores, baterias e foguetes. A área também possui resíduos ricos em outros dois elementos, urânio e tório, mas o urânio vai para os rejeitos e não há tecnologia viável para que seja separado, segundo informações da própria empresa.

Além delas, a China tem tido atuação no setor de petróleo e gás e nuclear. A CNOOC (China National Offshore Oil Corporation) atua na exploração de petróleo offshore, principalmente no Campo de Búzios, na camada do pré-sal, uma das mais produtivas do mundo. Outra empresa é a Sinopec (China Petroleum & Chemical Corporation), que atua em parceria com a multinacional espanhola Repsol na exploração de petróleo em poços no litoral da região Sudeste (SP, RJ, ES). Ambas empresas atuam na exploração de petróleo em alto mar, com participação minoritária em outros blocos de exploração. Além das emissões de gases de efeito estufa, a atividade petrolífera é marcada pelos riscos de impactos ambientais, como ameaças de vazamentos e impactos para pescadores artesanais e na biodiversidade marinha46.

No setor nuclear, em 2015 o presidente da China National Nuclear Corp (CNNC), liderou uma delegação ao Brasil, para estabelecer diálogo e parcerias com a Indústrias Nucleares do Brasil (INB), a empresa de energia nuclear brasileira. A CNNC demonstrou interesse nas áreas de mineração de urânio e fabricação de combustível nuclear. As duas empresas estatais discutiram a parceria para a exploração conjunta de recursos de urânio e a produção de combustível nuclear no Brasil47. O urânio é extraído no Brasil desde 1982, em pequenas quantidades, mas o governo brasileiro tem interesse em ampliar a produção. O Consórcio Santa Quitéria - uma parceria entre a INB e a empresa privada de fertilizantes Galvani - espera produzir 2.300 toneladas de concentrado de urânio anualmente a partir da jazida de Itataia, localizada em Santa Quitéria, Ceará.

Apesar do potencial econômico desses investimentos, há críticas quanto à ausência de salvaguardas sociais e ambientais nos acordos firmados entre Brasil e China. Em novembro de 2024, foi assinado um acordo de cooperação para o desenvolvimento da “mineração sustentável” entre o Ministério de Minas e Energia do Brasil e a Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma da China. No entanto, o acordo não menciona medidas para proteger os direitos de comunidades tradicionais, nem aborda a transferência de tecnologia ou os custos do desenvolvimento sustentável, mas tem sido denominado por “mineração sustentável”48

A intensificação da presença chinesa no setor de energia e mineração brasileira, sem a devida consideração dos impactos socioambientais, reforça a necessidade de uma crítica ecossocialista desde o sul global que questiona os modelos de desenvolvimento baseados na exploração intensiva de recursos naturais e na marginalização de comunidades locais. É fundamental promover uma transição energética que respeite os direitos dos povos e preserve os ecossistemas, evitando a repetição de padrões históricos de espoliação e desigualdade.

9. Por uma crítica ecossocialista à transição energética do desenvolvimento capitalista/socialista de mercado

Diante da crise ecológica global e da captura do discurso da transição energética pelo capital, torna-se urgente radicalizar a crítica ao modelo dominante de desenvolvimento — não apenas em sua vertente neoliberal, mas também em suas expressões estatais de economia aberta, como o caso chinês. Uma leitura ecossocialista dessa conjuntura parte do reconhecimento de que a devastação ambiental não é um desvio ou exceção do sistema, mas sim parte estrutural da lógica de reprodução capitalista, baseada na expansão incessante da acumulação e na separação (alienação) entre humanidade e natureza, como já descrito por Marx na noção de “falha metabólica”49.

É importante visibilizar e reivindicar os avanços sociais importantíssimos que a China alcançou nas últimas décadas, o Brasil tem muito o que aprender com esse processo, tanto do que fazer e replicar, como também do que não deve servir de inspiração. Nesse sentido, a centralidade do Estado no modelo chinês não rompe com os fundamentos do capitalismo, mas os reorganiza. A destruição ambiental promovida por grandes empreendimentos de infraestrutura, mineração e energia é sustentada por um projeto nacional desenvolvimentista que, ao priorizar o crescimento, sacrifica comunidades, ecossistemas e modos de vida em seu território e, principalmente, no Sul Global, criando verdadeiras zonas de sacrifício para viabilizar a chamada “transição energética”.

A noção de “civilização ecológica”, por mais promissora que possa parecer no plano discursivo, esvazia-se quando confrontada com os impactos concretos da atuação chinesa dentro e fora de seu território e não pode ser tomada por ilusões ou como inspiração para um projeto nacional de desenvolvimento no Sul Global, como explicitado em resolução da IV Internacional em seu Congresso Mundial de 2025:

O Partido Comunista Chinês afirma mostrar aos países do Sul que podem escapar da dominação e se desenvolver ao ingressar nas Novas Rotas da Seda. Na realidade, em nome do anti-imperialismo barato, seu projeto de hegemonia capitalista global é um dos principais impulsionadores da destruição ecológica. Seu histórico como o maior emissor mundial de gases de efeito estufa mostra a necessidade de os países do Sul adotarem um modo alternativo de desenvolvimento. A generalização planetária do "progresso" ao estilo chinês seria um golpe mortal nos direitos democráticos e agravaria o equilíbrio ecológico, às custas do povo. (Manifesto Ecossocialista aprovado no Congresso Mundial da IV Internacional, Bélgica, 2025, tradução livre - grifo nosso)

Frente a esse cenário, o ecossocialismo oferece uma alternativa crítica que articula a luta ecológica com a justiça social, a superação do produtivismo, consumismo e a democratização radical das decisões sobre o uso do território e dos bens comuns. Em vez de transições técnicas e centralizadas, defende-se uma transformação estrutural do metabolismo social, com base na redução do consumo material, na relocalização das economias, no reconhecimento da autonomia dos povos e na reconstrução de vínculos comunitários com a terra.

Experiências de resistência nos territórios afetados pela expansão do extrativismo chinês — como comunidades indígenas que bloqueiam projetos de mineração de lítio no altiplano andino, ou populações ribeirinhas que denunciam os impactos de hidrelétricas e ferrovias na Amazônia — revelam que há caminhos alternativos sendo traçados, mesmo que de forma fragmentada. Essas resistências não apenas denunciam os efeitos destrutivos da transição corporativa, como também apontam para outras formas de vida e relação com a natureza, muitas vezes baseadas em cosmovisões ancestrais, solidariedade e reciprocidade.

É importante destacar que além das expropriações, conflitos e impactos envolvendo a transição energética, há também processos de resistência e luta coletiva. O desafio é enorme, mas estamos diante de uma excelente oportunidade de promover a participação popular na tomada de decisões sobre o futuro energético do país. As experiências de Geração Distribuída de Interesse Social no Brasil, como o caso da “RevoluSolar”, com a proposta de solarização de favelas e territórios periféricos urbanos; “Veredas Sol e Lares”, projeto do MAB da primeira usina solar flutuante e a “Padaria Solar” no sertão da Paraíba, que utiliza energia solar para geração de renda e empregos ajudam a manter viva a dimensão utópica de um outro mundo possível. Esses projetos, mesmo que em pequena escala, fortalecem os interesses e o modo de vida das populações locais e a manutenção dos ecossistemas biológicos de modo a pensar na produção de eletricidade para além da métrica de substituição de emissões. É preciso considerar a demanda por transformação socioecológica como um todo.

Por fim, é preciso reconhecer que uma verdadeira transição energética — justa, popular e ecológica — só será possível a partir da ruptura com os imperativos do capital e da afirmação de outros projetos civilizatórios. Isso implica não apenas contestar o papel dos Estados Unidos e suas corporações, mas também a China na reconfiguração doextrativismo global. Superar a ilusão da “transição ecológica chinesa” demanda, portanto, construir um horizonte pós-capitalista ancorado na defesa dos comuns, na justiça climática e na soberania dos povos sobre seus territórios e seus futuros.


Notas:


1 Que China é essa que a gente tá falando? Não é pretensão desse artigo fazer uma análise aprofundada do modelo asiático e de qual a melhor terminologia para se referir ao modelo Chinês. Contudo, importante saber para a continuidade da leitura desse texto: a China desenvolveu um modelo híbrido, algo certamente específico e diferenciado em todo o mundo, no qual combina controle estatal com planificação econômica sobre setores estratégicos, com uma economia de mercado dinâmica e o mais impressionante: em larga escala de tempo e espaço. O termo “Capitalismo de Estado”, já muito utilizado por outros autores, nos parece deixar escapar aspectos de especificidade do caso Chinês, por isso a opção de trazer também o termo de JABBOUR, Elias; GABRIELE, Alberto. China: o socialismo do século XXI. 1. ed., São Paulo: Boitempo, 2021

2 MAIA, Isis Paris; PAPI, Luciana Pazini; PAUTASSO, Diego. O combate à pobreza: cooperação China-ONU e agenda 2030. Tensões Mundiais, ForTaleza, v. 18, n. 36, p. 165-181, 2022 3 YIWEN, Chen. Marxist Ecology in China: From Marx’s Ecology to Socialist Eco-Civilization Theory. Monthly Review, Volume 76, Number 05, October 2024

4 Zhihe Wang, Meijun Fan, Hui Dong, and Dezhong Sun. What Does Ecological Marxism Mean for China?: Questions and Challenges for John Bellamy Foster. Monthly Review 64, no. 9 (February 2013): 47–53.

5 YIWEN, Chen. The Dialectics of Ecology and Ecological Civilization. Monthly Review, Volume 76, Number 11, April 2025

6 ZHANG, K.; WEN, Z.; PENG, L. Environmental policies in China: evolvement, features and evaluation. China Popul. Res. Environ. 2007.

7 Essa não é uma exclusividade do governo chinês. Estados Unidos e União Europeia também adotaram nos últimos anos diretrizes no sentido de promoção da “transição energética”, abrindo uma corrida dessas potências globais por recursos minerais e energéticos principalmente no Sul Global, como será abordado nas próximas seções deste artigo.

8 Em 2013 a China registrou uma média de 52,4 microgramas (µg) por metro cúbico (m3) de partículas poluentes PM2,5 — dez vezes mais do que o limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2020 a poluição em Pequim caiu para 37,9 µg/m3 em média, um resultado significativo em comparação com os dados de 2013, contudo, valor bastante superior comparado a outras cidades do mundo, como 6,3 µg/m3 de Nova York; 9 µg/m3 de Londres; 6,9 µg/m3 de Madri; ou 20,7 µg/m3 da Cidade do México. Ver mais em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62053174

9 He QQ, Wong TW, Du L, Jiang ZQ, Gao Y, Qiu H, et al. Effects of ambient air pollution on lung function growth in Chinese schoolchildren. Respir Med. 2010;104(10):1512-1520. 10 Wu J, Wu Y, Tian Y, Wu Y, Wang M, Wang X, et al. Association between ambient fine particulate matter and adult hospital admissions for pneumonia in Beijing, China. Atmospheric Environ. [published online ahead of print, 2020 Jun 15].

11 ELALOUF, Amir. The dilemma of growth: pollution and health impacts in the BRICS countries (Brazil, Russia, India, China, South Africa). Brazilian Journal of Political Economy, vol 43, nº 4, pp 955-970, October-December, 2023

12 COSTA LIMA, Marcos; ALBUQUERQUE, Tatiane Souza de; NASCIMENTO, Andreza Melo do. Meio ambiente na China: impasses, avanços e desafios. REALIS: revista de estudos antiutiltaristas e PosColoniais. Nov, 2021 .

13

https://www.europarl.europa.eu/topics/pt/article/20180301STO98928/emissoes-de-gases-com-efeito de-estufa-por-pais-e-setor-infografia

14 Ver mais em

https://anistia.org.br/informe/aumento-no-numero-de-remocoes-forcadas-alimenta-descontentamento na-china/