Por Gilbert Achcar

Destacamento de uma força interina sob a égide dos Estados Unidos, retorno de uma Autoridade Palestina “reformada”, projetos de valorização econômica: o acordo forjado para Gaza pela administração Trump causa uma sensação de déjà-vu. Apresentado pela Casa Branca e seus porta-vozes como um sucesso diplomático excepcional, ele serve antes de tudo aos interesses israelenses e deixa muitas questões em aberto.

Mesmo para o rei da hipérbole que é o presidente Donald Trump, a afirmação de que seu “acordo de paz” para Gaza seria capaz de estabelecer uma “paz eterna” no Oriente Médio é particularmente extravagante. O contraste é, de fato, extremo entre essa pretensão de eternidade e o “plano de paz” mais malfeito da história do conflito israelo-árabe. O documento em vinte pontos anunciado por Trump na Casa Branca em 29 de setembro passado, na presença do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, deixa em suspenso questões cruciais. Seu único ponto concreto trata da libertação dos vinte reféns israelenses ainda vivos detidos pelo Hamas e seus aliados em troca da libertação por Israel de 250 prisioneiros palestinos condenados à prisão perpétua e de 1.700 habitantes de Gaza detidos após 7 de outubro de 2023 e mantidos desde então sem acusação, isto é, também como reféns.

Além dessa troca, o plano repete elementos que vêm sendo discutidos desde os primeiros meses da guerra no enclave palestino: a eliminação militar e política do Hamas; a perspectiva de retirada – parcial, gradual e condicionada – das tropas israelenses; a colocação dos habitantes de Gaza sob o controle de uma Autoridade Palestina “reformada” (“revitalizada”, dissera Joe Biden quando ainda era presidente), após um controle interino exercido por uma força internacional composta principalmente de contingentes militares regionais.[1] As novidades no plano de Trump decorrem, como não podia deixar de ser, de intenções que lhe são próprias: pouco depois de sua segunda posse, o presidente norte-americano – guiado pelo instinto de empreendedor imobiliário que impregna fortemente sua política externa – manifestou o desejo de apropriar-se da faixa de terra para dela fazer uma “Riviera”.


Renovação dos mandatos coloniais

Nos termos do novo plano, Gaza deveria ser colocada sob a tutela de um “Conselho de Paz” presidido pelo próprio Trump.[2] Este supervisionaria a execução de um “Plano Trump de desenvolvimento econômico” para “reconstruir e dinamizar” Gaza, com a criação, para esse fim, de uma zona econômica especial (ou seja, uma zona franca). Essa tutelagem do enclave revela a mesma lógica que conduziu, logo após a Guerra Fria, ao renascimento dos mandatos coloniais do entreguerras para os “Estados em falência”. Após a guerra conduzida pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) em 1999, o Kosovo foi confiado à Missão de Administração Interina das Nações Unidas (UNMIK), apoiada pela Força para o Kosovo (KFOR). A experiência então adquirida por Tony Blair certamente alimentou sua contribuição na elaboração do plano de Trump e justificou sua nomeação no “Conselho de Paz”.

Há, contudo, uma diferença importante: não serão as Nações Unidas, mas os Estados Unidos que administrarão o território palestino sob tutela. Provavelmente o mesmo acontecerá com a “Força de Estabilização Internacional” prevista para Gaza, cujo nome se inspira naquela que foi criada para a Bósnia-Herzegovina em dezembro de 1996 (a SFOR, subordinada à Otan). De fato, até agora Trump recusou colocar o contingente previsto para Gaza sob controle da ONU, como parecem lhe ter sugerido os presidentes egípcio e turco reunidos em Sharm el-Sheikh, em 13 de outubro, para assinar em grande pompa com ele e o emir do Catar, e na presença de outros chefes de Estado e de governo, a “Declaração Trump para uma paz e uma prosperidade duradouras”. A função principal desse último documento, redigido em termos muito vagos, como a própria cerimônia de Sharm el-Sheikh, nada mais era do que ratificar o “Acordo Trump de paz”. A ubiquidade do nome do presidente norte-americano testemunha seu acentuado narcisismo e a bajulação de seus parceiros internacionais.

De imediato, porém, é mais a atitude do Hamas que afetará a composição – ainda conjectural – da força internacional para Gaza do que a tutela sob a qual ela será colocada. O movimento islâmico, até o momento, não aprovou os termos do plano de paz relativos ao seu desarmamento. O comunicado que publicou em 3 de outubro, e que Trump se apressou em descrever como uma aprovação do plano, consente, na verdade, apenas com a troca de prisioneiros. No mais, o Hamas declara-se pronto a “transferir a administração de Gaza a um comitê palestino de independentes [tecnocratas] com base no acordo nacional palestino”, o que sugere que o movimento pretende manter um direito de influência sobre a composição desse comitê.

O comunicado do Hamas prossegue afirmando que todas as demais questões “são de competência de uma posição nacional inclusiva” e “devem ser debatidas num quadro nacional palestino inclusivo do qual o Hamas participará e com o qual contribuirá com toda responsabilidade”. Essa afirmação está longe de corresponder ao que o presidente norte-americano alegou ao confundir seu desejo com a realidade – não por preocupação em pôr fim a dois anos de guerra genocida, mas por ambição de assinar uma verdadeira realização no campo da resolução de conflitos. Por mais trivial que pareça, Trump foi guiado pela esperança de obter o Prêmio Nobel da Paz, uma verdadeira obsessão para ele – por ciúme de seu primeiro antecessor democrata, Barack Obama, que o recebeu em 2009.

Foi com essa mesma finalidade e para servir ao mesmo intento que a narrativa de um presidente norte-americano impondo o acordo de 29 de setembro a Netanyahu foi urdida pelo entourage de Trump, inclusive pelos negociadores norte-americanos do acordo: seu fiel amigo e parceiro de golfe, Steven Witkoff, assim como seu genro, Jared Kushner, ambos empreendedores imobiliários como ele. Essa narrativa foi novamente adotada pela oposição israelense a Netanyahu, que nela encontra sua vantagem. O próprio Hamas lhe deu seu aval: em seu comunicado de 3 de outubro, expressou seu “reconhecimento” pelos “esforços do presidente norte-americano, Donald Trump, ao chamar pelo fim da guerra contra a Faixa de Gaza, propor a troca dos prisioneiros, permitir a entrada imediata de ajuda e recusar a ocupação da faixa e o deslocamento de nosso povo palestino para fora do território”.

É muita bajulação ao homem que deu luz verde ao primeiro-ministro israelense para romper o acordo anterior, fechado em janeiro passado; que pediu o deslocamento da população de Gaza a fim de transformar a faixa em uma estância balneária sob tutela norte-americana; e que consentiu com a fome, acompanhada de cenas de massacre, que resultou da distribuição parcimoniosa de ajuda no território pela Gaza Humanitarian Foundation (GHF), dirigida por um de seus aliados. O comunicado do Hamas carrega, de fato, a marca da redação pelos membros de sua direção política, sujeitos à forte pressão do Catar, que os hospeda em seu território. Trata-se, na verdade, de um texto de compromisso entre estes e a direção do ramo militar ativo em Gaza.

E é sobretudo ao Catar que se deve o acordo de 29 de setembro. O emirado aumentou consideravelmente sua pressão sobre o movimento palestino para que este aceitasse abrir mão de sua última carta em mãos, libertando os últimos reféns em troca de promessas vagas sem garantias verdadeiras. Nesse sentido, Netanyahu terá total interesse em explicar no futuro que seu ataque contra líderes do Hamas em solo catari – longe de constituir uma gafe, como sugeriram alguns meios – foi decisivo para forçar o emirado a ceder. Uma vez obtido o consentimento do Hamas, Netanyahu não teve dificuldade em apresentar desculpas ao Catar – não pela violação de sua soberania, mas pela morte de um de seus cidadãos, atingido pelos bombardeios israelenses.

A história registrará que o principal beneficiário do “Acordo Trump de paz”, além do candidato ao Prêmio Nobel em pessoa, não é outro senão o primeiro-ministro israelense. Netanyahu não abandonou repentinamente o projeto de apoderar-se definitivamente da Faixa de Gaza, como por vezes foi noticiado. Já em 7 de agosto ele se deu ao cuidado de afirmar em entrevista concedida ao canal norte-americano Fox News, antes de uma reunião do gabinete israelense decisiva para o futuro do enclave: “Não queremos mantê-la. Queremos ter um perímetro de segurança, mas não queremos governá-la”.[3] O primeiro-ministro então enunciou “cinco princípios”: desarmamento do Hamas, desmilitarização de Gaza, libertação de todos os reféns, responsabilidade israelense em matéria de segurança e uma autoridade civil disposta a viver em paz com Israel.

Segundo Gal Hirsch, membro da equipe israelense de negociação, o plano hoje adotado teria sido elaborado por Netanyahu e seu ministro de Assuntos Estratégicos, Ron Dermer, há mais de um ano.[4] Eles previram que isso seria possível em função do retorno de Trump à presidência, não por temor da pressão deste sobre Israel, mas por convicção de que ele criaria as condições para a adoção de tal projeto, autorizando a intensificação da pressão militar israelense e o estrangulamento da população de Gaza – tudo isso ao mesmo tempo que dissuadiria a ultradireita sionista, parceira de Netanyahu no governo, de se opor. Foi o que Netanyahu explicou em sua declaração à população israelense em 10 de outubro: “Um especialista após o outro, cada noite, cada dia, nos dizia: ‘É impossível restituir os reféns sem atender à principal exigência do Hamas: retirar as Forças de Defesa de Israel (Tsahal) de toda a Faixa de Gaza, inclusive do perímetro, do corredor de Filadélfia, das zonas dominantes e de tudo o que isso implica’. […] Eu sabia que, se entrássemos com força no último bastião do Hamas – a cidade de Gaza – e lá destruíssemos os centros de poder, o Hamas tentaria salvar seu regime. Acreditava também que, além de nossa maciça pressão militar, se aplicássemos uma maciça pressão diplomática por parte de nosso grande amigo, o presidente Trump, essa combinação conduziria o Hamas a devolver todos os nossos reféns, enquanto o Tsahal permaneceria profundamente entrincheirado em Gaza e controlaria todos os pontos dominantes. E é isso que está acontecendo”.[5]

O próprio Trump confirmou as palavras do primeiro-ministro em discurso que proferiu perante o Knesset em 13 de outubro ao expressar sua gratidão por “um homem de coragem e patriotismo excepcionais” que “fez tanto para tornar possível este dia importante”, “um dos maiores presidentes em tempo de guerra”. Trump chegou a fazer, nessa vibrante homenagem, um pedido público ao verdadeiro presidente israelense, Isaac Herzog, para que concedesse clemência a Netanyahu pelas acusações de corrupção de que é alvo. “Charutos e champanhe, que diabos importa isso?” É verdade que os presentes – num total de US$ 260 mil que se imputam ao primeiro-ministro e à sua esposa – são uma ninharia comparados aos presentes que Trump e seus aliados receberam dos monarcas árabes do Golfo e de outros bilionários.

Como previra justamente Nadav Shtrauchler, ex-conselheiro de Netanyahu, em entrevista ao Financial Times poucos dias antes da chegada de Trump a Jerusalém: “Não há melhor diretor de campanha para Netanyahu do que Trump. Seu discurso [na Knesset] será o início da campanha eleitoral”.[6] De fato, cinco dias depois, na noite de sábado, 18 de outubro, Netanyahu anunciou oficialmente sua intenção de se candidatar mais uma vez ao cargo de primeiro-ministro, enquanto as sondagens confirmavam que ele continua o mais bem colocado para vencer as próximas eleições israelenses, as quais devem ocorrer no prazo de doze meses. Seu partido, o Likud, deverá novamente obter a maior fração na Knesset e ser encarregado de formar maioria.[7]

Já o povo palestino terá de aguardar que o plano de redesenvolvimento de Gaza seja posto em prática e o programa de reforma da Autoridade Palestina seja cumprido “fielmente” antes que “as condições possam eventualmente estar reunidas para uma via crível rumo à autodeterminação palestina e a um Estado palestino”, nas palavras altamente hipotéticas do “Acordo Trump de paz”.

*Gilbert Achcar é professor emérito na Soas, da Universidade de Londres. Autor de Gaza, génocide annoncé. Un tournant dans l’histoire mondiale [Gaza, genocídio anunciado. Uma virada na história mundial], La Dispute, Paris, 2025.

[1] Ler “Quel avenir pour Gaza” [Que futuro para Gaza], Le Monde Diplomatique, jun. 2024.

[2] O termo em inglês não é council, mas board, como em board of directors, conselho de administração.

[3] Toi Staff e Stav Levaton, “Netanyahu: Israel to take military control of all of Gaza, but ‘we don’t want to keep it’” [Netanyahu: Israel assumirá o controle militar de toda a Faixa de Gaza, mas “nós não queremos mantê-la”], Times of Israel, 7 ago. 2025.

[4] Jonathan Lis, “After two years of dodging deals, Netanyahu allies claim he had a plan all along” [Após dois anos evitando acordos, aliados de Netanyahu afirmam que ele sempre teve um plano], Haaretz, 14 out. 2025.

[5] Prime Minister’s Office, “Statement by Prime Minister Netanyahu” [Declaração do primeiro-ministro Netanyahu], 10 out. 2025, www.gov.il.

[6] Neri Zilber, “Netanyahu defies far right on Gaza as election looms” [Netanyahu desafia a extrema direita sobre Gaza à medida que eleições se aproximam], Financial Times, 10 out. 2025.

[7] Gabriel Colodro, “‘No one else could have handled this war like Netanyahu’: Why Likud keeps leading the polls” [“Ninguém mais poderia ter conduzido esta guerra como Netanyahu”: por que o Likud continua liderando as pesquisas], The Media Line, 16 out. 2025.