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Viagem ao mundo dos “mercadores da morte”

24 de novembro de 2025

A indústria de armamento dos Estados Unidos é responsável por mais de 40% das armas vendidas em todo o mundo e os seus lucros aumentaram exponencialmente. Para isso, além da invasão da Ucrânia e do ataque a Gaza, contribuiu o empenho dos lóbis armamentistas e o maior peso dos militares nas estruturas governamentais.

Em agosto passado, a investigação “the trillion-dollar war machine” exibida pela cadeia televisiva Al Jazeera, revelou as diversas vertentes do negócio da guerra, com foco nos Estados Unidos, onde a venda de armas apenas constitui uma das vertentes de uma complexa engrenagem.

A jornalista Hind Hassan viajou a Washington e na sua investigação também questionou os efeitos da indústria de armamento, ou do designado “complexo militar-industrial”, no estado da democracia norte-americana, a nível interno e externo.

Para além dos seus avultados lucros, as designadas “Big Five” empresas que dominam o comércio mundial de armamento (RTX, Lockheed Martin, Northrop Grumman, General Dynamics, Boeing) também beneficiam anualmente de importantes apoios: pela primeira vez na história do país, o orçamento para a Defesa dos EUA atingiu o bilhão de dólares (perto de um bilhão de euros). Em 4 de julho passado, data simbólica para o país, Donald Trump promulgou a One Big Beautiful Bill Act (OBBBA), a ferramenta orçamental que consagra um aumento de 156 mil milhões de dólares (cerca de 135 mil milhões de euros) em despesa militar.

A OBBBA representa para os seus promotores um significativo investimento no futuro da segurança nacional dos Estados Unidos, que inclui a modernização do arsenal nuclear e dos sistemas de defesa de mísseis e o reforço das capacidades aeroespaciais e do ciberespaço, além de assinaláveis investimentos nos diversos ramos das Forças Armadas. A ampla base industrial relacionada com a Guerra será de novo a principal beneficiada deste novo impulso armamentista.

No ano fiscal que terminou em 30 de setembro passado, a despesa pública nos EUA atingiu os 7 biliões de dólares (6.06 bilhões de euros), dos quais 13% foram gastos na área da Defesa.

Bombas para dizimar Gaza

Contudo, após diversas oscilações bolsistas, os “sinais de recuperação” já estavam instalados. A designada “guerra Israel-Hamas” – iniciada em 7 de outubro de 2023 com os ataques da organização palestiniana a diversas instalações policiais, militares e localidades fronteiriças a Gaza e com a implacável resposta militar de Telavive – abriu novos e bons tempos para o negócio da guerra, quando já se promovia intensa atividade em direção à Ucrânia na sequência da invasão russa em fevereiro de 2022.

Para socorrer o principal aliado norte-americano no Médio Oriente, o então Presidente democrata Joe Biden dirigiu à General Dynamics uma encomenda inicial de 106 milhões de dólares.

Segundo as declarações de Julia Gledhill, investigadora associada do Stimson Center, logo após o 7 de outubro de 2023 os EUA aceleraram o envio para Israel das BLU109 (anti-bunker) produzidas pela General Dynamics, capazes de perfurar os alvos antes de explodirem, componente substancial da “ajuda militar”. Estas bombas foram usadas por Israel para destruir vastas zonas residenciais, do topo até às fundações dos edifícios.

Desde 7 de outubro de 2023, foram enviadas pelos EUA mais de 15 mil destas bombas, das maiores disponíveis no “mercado”, para além das Mark 84, que formam uma cratera de 15 metros de largura e 11 metros de profundidade, versão recente de um engenho profusamente utilizado na guerra do Vietname.

A partir do seu ponto de impacto e num raio de 360 metros, centenas de pessoas que habitavam numa das áreas mais densamente povoadas do mundo passaram a ser atingidas por cada uma destas devastadoras armas. Hospitais, centros de ajuda humanitária, escolas, campos de refugiados, habitações, museus, foram particularmente flagelados.

O poder dos lóbis

Os conflitos em curso permitiram que as ações em bolsa recuperassem e os lucros disparassem. As “Big Five” também garantem apoios orçamentais e utilizam o seu poder para “comprar influência”, em particular através de chorudos donativos para senadores, republicanos ou democratas, que depois financiam as suas próprias campanhas eleitorais, com óbvias vantagens face aos seus adversários políticos.

Uma prática que acentua os riscos de degradação da democracia norte-americana pela indústria da guerra. Em termos de política interna, dinheiro significa influência, outro ângulo privilegiado pela investigação da Al Jazeera.

Estes alarmes soam desde há décadas. Em 17 de janeiro de 1961, no seu discurso de despedida na Sala Oval da Casa Branca, o Presidente republicano Dwight Eisenhower alertou contra a crescente influência do “complexo militar-industrial”. Na sua perspetiva, a manutenção e o crescimento da máquina de guerra do país, que no pós-II Guerra Mundial registou novo impulso com a Guerra da Coreia (1950-1953), dependiam de novos conflitos armados e de subsídios concedidos pelos governos. Pouco tempo depois, os Estados Unidos envolviam-se no Vietname, com crescente escalada a partir de 1965 até à retirada em 1973, após os Acordos de Paris.

Desta forma, a atuação dos lóbis empresariais junto dos decisores políticos, processo à partida considerado legítimo, constitui um aspeto fulcral. No seu depoimento, Julia Gledhill assinala o seu poder de persuasão face aos legisladores do Congresso, que incluem chorudas doações.

A investigação revela que no último ciclo eleitoral (excluindo o recente escrutínio de 4 de novembro), uma larga maioria dos legisladores recebeu doações da indústria de armamento. Estas empresas disponibilizaram muitos milhões de dólares para membros do Congresso norte-americano (Câmara dos Representantes e Senado), democratas e republicanos. Tudo normalizado. Mas que interesses defendem estes políticos?

Stephen Semler, cofundador do Security Policy Reform, um centro de pesquisa e reflexão independente que se opõe às “guerras perpétuas” e tenta promover a melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras norte-americanas, assinala nas suas declarações que os membros do Congresso são incentivados a aumentar a despesa militar em troca de contributos para as suas campanhas eleitorais, que em 2025 atingiram os 280 milhões de dólares.

Os comités do Congresso, ao escrutinarem a legislação e os orçamentos, podem tornar-se num obstáculo para a indústria da guerra. Assim, o foco das empresas armamentistas concentra-se nos seus membros mais influentes, que recebem as maiores somas.

O Committee on Armed Services é a estrutura responsável por supervisionar o orçamento do ex-Departamento da Defesa, que passou a designar-se Secretary of War (literalmente, Ministério da Guerra), dirigido por Pete Hegseth, ex-apresentador de televisão e antigo oficial da Guarda Nacional. Roger Wicker, senador republicano pelo Mississippi, preside ao Commitee on Armed Service e recebeu a maior fatia da campanha de doações da indústria de armamento num valor de 418 mil dólares, assinala o documentário, citando o relatório Open Secrets 2023-2024.

Não terá sido por acaso que Wicker se destacou entre os proponentes do documento “Peace Through Strength” (Paz através da Força) na defesa do aumento da despesa militares para 5% do PIB na próxima década, à semelhança do pretendido para a Europa. Em 2024, a percentagem do PIB gasto na Defesa situou-se nos 3,4%.

Estas benesses também beneficiaram diversos senadores democratas, em particular Tim Kaine, que pertence ao mesmo comité de Wicker e recebeu 416 mil dólares em doações, o segundo maior montante (fonte: Open Secrets 2023-2024). Decisivas vantagens face aos seus adversários na corrida para o Senado.

No decurso da sua investigação em Washington, Hind Hassan assinala outro organismo decisivo, o Senate Appropriations Committee, presidido pela republicana Susan Collins, que supervisiona todas as despesas governamentais, incluindo os subcomités para a Defesa e para a Segurança Interna, área que também regista significativo reforço.

Collins é das principais receptoras de doações da indústria de armamento, contemplada com 89 mil dólares (Fonte: Open Secrets 2023-2024). Mas o seu marido, Thomas Daffron, detém ações em diversas empresas, incluindo na RTX (que fabrica bombas de perfuração) e na Boeing (que produz sistemas de orientação).

Outro estudo, citado no documentário, indica que 37 membros do Senado e familiares, diretamente relacionados com a aprovação de legislação para a indústria armamentista, investiram cerca de 130 milhões de dólares em ações de diversas empresas.

O Pentágono (agora Departamento da Guerra) tornou-se no principal cliente das “Big Five”, mesmo que tenha registado alguns revezes no decurso das obrigatórias audições. Em outubro de 2024, o jornal de investigação digital The Intercept revelou que a Raytheon – que integra o conglomerado multinacional RTX –, admitiu envolvimento numa fraude e subornos ao Pentágono avaliados em 950 milhões de dólares.

Em simultâneo, todas as tentativas de Hind Hassan para ser recebida pelos responsáveis das Big Five saíram goradas. E quando abordou diretamente Roger Wicker e Susan Collins nos corredores do Congresso, apenas se confrontou com evasivas respostas.

Tribunal dos “mercadores da morte”

A investigação da Al Jazeera também deu a palavra a Brad Wolf, coordenador do tribunal “Merchants of Dead Tribunal”, definido como um “tribunal popular” e com longa tradição. “Quando um tribunal recusa agir para responsabilizar indivíduos, empresas ou governos, o povo tem de agir. Este tribunal responsabiliza as empresas de armamento norte-americanas por fabricarem produtos que matam civis inocentes em elevado número e por todo mundo”, esclarece.

Esta instância independente entrevistou juristas internacionais, responsáveis militares, jornalistas, vítimas, médicos, trabalhadores de agências humanitárias. Reuniu as informações em documentos em vídeo para serem apresentados a juízes envolvidos neste processo, mas também divulgadas em público. “Este tribunal também possui uma função educativa”, acrescenta.

Brad Wolf revela que após oito meses de investigação e a apresentação dos respetivos documentos, os juízes associados a esta iniciativa consideraram a RTX, Lockheed Martin, Boeing e General Atomics, culpadas de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio, em conformidade com os critérios em vigor no Tribunal Penal Internacional de Haia, em funcionamento desde 2002.

“Não produzem apenas as armas, criam uma narrativa com os seus dólares que se traduz em lóbi no Congresso e no Pentágono. Por elevadas somas em dinheiro, contratam ex-responsáveis reformados do Pentágono na reforma para a administração dessas empresas, que de seguida surgem em “shows” televisivos na CNN, MSNBC ou FOX para convencerem a opinião pública da necessidade de uma ação militar - mais contratos para essas empresas de armamento. Criam uma narrativa para vender produtos que sabem que vão matar pessoas inocentes”, prossegue Wolf.

Nas recomendações incluídas no veredito final, os juízes deste tribunal popular recomendam aos lóbis que terminem a sua influência sobre os membros do Congresso que aprovam os contratos para os fabricantes de armamento. Também defendem que os presidentes executivos destas empresas deveriam ser responsabilizados por crimes de guerra.

A democracia questionada

Julia Gledhill, investigadora associada do Stimson Center, empenhada na promoção da segurança internacional, confirma outro cenário preocupante: “a indústria do armamento infiltrou-se em quase toda a estrutura do Governo federal dos EUA, a ponto de ser questionável o controlo civil sobre os militares. Uma situação ambígua, cujo fim estratégico é totalmente obscuro e é perfeito para estes contratos”, afirma.

Gledhill também não vaticina um futuro risonho caso prossiga a atual deriva armamentista: “Num processo de competição entre grandes potências não há vencedores, nenhum império conseguiu manter o seu domínio no mundo para sempre, vemos isso na História repetidas vezes. Mas os Estados Unidos pensam que são especiais e que terão capacidade em manter para sempre o domínio global”.

A vocação imperial dos Estados Unidos revela-se pela rede de 128 bases militares espalhadas pelo mundo em 2024, que incluem presença de tropas, com o objetivo de manter o “domínio global”, o que, na perspetiva da investigadora, compromete a preservação da democracia, a qualidade de vida das populações, a paz no mundo.

Desde 1945, assinala o documentário, os EUA bombardearam ou invadiram pelo menos 28 países, provocando a morte de milhões de pessoas. Só nos primeiros seis meses do seu segundo mandato, Trump mandou bombardear três países: Iémen, Somália e Irão.

Sob a doutrina do “Great Power Competition” [competição entre grandes potências], o orçamento para a Defesa anunciado por Trump ultrapassa a soma dos seguintes dez países que mais investem nas suas Forças Armadas. Em maio passado, ao discursar no Saudi-US Investment Forum, Donald Trump prometeu “os melhores mísseis, as melhores armas… odeio fazê-lo, mas temos de fazê-lo porque acreditamos na paz através da força”.

A militarização da Europa, assumida por grandes conglomerados em acelerada adaptação e justificada pelo perigo do “expansionismo russo” tornou-se outra realidade, com a União Europeia a mobilizar 800 mil milhões de euros ao longo da próxima década.

Neste contexto, e para além do imparável reforço militar da Polónia, a Alemanha vai assumir uma função particular. Em 7 de novembro, o chanceler alemão Fredrich Merz considerou que “a ameaça russa é real” e que a Alemanha, terceira economia do mundo e um dos 32 Estados-membros da NATO, não tem tempo a perder: “temos de ter o maior exército convencional da União Europeia para estar à altura”. No espaço europeu, o exército alemão é o sétimo em termos de pessoal ativo e reservistas, ultrapassado em ordem decrescente pela Rússia, Ucrânia, Turquia, Polónia, França e Reino Unido.

Por sua vez, Trump parece agora privilegiar outras latitudes, após o que tem sido definido de “abandono dos aliados europeus” pelo império do outro lado do Atlântico. Assim, o envio de armamento norte-americano para a Ucrânia, que Joe Biden incrementou, foi reduzido e efetuado por “via indireta”, com mais custos assumidos pelos “aliados” da UE e da NATO.

Mais recentemente, desde setembro, Donald Trump ordenou ações militares nas Caraíbas e no Oceano Pacífico em 19 ataques aéreos, que provocaram a morte de 76 civis alegadamente suspeitos de tráfico de droga.

O mais recente sinal surgiu quando o Presidente norte-americano disse estar convencido que Rússia, China, Coreia do Norte e outros países com armas atómicas estão a realizar detonações nucleares, ameaçando retomar os testes norte-americanos. A milionária máquina de guerra terá de novo rejubilado.ado.