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A Turquia e o contágio neofascista

2 de abril de 2025

Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net

O contágio neofascista tornou-se ainda mais forte hoje, com a passagem dos Estados Unidos de um papel de dissuasor da erosão da democracia, embora dentro de limites óbvios, para o de encorajador dessa erosão. Não é, pois, coincidência que o ataque de Erdogan à oposição tenha começado após um telefonema entre ele e Trump.

Os acontecimentos que se desenrolam na Turquia desde a última quarta-feira são extremamente graves: constituem um novo e muito perigoso passo no deslize do país em direção à asfixia da democracia. A prisão de Ekrem Imamoglu - o popular presidente da câmara de Istambul e candidato do seu partido, o Partido Republicano do Povo (CHP), às próximas eleições presidenciais previstas para 2028 - e a detenção de cerca de 100 dos seus colaboradores no município da maior cidade da Turquia, sob acusações que combinam corrupção (a justiça turca deveria ter investigado antes a corrupção no círculo de Erdogan, a começar pelo seu genro) e ligações ao “terrorismo”, ou seja contatos com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) (numa altura em que o governo está negociando com este partido para uma solução pacífica), é um comportamento saído diretamente do manual familiar das ditaduras.

Se alguém tinha dúvidas de que as acusações eram forjadas e que a intenção era eliminar a figura mais forte da oposição ao governo de Recep Tayyip Erdogan, que parece determinado a governar o seu país para toda a vida como outros governantes autocráticos, a decisão da Universidade de Istambul de invalidar o diploma de Imamoglu na véspera da sua detenção não deixa margem para dúvidas. Um diploma universitário é um dos requisitos para se candidatar à presidência na Turquia e a decisão da universidade baseou-se num pretexto completamente frágil, especialmente porque Imamoglu recebeu o seu diploma há trinta anos!

Há quase um ano, no rescaldo das últimas eleições autárquicas na Turquia, recordei o papel de Erdogan no estabelecimento da democracia no seu país durante a primeira década do seu governo. Apesar da sua subsequente deriva autocrática, incluindo o afastamento dos dirigentes do seu partido que considerava rivais, elogiei o seu reconhecimento da derrota do seu partido nas eleições autárquicas, o que o distinguiu de vários neofascistas que não aceitam a derrota, incluindo Donald Trump, que tentou derrubar o processo eleitoral que teve lugar no outono de 2020 e ainda se recusa a reconhecer a sua derrota, alegando que a presidência lhe foi roubada (“Duas lições importantes das eleições turcas”, 2 de abril de 2024 - apenas em árabe).

A moral desta história é que o mesmo homem que iniciou a sua carreira política com uma luta corajosa contra um regime ditatorial e que, durante o seu mandato como presidente da Câmara de Istambul, sofreu algo muito semelhante ao que está agora a infligir ao seu adversário, o atual presidente da Câmara - este homem, que desempenhou um papel louvável na instauração da democracia no seu país, foi levado pela embriaguez do poder e pelo gozo de uma grande popularidade a desejar perpetuar esta condição, mesmo que impondo-a coercivamente à custa da democracia. E, no entanto, até ao ano passado, Erdogan não ultrapassou a linha vermelha qualitativa que separa a preservação de uma margem de liberdade que permite a sobrevivência da democracia, ainda que com dificuldades crescentes, e a invasão dessa margem de forma ditatorial.

Isto apesar de Erdogan exibir algumas caraterísticas neofascistas, ao basear-se numa “mobilização agressiva e militante da [sua] base popular” num terreno ideológico que incorpora algumas das componentes-chave da ideologia de extrema-direita, incluindo o fanatismo nacionalista e étnico contra os curdos (em particular), o sexismo e a hostilidade, em nome da religião ou de outra forma, a vários valores liberais (ver “A era do neofascismo e suas caraterísticas distintivas”, 4 de fevereiro de 2025). A sua atual deriva sugere que está agora a completar a adesão às fileiras dos regimes neofascistas no que diz respeito à sua posição em relação à democracia. No artigo acima mencionado, descrevi esta posição da seguinte forma: “O neofascismo alega respeitar as regras básicas da democracia em vez de estabelecer uma ditadura nua e crua, como fez o seu antecessor, mesmo quando esvazia a democracia do seu conteúdo ao corroer as liberdades políticas reais em graus variados, dependendo do verdadeiro nível de popularidade de cada governante neofascista (e, portanto, da sua necessidade ou não de cometer fraude eleitoral) e do equilíbrio de poder entre ele e os seus oponentes.

Há dois grandes fatores por trás da deriva de Erdogan em direção ao neofascismo. O primeiro é o facto de a tentação neofascista aumentar sempre que um governante autoritário enfrenta uma oposição crescente e teme perder o poder através da democracia. Vladimir Putin é um exemplo disso, na medida em que a sua deriva se intensificou quando enfrentou uma oposição popular crescente no seu regresso à presidência em 2012 (após uma farsa de transferência para o cargo de primeiro-ministro em conformidade com a Constituição, que na altura proibia mais de dois mandatos presidenciais consecutivos). Ao mesmo tempo, Putin recorreu ao incitamento do sentimento nacionalista em relação à Ucrânia (em particular), tal como Erdogan fez mais tarde em relação aos curdos.

O segundo, e crucial, fator é a ascensão do neofascismo ao poder nos Estados Unidos, representado por Donald Trump. Isto proporcionou um poderoso incentivo para o fortalecimento de várias formas de neofascismo atual ou latente, como vemos claramente em Israel, na Hungria e na Sérvia, por exemplo, e como iremos testemunhar cada vez mais a nível global. A força do contágio neofascista é proporcional à força do principal pólo neofascista: o contágio fascista foi grandemente reforçado, particularmente no continente europeu, quando o poder da Alemanha nazi cresceu na década de 1930. O contágio neofascista tornou-se ainda mais forte hoje, com os Estados Unidos a passarem de um papel de dissuasor da erosão da democracia, embora dentro de limites óbvios, para o de encorajador dessa erosão, direta ou indiretamente. A erosão já está em curso e a acelerar dentro dos próprios Estados Unidos.

Não é, pois, coincidência que o ataque de Erdogan à oposição tenha começado após um telefonema entre ele e Trump, que Steve Witkoff, amigo íntimo de Trump e enviado para várias negociações, descreveu na passada sexta-feira como “ótimo” e “realmente transformador”. Witkoff acrescentou que "o Presidente [Trump] tem uma relação com Erdogan e isso vai ser importante. E há algumas coisas boas a chegar - muitas notícias boas e positivas a sair da Turquia neste momento, como resultado dessa conversa. Por isso, penso que verá isso nas reportagens dos próximos dias". (A declaração de Witkoff foi feita dois dias depois da detenção de Imamoglu, embora ele não estivesse necessariamente a referir-se a essa detenção). Além disso, Erdogan acreditava ter conseguido neutralizar o movimento curdo através de compromissos recentes, que foram abençoados pelos seus aliados da extrema-direita nacionalista turca (enganou-se: o movimento curdo saiu em apoio da oposição e do protesto popular). Acredita também que os europeus precisam dele, e do seu potencial militar em particular, neste momento crítico para eles, de modo a não exercerem qualquer verdadeira pressão sobre ele.

O que continua a ser uma fonte de esperança no caso turco é o facto de Erdogan estar a enfrentar uma reação popular muito para além do que ele aparentemente previa. Esta reação de massas é muito maior do que a que Putin enfrentou na Rússia, onde o movimento popular estava atrofiado após décadas de regime totalitário. É muito maior do que a que a maioria dos pioneiros do neofascismo enfrentou, incluindo Trump, que só encontrou uma oposição muito fraca do Partido Democrata desde a sua segunda eleição. Erdogan está a tentar abafar o movimento popular através de uma escalada de repressão (o número de detidos aproxima-se dos 1.500, num país com uma população prisional de 400.000, incluindo uma elevada percentagem de presos políticos e muitos jornalistas) à custa da segurança, estabilidade e economia da Turquia (o Banco Central foi forçado a gastar 14 bilhões de dólares para evitar um colapso total da lira turca e o mercado de ações sofreu uma queda acentuada).

A batalha em curso na Turquia está a tornar-se cada vez mais importante para o mundo inteiro. Ou Erdogan consegue eliminar a oposição, o que poderia implicar uma repressão sangrenta semelhante à de Bashar al-Assad contra a revolta popular síria em 2011, arriscando assim o país a cair numa guerra civil, ou o movimento popular prevalecerá, levando-o a recuar ou a cair de uma forma ou de outra. Se o movimento popular turco vencer, a sua vitória terá um impacto significativo na galvanização da resistência à ascensão do neofascismo em todo o mundo.

Traduzido do original árabe publicado no Al-Quds al-Arabi em 25 de março de 2025. Publicado no blogue do autor.

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Sobre o/a autor(a)

Professor de Estudos de Desenvolvimento e Relações Internacionais na SOAS, Universidade de Londres. Entre os seus vários livros contam-se: The Clash of Barbarisms: The Making of the New World Disorder; Perilous Power: The Middle East and U.S. Foreign Policy, com Noam Chomsky; The Arabs and the Holocaust: A Guerra de Narrativas Árabe-Israelita; The People Want: A Radical Exploration of the Arab Uprising; e The New Cold War: The United States, Russia and China, from Kosovo to Ukraine. Leia mais em gilbert-achcar.net