POR CATARINA MARTINS
Artigo publicado em Anticapitalista #81 – Julho 2025
Via Esquerda.net
Imagem: Reprodução Jacobin Latinoamérica
O Die Linke conseguiu ser tanto motor da mobilização anti-fascista como crescer nessa mobilização. É, portanto, a Esquerda preparada para o combate político destes tempos.
A extrema-direita condiciona a governação de forma global. Na Europa está em governos nuns casos, noutros espreita. Na América Latina todos os governos de centro estão sob ataque e a motosserra de Milei aí está para lembrar quem ande distraído que a extrema-direita tem muitas vestes, da liberal à nacionalista. Estados Unidos, Rússia, Índia e Israel decidem sobre a economia e a guerra mundiais. É a extrema-direita global a impor a sua nova ordem. O perigo e o caminho não são novos, mas a velocidade é agora alucinante. Tempo de apertar o cinto, pôr gelo nos pulsos e reagir.
Recuo
Em 2021, nas eleições federais alemãs, o Die Linke (A Esquerda) teve um dos seus piores resultados de sempre. Foi por muito pouco que não ficou fora do Bundestag e acabaria por perder o estatuto de grupo parlamentar. Esta derrota vinha na sequência de uma série de desaires eleitorais e foi seguida por outros (regionais e europeias de 2024). Num partido em dificuldades, multiplicaram-se casos e divergências, sempre amplificados nas redes e na comunicação social.
Dois anos mais tarde, em 2023, uma cisão protagonizada por Sahra Wagenknecht aparecia como uma sentença de morte para o partido. A nova Aliança Sahra Wagenknecht (SWB) era vista como a grande esperança da esquerda e teve resultados eleitorais impressionantes: nas eleições regionais de 2024 conseguiu 10% e 15% nalguns Estados, sendo mesmo o terceiro partido, e, nas eleições europeias do mesmo ano, garantiu 6 mandatos no parlamento europeu (o dobro do Die Linke, que teve o seu pior resultado de sempre). A receita anunciada era simples: falar aos trabalhadores e distanciar-se da esquerda “elitista”. Defender a imigração ou o clima devia sair da agenda política. Com o debate político capturado pela extrema-direita, alguma esquerda considerou que era chegado o tempo de abandonar as bandeiras progressistas e reinventar o anti-capitalismo à sombra de um novo conservadorismo. O centro gostou, claro. A esquerda auto-destruía-se, assimilando o discurso xenófobo e negacionista e até o ataque à esquerda progressista como “identitarista”. Sahra Wagenknecht foi apresentada pela comunicação social como promessa de futuro e, até hoje, à esquerda, há quem continue tentado por este caminho. Este, sim, é o maior recuo.
A aliança de facto com a extrema-direita europeia (talvez não alemã, que é extremada demais até para Le Pen), só aumentou o campo do senso comum racista e obscurantista. A SWB teve bons resultados eleitorais em 2024, sim, mas houve ganhos no campo da esquerda? Nas mesmas eleições em que a SWB brilhou, a extrema-direita (AfD) acumulou vitórias. Ganhou pela primeira vez as eleições numa região e ficou em segundo lugar nas europeias. Se é certo que a SWB conquistou uma centralidade política inquestionável à esquerda, e uma importante representação institucional a nível regional e europeu, não é menos certo que, ao contrário do que vinha sendo dito, a SWB foi incapaz de disputar os votos da extrema-direita. A AfD, entre 2021 e 2025, duplicou a votação nas eleições federais. Passou de 10% a 20%. A SWB ficou fora do Bundestag.
Resistência
Entre 2021 e 2025 mudou muita coisa. Estes são tempos velozes e é impossível perceber o que se passou na Alemanha sem pensar nas ondas de choque da guerra na Ucrânia, do genocídio em Gaza e da eleição de Trump. O aumento do preço da energia, com a imposição de sanções à Rússia, foi tremendo. A dependência alemã era quase completa e a inflação explodiu como em poucos outros países da Europa. Os resultados eleitorais de 2024 parecem indicar que o alinhamento da extrema-direita e da SWB com a Rússia surgiu, para algumas camadas da população, como a forma natural de garantir a baixa dos preços. Afinal, a transição climática é coisa que nunca se viu e a autodeterminação da Ucrânia não aparece nas contas quando se tenta esticar o ordenado até ao final do mês.
O fim da Guerra é o objetivo repetido da esquerda à direita, mas, quando o genocídio em Gaza começa a ser transmitido em direto nas televisões e telemóveis, o debate sobre a Paz prova-se mais complexo. Em todo o mundo e, pelas óbvias razões históricas, muito especialmente na Alemanha. A distância das gerações mais jovens às culpas históricas não permite apenas o crescimento dos neo-nazis. Também há esquerda, empatia e humanismo a mover montanhas. Neste caso, o apoio nunca questionado e sempre incondicional da Alemanha a Israel.
Multiplicam-se as manifestações de apoio à Palestina, sempre sob forte repressão policial. Na Alemanha, pedir cessar fogo em Gaza vale a acusação de anti-semitismo e genocídio é palavra proibida. Mas é aqui que jovens gerações se tornam ativistas e se politizam. São cada vez mais, com muita determinação e vão mudar o quadro político. Não há luta pela Palestina compatível com a xenofobia. A extrema-direita anti-semita e islamofóbica não entra aqui. O Die Linke não é imune às dificuldades da política alemã sobre a Palestina, mas foi o único partido capaz de albergar estes ativistas que agora começavam a intervenção política.
Entretanto, e a poucas semanas das eleições federais alemãs, Trump toma posse como Presidente dos Estados Unidos da América. Os efeitos na Europa são duplos e de sentido oposto: a naturalização do seu protofascismo, por um lado, a chamada à resistência antifascista, por outro. Na Alemanha, nesse momento, o cordão sanitário à extrema-direita é quebrado pela primeira vez. A CDU votou uma proposta anti-imigração da AfD no final de janeiro de 2025. O Die Linke, que está fora da coligação governativa (onde estavam os Verdes) e tem posições claramente distintas na imigração (ao contrário da SWB), é o único partido capaz de ser porta-voz da indignação de largos setores contra esta cedência do centro à extrema-direita. E afirma-se como interlocutor político das gigantescas manifestações antifascistas que encheram as ruas durante o mês seguinte. Não ter cedido nos princípios provava-se fundamental na construção da resistência.
Mobilização
O Die Linke não estava preparado para as eleições antecipadas de 2025. Talvez nenhum partido estivesse. Mas o resultado eleitoral, o melhor desde 2017, não foi um acaso. Correspondeu a uma enorme mobilização conseguida em tempo recorde, mas com raízes construídas antes de sequer se adivinhar uma campanha ao virar da esquina. A política estava a mudar e era preciso um partido que respondesse à mudança. No segundo semestre de 2024, o Die Linke estava frágil, mas, finalmente, unido. Teve as condições para um debate interno profundo e decidiu que era necessário mudar a linguagem e a forma de comunicação, sem mudar nos princípios. Captaram-se novos públicos para as redes sociais, com plataformas sobre rendas e preços da energia para provar a utilidade do partido. Foram feitos estudos de opinião e grupos focais para perceber como quebrar o condicionamento que a extrema-direita impõe ao debate político. E esse conhecimento não ficou na direção. Foi para o partido. Simultaneamente, para responder às dificuldades que atravessava, mas também para enquadrar as novas gerações de militantes que nunca pararam de chegar, mesmo nos momentos mais complicados, o Die Linke tinha montado processos de formação política e alimentado a atividade de base em núcleos espalhados por todo o país. O “porta-a-porta” nasceu desses processos e provou-se um instrumento valioso de mobilização e politização, mas também de auscultação. Na definição das prioridades políticas, estava já toda essa aprendizagem. Finalmente, quando chegou a enorme mobilização anti-fascista, despoletada na reta final da campanha com o fim do cordão sanitário, o Die Linke estava pronto. Como porta-voz da indignação antifascista no Bundestag, a sua líder parlamentar alcançou uma enorme e nova popularidade. Com os núcleos ativistas, articulou a resposta à chamada das ruas. No final de janeiro, e como nenhuma sondagem previa, o Die Linke provava-se o mais vivo dos partidos à esquerda. Tinha a resposta política, a forma de integrar os novos ativistas e um novo alcance nas redes sociais para multiplicar o seu público. E os resultados eleitorais aí estão para provar isso mesmo.
A enorme vitória do Die Linke foi derrotar a sua morte anunciada. O salto para quase 9% dos votos não lhe garante qualquer capacidade de influenciar uma governação, cada vez mais à direita. Sobretudo, falta derrotar o perigo fascista. Afinal, a AfD saiu das eleições como o segundo maior partido. Uma coisa parece certa: o Die Linke conseguiu ser tanto motor da mobilização anti-fascista como crescer nessa mobilização. É, portanto, a Esquerda preparada para o combate político destes tempos. O que conseguir fazer agora, um partido em que metade da militância é constituída por ativistas muito jovens e que se juntaram nos últimos meses, será chave da luta contra a extrema-direita.