Eric Blanc
Via Viento Sur
A vitória de Zohran Mamdani nas primárias democratas de Nova York representa muito mais do que um simples rebuliço eleitoral. Confirma que a política progressista, quando conduzida com disciplina, visão e vigor, pode ter um grande impacto, mesmo em uma cidade conhecida por suas estruturas de poder bem estabelecidas.
Essas primárias estavam longe de ser normais. Andrew Cuomo, ex-governador cuja queda política parecia irreversível há apenas alguns anos [em dezembro de 2020 foi acusado de assédio sexual e, em 2021, de violar diversas leis federais], havia se posicionado como o grande favorito. Amparado por milhões de dólares vindos de interesses empresariais, super PACs [estruturas de arrecadação de fundos sem limites] e doadores bilionários como Michael Bloomberg e Bill Ackman [bilionário que tem liderado diversas iniciativas conservadoras, entre elas contra programas de diversidade e inclusão], Andrew Cuomo contava fortemente com a inércia institucional e o apoio das altas esferas. No entanto, na noite de terça-feira, 24 de junho, na primeira rodada das primárias democratas, ficou claro que isso não seria suficiente para levá-lo até a vitória.
Zohran Mamdani, um político de 33 anos oriundo do Queens [um dos cinco distritos de Nova York, conhecido por sua composição multicultural], conduziu uma campanha rigorosa e disciplinada, centrada em questões relacionadas ao custo de vida, com ênfase em necessidades básicas como moradia, transporte, cuidado infantil e alimentação. As tentativas repetidas de apresentar Zohran Mamdani como um simples socialista muçulmano com ideias radicais, de promover uma política identitária para dividir ou de transformar essas eleições em um referendo sobre Israel fracassaram.
A seguir, publicamos o ponto de vista de Eric Blanc, autor de diversas obras sobre o mundo sindical e professor adjunto na Universidade de Rutgers. Colabora, entre outros, com The Nation, Jacobin e New Labour Forum. Redação de À l’Encontre.
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Após décadas de derrotas para os trabalhadores e para a esquerda, testemunhar ontem à noite a entrada de Zohran Mamdani na história parecia quase irreal. Às vezes, os bons vencem. Como escreveu David Hogg [ativista contra as armas] ontem à noite: 'ÚLTIMA HORA: Nem tudo precisa ser ruim'.
É fundamental tirar lições desta campanha para as lutas que estão por vir, não apenas em Nova York, mas em todo os Estados Unidos. Aqui está uma primeira lista das principais lições que devemos lembrar.
1) A vitória de Zohran Mamdani é um terremoto político em nível nacional. Muitos eleitores estão cansados do establishment democrata, e não há nenhuma razão válida para que sua estratégia não possa ser amplamente reproduzida em outros lugares. A velha guarda decadente do Partido Democrata é vulnerável, sua impopularidade nos trouxe o trumpismo e ela merece ser substituída em todos os lugares.
2) Ao insistir obstinadamente em suas propostas para tornar a cidade de Nova York mais acessível [¹], Zohran Mamdani conseguiu ir além do núcleo duro da esquerda, formado por pessoas com formação universitária. Ele venceu em todos os bairros da cidade, inclusive nos bairros populares como Sunset Park e Woodhaven, que em 2024 haviam se inclinado à direita, em favor de Trump. As reivindicações socioeconômicas populares são nossa melhor arma para reconquistar o apoio da classe trabalhadora e derrotar o trumpismo. Devemos atacar os bilionários, não os imigrantes ou as pessoas transgênero.
3) Devemos continuar ignorando os especialistas e políticos oportunistas que tentam nos convencer de que a mudança profunda é impossível, ou de que o melhor que podemos fazer é perseguir um mítico centro político, em vez de vencer a batalha das ideias e despertar esperanças ambiciosas entre as eleitoras e eleitores.
4) Os bilionários tentaram comprar estas eleições — e sofreram uma derrota esmagadora. Acontece que a oligarquia não é invencível.
5) Os especialistas tentarão apresentar isso como resultado da impopularidade de Andrew Cuomo ou do carisma de Zohran Mamdani. Isso é parte da realidade, mas apenas uma parte. Para além da pertinência de suas propostas e da clareza de sua mensagem sobre o custo de vida, ele jamais teria vencido sem o trabalho incansável de 50 mil voluntárias e voluntários, dos Socialistas Democráticos da América (DSA) de Nova York e de outras organizações aliadas. Bater à porta de 1,5 milhão de residências é uma façanha notável.
6) A juventude esteve no centro desta campanha. Ontem à noite, dezenas de milhares de jovens puderam viver a emocionante experiência de fazer história graças à organização coletiva. Basta viver isso uma única vez para se tornar um ativista por toda a vida. Este movimento social juvenil tem a energia e a ambição necessárias para devolver Nova York à social-democracia (referência ao artigo de Joshua B. Freeman sobre a singularidade do prefeito Fiorello La Guardia, republicano, e suas relações com um setor da esquerda, o Partido Progressista).
7) As redes sociais são extremamente importantes para captar a atenção de amplos setores do eleitorado, e a equipe de comunicação de Zohran foi formidável. Mas o segredo de uma boa comunicação não é, antes de tudo, técnico, e sim político: é preciso um mensageiro autêntico, com um programa convincente. Os Hack Democrats [que priorizam as redes sociais] querem reativar uma força política por meio desse tipo de iniciativa.
8) O fato de que as calúnias cínicas de Andrew Cuomo sobre o suposto antissemitismo [de Zohran Mamdani] tenham fracassado é extremamente importante, com implicações nacionais e internacionais. Acontece que se opor ao genocídio em Gaza e reconhecer a humanidade dos e das palestinas não é, necessariamente, um fator decisivo negativo nas eleições. O AIPAC [Comitê de Assuntos Públicos Americano-Israelense, grupo de lobby pró-Israel criado em 1963 e fortemente vinculado ao Likud] deveria estar seriamente preocupado.
9) Ao contrário do que afirmam seus adversários, Zohran Mamdani não é um extremista dogmático, mas sim um pragmático radical. Ele não teria chegado tão longe se não tivesse focado em questões econômicas fundamentais, se não tivesse mantido um discurso sensato, se não tivesse se apresentado como democrata, se não tivesse renunciado ao apoio à redução do orçamento da polícia [²] e se não tivesse apoiado Brad Lander [outro candidato democrata nas primárias, com perfil progressista dentro do partido, que ficou em terceiro lugar no primeiro turno; em 2022 assumiu o cargo de auditor financeiro da cidade]. Zohran Mamdani recusou-se a abandonar seu apoio ao socialismo democrático ou sua oposição ao apartheid sionista, mas o ultraesquerdismo performático estava proibido nesta campanha.
10) Foi necessária uma aliança entre a esquerda liberal e a esquerda radical para derrotar Andrew Cuomo. Brad Lander merece grande parte do crédito por ter sido um homem de princípios que se recusou a atacar a esquerda. Ao mesmo tempo, Zohran Mamdani rejeitou, de forma inteligente, uma tendência comum entre militantes de esquerda de tratar liberais e o liberalismo unicamente como adversários ideológicos a combater. Basta observar como ele adotou os melhores elementos do programa da abundância [uma espécie de terceira via entre a esquerda socialista e a direita autoritária], como apoiou Lander e como formulou suas críticas a Israel em termos de igualdade de direitos para todos e todas. A esquerda não pode derrotar o antigo establishment democrata — e muito menos a direita — sozinha. E a reciprocidade também é verdadeira: não podemos contar com os liberais (no sentido progressista) apenas quando estamos à frente.
11) A presença de Zohran nos sindicatos foi um passo crucial para legitimar sua campanha. Entre os sindicatos que se arriscaram a ficar ao lado das e dos trabalhadores apoiando Zohran estão a AFSCME DC 37 [funcionários municipais], a UAW Região 9a, o Doctors Council SEIU – Service Employees International Union [sindicato de médicos], o CIR/SEIU [sindicato de trabalhadores de casas de repouso e de serviços de emergência], o UNITE HERE Local 100 [trabalhadores do setor de alimentação], o IATSE Local 161 [trabalhadores do setor de entretenimento], o PSC-CUNY [professorado universitário], o OPEIU Local 153 [trabalhadores dos setores público e privado] e o Teamsters Local 804 [motoristas de caminhão].
Todos os sindicatos que apoiaram Andrew Cuomo deveriam se envergonhar de sua visão estreita. A boa notícia é que agora têm a oportunidade de se redimir apoiando Zohran Mamdani nas eleições gerais.
12) A luta está apenas começando. Os democratas tradicionais, Trump e seus financiadores bilionários farão de tudo para impedir que Zohran Mamdani assuma o cargo executivo em novembro ou, se isso falhar, para impedir que ele implemente seu programa. Preparem-se para uma campanha de medo sem precedentes, financiada por bilionários, com o objetivo de convencer os nova-iorquinos de que uma prefeitura liderada por Zohran Mamdani levará a cidade à falência, desencadeará uma onda de criminalidade e perseguirá a população judaica.
13) Diante das acusações de que seu projeto levará à ruína e ao caos urbano, Zohran Mamdani pode se apoiar na competência progressista e tecnocrática da equipe de Lander e mostrar o exemplo das cidades social-democratas florescentes por toda a Europa, assim como os sólidos precedentes históricos de sucesso nos Estados Unidos. Antes de batizarem um aeroporto com seu nome, como lembra Waleed Shahid, o prefeito socialista de Nova York Fiorello La Guardia — que teve enorme sucesso — também foi inicialmente denunciado como um radical irrealista.
14) A experiência de La Guardia, assim como a dos socialistas dos esgotos de Milwaukee (iniciada em 1910, quando três socialistas se sucederam no cargo de prefeito), mostra que não basta vencer as eleições. Quando se enfrenta adversários tão poderosos, é necessário ter uma grande força popular organizada fora do Estado para realmente colocar o programa em prática. O obstáculo mais difícil de superar é que o sucesso eleitoral de Zohran Mamdani ultrapassou, de longe, o grau atual de organização da classe trabalhadora e dos socialistas em Nova York. Criar uma organização de grande escala nos locais de trabalho e nos bairros é algo difícil, essencial e urgente. Por isso, filie-se ao DSA. Organize seu local de trabalho com a ajuda da EWOC [plataforma para organização sindical]. Reforme seus sindicatos [ver a rede Labornotes]. Ou crie um sindicato de inquilinos no seu prédio.
15) O número de filiados ao DSA está prestes a crescer significativamente. E a organização será alvo de intensa vigilância por parte da Fox News, de Trump e do establishment democrata. É hora de unirmos forças e darmos uma guinada coordenada, em nível nacional, para nos afastarmos de um radicalismo que nos marginaliza. Os membros devem estudar e se inspirar na orientação política de massas do DSA de Nova York. Se esta campanha não se encaixa perfeitamente em todas as suas convicções ideológicas, talvez sejam essas convicções que estejam equivocadas.
16) Haverá todo tipo de retrocesso importante nos próximos meses e anos. Mas, desde ontem, ficou muito mais fácil enxergar — e muito mais fácil sentir — que um mundo melhor é realmente possível, se lutarmos com unhas e dentes para conquistá-lo. O futuro não está escrito. Vamos escrevê-lo juntos.
25/06/2025
Notas
1/ O setor imobiliário investiu milhões na campanha eleitoral de Andrew Cuomo para a prefeitura com o objetivo de impedir a candidatura de Zohran Mamdani, muito favorável aos e às inquilinas. Veja o artigo de CEA Weaver e Ritti Singt na Jacobin. (Redação)
2/ Nick French, na Jacobin de 13 de junho, escreve: “No debate municipal realizado ontem à noite em Nova York, o candidato socialista Zohran Mamdani rejeitou os ataques sobre a ‘supressão do financiamento da polícia’ com uma mensagem convincente e baseada em princípios em matéria de segurança pública.” (Redação)