Transcrição e tradução de Igor Constantino
Via Semear o futuro
Recentemente, Jean-Luc Mélenchon, principal dirigente do partido francês France Insoumisse deu uma entrevista ao podcast The Dig, com Daniel Denvir, da revista de esquerda estadounidense Jacobin. Falava para uma plateia de ativistas e militantes de esquerda nos EUA, tados pela recente derrota eleitoral, e certamente abalados pela velocidade com que a administração Trump parece desmantelar o statu quo. Após a derrtoa das últimas eleições, também é útil para nós, a esquerda portuguesa, ouvir algumas palavras de quem, num país onde a extrema-direita é ainda mais forte – França – conseguiu liderar uma esquerda forte, de combate, que cresce ao mesmo tempo que consegue travar a chegada de Le Pen ao poder. A entrevista completa está disponível aqui.
Jean-Luc Mélenchon: Olá a todos os gringos. É Páscoa, o dia da ressurreição da esquerda, não é? Talvez, talvez. Infelizmente, não consigo fazer os meus discursos mais complicados sobre teoria em inglês, e infelizmente também não poderia falar em espanhol, não é…
Dan Denvir: Si. La hacemos en Español, pues entonces. Pues, bienvenido a Gringolândia, y bienvenido a The Dig, Jean-Luc Mélenchon.
A ascensão do autoritarismo de extrema-direita representa uma grande ameaça em França, com avanços persistentes do Rassemblement National de Marine Le Pen. E isso já é uma realidade, claro, aqui nos Estados Unidos. Qual é o seu diagnóstico sobre as origens desta ascensão da extrema-direita em França e em grande parte do mundo? E então, como acha que se compara com a onda de extrema-direita de hoje? Como se compara com o seu antecessor fascista de há um século?
JLM: O fascismo é o sintoma da crise da dominação da direita. Ou seja, quando a direita política já não consegue dominar a sociedade utilizando os seus métodos tradicionais, deve recorrer a um método diferente, mais violento e mais agressivo, com as mesmas ferramentas ideológicas que sempre utilizou. E na linha da frente está tudo o que lhes permite normalizar a desigualdade.
Racismo, sexismo, tudo o que faça com que as desigualdades pareçam naturais. Deixe-me fazer uma pequena comparação, por exemplo. Na vida quotidiana, os neoliberais franceses costumavam dizer: “Vocês são pessoas de poucos recursos.” Agora, o Presidente Macron disse que há pessoas que não valem nada. Nada é menos do que um pouco. Então ele diz: “Se não tens emprego, basta atravessares a rua e encontras um.” Por outras palavras, se estás desempregado, a culpa é tua. Se estás doente, a culpa é tua. A culpa é sempre do indivíduo. A desigualdade tem sempre uma causa pessoal. Se há desigualdade, é porque tens a cor de pele errada, ou a religião errada, ou nasceste no sítio errado, ou vives na zona errada da cidade. Por isso, o fascismo é sempre uma forma de manter relações de dominação através da atomização do povo e da violência.
(…)
Todas as nossas sociedades foram moldadas por uma busca pela igualdade, com o objectivo de conter a influência do comunismo soviético. Sociedades com um nível de serviços públicos muito elevado. Sociedades onde havia comunistas, muitos deles. É preciso imaginar como era a Europa, como era a Itália. Itália sem Partido Comunista (como seria). O Partido Comunista Italiano chegou a ter 32% dos votos. Foi uma cultura inteira, um mundo inteiro que entrou em colapso da noite para o dia. O Partido Comunista Francês desempenhou um papel importante na vida política francesa. Caiu para 2%. A parte comunista da sociedade entrou em colapso. O comunismo não foi uma importação do Exército Vermelho em todos os países europeus. Isso não é verdade. O comunismo francês reflectiu uma história nacional muito profunda e antiga de igualitarismo, anticlericalismo, etc. Portanto, o desaparecimento dos partidos comunistas não é coisa pouca.
Depois temos os partidos sociais-democratas, a começar pelo péssimo exemplo da América do Norte. O Partido Democrata aqui, o desastre dos anos Clinton atingiu a Europa Ocidental no pior momento, desarmando ideologicamente os partidos sociais-democratas, muitos dos quais estavam directamente ligados aos sindicatos de massas. O Partido Socialista Francês foi o partido de François Mitterrand, que fez uma aliança com os comunistas. Foi o partido de Léonard Jospin, que fez uma aliança com os comunistas após a queda do Muro de Berlim. Os britânicos ficaram surpreendidos. Tínhamos verdes no governo. Qual foi o seu último resultado numa eleição presidencial? 1,67%. Os partidos comunista e socialista, que representavam 90% da esquerda francesa, desceram para 3% em conjunto. Eles desapareceram.
Estes são acontecimentos importantes que obviamente abriram caminho à extrema-direita, porque o protesto social ainda existe na extrema-direita. Os partidos da esquerda tradicional estão satisfeitos com a situação. Fazem ajustes, melhorias, ou melhor, não fazem, mas dizem que vão fazer, e as pessoas preferem acreditar neles. Mas o caminho está aberto para a extrema-direita, tal como aqui. Vou terminar aqui. As pessoas perguntam-me: “Por que razão Trump ganhou?” Porque é que Trump venceu? Porque não sobrou esquerda nenhuma. Porque não sobrou nada. A extrema-direita varreu o campo. Sei que isto é um pouco caricatural, mas vocês têm uma responsabilidade considerável no desastre global da esquerda. Estou a falar deste país, não de vocês nesta sala. Bem, vocês também, naturalmente.
DD: A classe trabalhadora em França, como em qualquer outro lugar, enfrenta divisões: imigrantes e nativos, metropolitanos e rurais, cada vez menos instruídos. E La France Insoumise tem sido notavelmente bem-sucedida na organização de fortes apoios das banlieues, dos subúrbios pobres e de origem operária, descendentes de imigrantes, em redor de cidades como Paris e Lyon, e entre as classes trabalhadora e média com formação superior. Mas a base tradicional da classe trabalhadora branca da esquerda francesa, de partidos como os comunistas, em muitos lugares migraram para o RN (Le Pen). Porque é que La France Insoumise conseguiu organizar os segmentos da classe trabalhadora que conseguiu? E o que é preciso mudar para ultrapassar estas divisões e construir um projecto político comum da classe trabalhadora contra o neoliberalismo e o fascismo?
JLM: A acção política é a arte de fazer acontecer. E nós somos, sem dúvida, os melhores artistas. É por isso que substituímos os comunistas, os socialistas e todos os outros. Digo isto meio a brincar, mas a verdade é que não surgimos do nada, como cogumelos depois da chuva. Somos o produto de uma longa história de luta.
Para aqueles de nós que, como eu, estávamos à esquerda do Partido Socialista, podemos atribuir o nosso surgimento, o nosso desejo de existir politicamente, a um momento muito importante na vida política francesa. Em 2005, fomos convidados a votar num referendo sobre uma constituição europeia. Na verdade, isso significou constitucionalizar a ordem neoliberal. Concorrência livre e justa, livre comércio global, todos os princípios do neoliberalismo, como regra, acima de todas as outras. E o povo francês lançou-se numa campanha apaixonada. Quando digo apaixonado, quero dizer mesmo apaixonado. Grupos de amigos metiam-se dois ou três num carro, conduziam até uma pequena aldeia nas montanhas, faziam uma reunião e toda a aldeia aparecia. No dia seguinte, conduziam até outra aldeia e, novamente, vinham todos. As pessoas vinham às reuniões com pequenos cadernos e faziam perguntas: “Nos artigos tal e tal, o que significa isto? Qual é a sua resposta?” O povo francês, politicamente adormecido durante tanto tempo, despertou subitamente.
Em todo o lado, as pessoas tinham uma opinião sobre tudo. E quando chegou a altura de votar, 55% disseram: “Não, não queremos esta constituição.” O que aconteceu depois? Todas as elites, os poderosos, uniram-se. Como podemos corrigir isso? Esperaram pela próxima eleição presidencial, dois anos depois, convocaram ambas as câmaras do parlamento e votaram a adoção da constituição de qualquer maneira. A sua mensagem para o povo foi: “OK, nós ouvimo-vos alto e bom som. Na verdade, o que vocês disseram foi que sim.” Foi uma violação absoluta do espírito republicano, da própria democracia. E achavam que tinham escapado impunes. Achavam que as pessoas eram demasiado estúpidas para se lembrarem. Os nossos governantes sempre tiveram um profundo desprezo pelo povo. Acham que podem enganar todo mundo. E foi assim que aconteceu.
Logo a seguir, houve a eleição presidencial e as pessoas ficaram indignadas. 5% votaram em Olivier Besancenot, um trotskista. Outros 5% votaram em… qual é o nome dela? Nathalie Arthaud, outra trotskista. 10% da França, trotskista? A mesma proporção (contando as pessoas na sala). Não, não, não. É uma brincadeira entre ele e eu. Estou a dar-lhe a provar do próprio veneno. Como vai traduzir essa piada?
É impossível, não importa. Éramos um grupo à esquerda do partido socialista, juntamente com camaradas de outras organizações, grandes e pequenas. E compreendemos que havia uma base de esquerda em França que estava pronta para romper com a velha esquerda, que se recusava a ser enganada, que se recusava a ser traída, que se recusava a ser arrastada para fiascos que não escolheu. E decidimos que iríamos dar expressão política a essa base. Não vou contar a história toda hoje. É uma história demasiado recente para que possamos ter uma visão analítica suficientemente precisa. Mas nós mudámos tudo: fundamentos teóricos, prática política, funcionários, as pessoas que representam a luta.
Começámos por dizer que estávamos a recomeçar do zero, como se nunca tivesse havido esquerda em França, e temos de reconstruir tudo, até a história do país. Regressámos agitando a bandeira tricolor e a gritar: “Viva Robespierre!” Até isso, fizemos tudo. Estou a dizer isto para que se possam situar no tempo. Falo de 2005, 2007, depois dos quais houve três eleições presidenciais.
Obviamente, tudo isto está a acontecer num clima de crise. E quando há uma crise, há uma batalha de ideias. Se me perguntarem porque é que alguns trabalhadores votam em fascistas e outros votam em La France Insoumise, eu dir-vos-ei que é porque toda a sociedade está a caminhar nesse sentido. Todos acabarão por votar em nós ou nos fascistas, a menos que sejamos esmagados ou tenhamos tempo para os esmagar primeiro. Então o que faz a diferença? Bem camaradas, já que é em trabalhadores que estão interessados, um trabalhador é um ser humano. Debaixo do cabelo dele, há uma coisa cinzenta chamada cérebro, e dentro desse cérebro ele coloca lixo ou coisas brilhantes.
Alguns trabalhadores concordam em tornar-se racistas, odiar os seus vizinhos, desprezar as pessoas cuja religião os desagrada e tratar as mulheres como inferiores. Outros, recusam. É por isso que uns vão para um lado e outros para outro. As condições sociais nunca geraram consciência sui generis. Não é verdade. Por vezes, os camaradas precisam de ser lembrados disto porque havia um tipo de pensamento messiânico no socialismo. “Encontro-te, explico como és explorado e imediatamente a chama revolucionária acende-se”. Mas não é assim que funciona. Nunca foi. Pelo contrário. Acredito que primeiro tornas-te um revolucionário, e só depois se descobre o porquê.
Outra coisa, porém, é que eu não quero que saiam daqui a pensar que eu estava a gozar com os trotskistas. Eu próprio fui um ativista trotskista. O trotskismo deu um contributo extremamente brilhante para a preservação do ideal comunista e colectivista. E há três trotskistas no grupo parlamentar da France Insoumise. Dois deles são secretos, mas mesmo assim são trotskistas. A concepção de Trotsky sobre o comunismo é uma grande influência no nosso programa, “l’avenir d’un commun” (o devir do comum), e nos nossos métodos de luta. O trotskismo deu-nos a percepção intelectual militante de que o capitalismo atingiu um limite que nunca tinha sido previsto, não apenas devido às suas contradições internas, mas porque está a destruir o próprio planeta. Isto muda as condições para o pensamento crítico sobre o capitalismo de cima a baixo. Não se admirem se eu der muita importância a este ponto. Nós, fundadores e organizadores do France Insoumise, estamos profundamente empenhados na reflexão teórica aberta, e igualmente empenhados em rejeitar o velho hábito sectário de troçar desta ou daquela corrente.
Já disse o que tinha a dizer sobre os trotskistas. Poderia acrescentar que o movimento socialista e social-democrata contribuiu muito para as condições de vida dos trabalhadores em França. O Partido Comunista Francês, embora fosse estalinista de uma forma completamente detestável, deu um grande contributo para a história da França. E a nossa esperança é que, no final, todos nos possamos sentir confortáveis no mesmo movimento. Talvez os trotskistas não sejam hoje 10% da França, mas um dia serão 100%. (…)
DD: Há um outro modelo sobre como é que a esquerda europeia aborda os votantes de classe trabalhadora brancos, avançado sobretudo por Sarah Wagenknecht, uma antiga dirigente do partido Die Linke da Alemanha, propondo um programa que procura reconquistar a classe operária etnicamente alemã adoptando uma linha anti-imigração. Essa tentativa foi posta à prova nas eleições recentes, e o partido de Wagenknecht teve um desempenho tão fraco que foi eliminado do Bundestag. Pessoalmente, penso que a abordagem de Wagenknecht é um fracasso tanto nos princípios como na estratégia. É uma tolice pensar que se pode lutar contra a extrema-direita tentando apropriar-se da sua causa principal. O que pensa deste debate na esquerda europeia? Pelo que percebi, foi mudando um pouco a sua forma de pensar sobre estas questões ao longo da sua longa carreira política.
(…)
JLM: Por exemplo, a questão da religião mudou. Eu venho da antiga tradição anticlerical francesa. Mas já não é possível tratar a questão religiosa “à la française”. Enfrentámos a Igreja Católica como inimiga, uma instituição que se recusou a reconhecer o sufrágio universal até 1906 e se recusou a reconhecer a República Francesa até 1920. Para nós, a Igreja era um inimigo que organizava a resistência contra a revolução. Mas é impossível que tenha a mesma atitude quando vou para a América Latina, onde os meus companheiros estão a morrer sob tortura, sob ataques, lutando, e entre os mortos, e entre os combatentes, há freiras e padres. Seria absurdo. O que lhes diria? O que poderia eu dizer? Da mesma forma, o secularismo, a separação entre a Igreja e o Estado, que é uma questão extremamente importante para nós, franceses, e para muitos outros, deve ser correctamente compreendido. Secularismo não significa ateísmo de Estado. Podem ser nuances, mas na luta política, as nuances mudam tudo.
A questão da dignidade, do respeito pela dignidade pessoal, inclui a questão da fé. Na frase de Marx, “a religião é o ópio do povo”, é preciso ler a frase toda, não apenas o início. O resto da frase diz que a religião é, também, o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, e assim por diante. Nas condições do nosso século, não podemos tratar a questão religiosa à maneira francesa. Custa-me dizer que há algo de francês que não seja bom, mas enfim, é o que é.
É por isso que, por exemplo, a questão da dignidade é para nós uma palavra de ordem política. E percebemos que na direita, e na extrema-direita, como já disse anteriormente, aquilo que para nós é um argumento de dignidade se torna para eles um argumento de discriminação. Acreditamos que existe o direito de ser muçulmano. Não é um problema para mim se alguém for muçulmano, judeu ou cristão. Em França, 60% dos franceses não têm religião. O que dizemos é que defendemos o direito de alguém praticar a sua religião, desde que respeite a lei, claro. Se não respeitar as leis, será punido, não por causa da sua religião, mas por causa das suas ações.
(…)
Como disse antes, não somos uma vanguarda revolucionária. Somos um movimento de massas pela educação popular. Não é a mesma coisa. Não estamos a construir um partido revolucionário. Somos chavistas, de certa forma. Estamos a construir um povo revolucionário. Não é a mesma coisa. E qualquer polémica, qualquer ataque contra nós é doloroso de suportar, sobretudo a acusação de anti-semitismo, porque é um insulto. O anti-racismo é parte fundamental da nossa identidade. Ao mesmo tempo, todos estes ataques são uma oportunidade para a educação popular em massa, desde que nunca recuemos ou nos rendamos. Ou seja, uma vez iniciada a batalha, não desistimos, não recuamos, não pedimos desculpa, não admitimos erros e vamos à luta. Aqueles que não gostam de vocês, no final, não gostarão mais de vocês. Podem até odiar-vos ainda mais. Mas aqueles que não vos conheciam compreenderão que há um problema e aqueles que estão convosco ganharão confiança. Dirão a si próprios: estes não vão desistir, não me vão trair pelo caminho, não vão abandonar as suas ideias pelo caminho.
Para nós, à esquerda, reconquistar a confiança do povo é a tarefa número um. Aos seus olhos, nós, ativistas políticos, somos uns fala-barato inúteis, carreiristas que não cumprem a palavra, que não se importam, que estão ali apenas pelo trabalho. Sei que o que estou a dizer é uma caricatura, mas é preferível começar com uma caricatura para curar a doença do que adoçar o diagnóstico para que não doa tanto. Essa é a minha resposta à sua pergunta. Qual é o problema? Por que razão se estão a rir? Está muito longo? É impossível pensar em 140 palavras, isto não é o Twitter.
DD: A última questão é: a esquerda francesa obteve grandes sucessos nas duas últimas eleições francesas através de coligações que uniram La France Insoumise, o Partido Comunista, os Verdes e os Socialistas. Mais recentemente, nas eleições legislativas de 2024, a Nova Frente Popular conquistou o maior número de lugares. Mas tem havido alguma controvérsia na Nova Frente Popular recentemente. O que foi necessário para que estas coligações funcionassem nos últimos anos? E a esquerda francesa precisa de estar unida, daqui para a frente, incluindo nas próximas eleições presidenciais?
JLM: De um modo geral, a unidade é preferível, mas a unidade também pode ser envenenada se, para a alcançar, tivermos de aceitar reveses inaceitáveis para o povo. Poderia dar inúmeros exemplos. Vamos pegar apenas num. Em França, tivemos recentemente o movimento social mais significativo dos últimos 60 ou 70 anos, quando o governo decidiu aumentar a idade da reforma para os 63 anos. Nós, France Insoumise, no nosso programa, no programa da União da Unidade, escrevemos que a reforma deve ser aos 60, não aos 61, não aos 62, não aos 63, não aos 64. Pode parecer uma formalidade, mas se alguém estiver a trabalhar num emprego que o esgota, um ano importa muito. Pode ser o ano que destruirá o seu corpo. Pode ser o ano em que terá um colapso psicológico. Nas comunidades da classe trabalhadora, esta questão é extremamente sensível e sempre foi uma batalha central na luta entre o capital e o trabalho, se se quiser ter uma visão mais ampla. Porque as pensões precisam de ser pagas, e a parcela destinada ao pagamento das pensões não fará parte da acumulação capitalista. Ponto final. É tão simples quanto isto.
Em França, o orçamento da segurança social é de 300 mil milhões de dólares. É uma quantia considerável. Obviamente, todos os capitalistas gostariam que este dinheiro fosse alocado a seguros privados. Mas conhecem o sistema francês. Quem trabalha, paga por quem já não trabalha. Portanto, esta é uma questão central na luta de classes e uma questão central na consciência popular. Temos aliados que assinaram acordos connosco e não respeitaram nenhum deles. Acordaram com a reforma aos 60 anos e depois dizem: não, devemos apenas dizer que estamos a estabelecer o limite aos 64 anos. Veja bem, é muito técnico. É um pormenor, mas as pessoas reparam. As pessoas não são estúpidas. As pessoas não são crianças que se distraem com brinquedos. Ouvem: “Vou trabalhar mais um ano, dois anos, três anos.” E depois dizem: “vocês são mentirosos. Acham que não entendemos que nos estão a fazer de parvos? Vocês estão a mentir. Não vão cumprir.” Nesse caso, a unidade é um desastre.
Muitas vezes é difícil para nós porque, como agora somos a maior força da esquerda, somos sempre nós os culpados se não houver unidade. E isso é sempre dito de uma forma ofensiva. Os socialistas não respeitam ninguém. Eles acham que estão naturalmente destinados a liderar e que nós temos de carregar as malas deles. Há também estas pessoas que vêm com os seus pequenos violinos dar-nos música. Não fazem nada no resto do tempo, absolutamente nada, excepto conversar. Vêm e dizem: “Precisamos de unidade, precisamos de unidade, precisamos de unidade.” Eles sacam dos lenços, “unidade, os fascistas estão a chegar”. O que devemos dizer a estas pessoas? Precisamos de unidade, dizem, certo. Mas precisamos de um programa para alcançar a unidade. E se subscrevem um programa, têm de mostrar que o respeitam. Geralmente é muito difícil.
Toda a gente entende que se formarem uma aliança connosco, nós iremos buscar a classe trabalhadora, nós iremos buscar a juventude. Em França, metade dos jovens dos 18 aos 24 anos vota em La France Insoumise. Metade. Nos bairros de classe trabalhadora, as porcentagens são ainda mais elevadas. Obtemos 70%, 80% dos votos. Mas ainda há muitas pessoas que não votam. Toda a nossa estratégia é fazer com que votem aqueles que não votam. É nisso que nos focamos: bairros da classe trabalhadora e jovens.
Ok, permitam-me divagar por um momento. As pessoas dizem-nos: “Sim, mas vocês estão a esquecer-se da população rural.” Certo. Porque é que não vão vocês para as áreas rurais? Nós estamos focados nas cidades. Vão fazer algo vocês mesmos, em vez de se queixarem sobre o que devemos ou não fazer. “Porque não isto? Porque não aquilo?” E depois há a imprensa que representa a pequena burguesia amargurada e odiosa da França e que despeja bílis sobre a France Insoumise. Vocês nem imaginam. Não há um único artigo que não contenha alguma calúnia contra nós. Mas socialmente é sempre a mesma multidão. É a mesma pequena classe social. A mesma pequena burguesia em pânico e desespero. Este é o Estado da “unidade” em França. No período mais recente, esta unidade entrou em crise.
Mas deixe-me acrescentar mais uma coisa. Fomos nós, a France Insoumise, que alcançámos um acordo sem precedentes na história da esquerda em 2022 e 2024. Concordámos com uma lista única e unida para a primeira volta das eleições em toda a esquerda. Nós é que conseguimos isso. Estávamos em condições de obter 22% dos votos, contra 1% dos outros. E ainda assim dividimos os círculos eleitorais para que houvesse um grupo socialista parlamentar, um grupo verde, um grupo comunista e, claro, o nosso grupo, da France Insoumise. Nós fizemos isso acontecer. Ninguém o tinha feito antes e ninguém se está a propor fazê-lo agora. Os socialistas estão agora a dizer que vão concorrer às eleições municipais, mas não com a France Insoumise. Na segunda volta, claro, poderão ir connosco se fizermos o trabalho por eles. Dizem que são menos divisivos. Que as pessoas acham-nos mais simpáticos a eles. De onde tiraram esta ideia, não faço a mínima ideia. A ideia de que as pessoas com 1% dos votos são mais simpáticas do que as pessoas com 22%, enfim…
Mas continuando. Tivemos cinco votações consecutivas para derrubar o governo do Sr. Bayrou. Nós, o Insoumise, já tínhamos derrubado o governo anterior ao apresentar uma moção de censura e mobilizar os outros. Pela primeira vez na história da esquerda, a esquerda radical derrubou um governo burguês sem disparar um tiro ou erguer uma única barricada. Não é incrível? Por cinco vezes, os socialistas recusaram-se a votar a favor da moção, salvaram Macron. E eu tenho idade suficiente para saber que quando se ganha, ganha-se, mas quando se perde, perdeu-se mesmo, e nessa altura, recua-se. Se dermos ao nosso adversário a hipótese de sair da armadilha que lhe armámos, será ele quem nos perseguirá a seguir. E como se recusaram a votar a moção de censura, temos sido constantemente atacados pelos nossos adversários de direita. Não apenas nós, a France Insoumise, nós estamos habituados, mas também o próprio povo francês.
O último orçamento aprovado é pior que o anterior. Cortaram mais nove mil milhões de euros e estão a anunciar que o próximo será cortado em 40 mil milhões. Estamos a ser tratados pior do que os gregos durante a crise. Está a desenrolar-se uma catástrofe. Quando o governo francês diz 40 mil milhões em cortes, é preciso saber que 40 mil milhões equivalem ao orçamento para a educação nacional de 14 milhões de jovens ao longo do ano. Essa é a escala. O que nos está a acontecer é um desastre, e o nosso país está a ser destruído. Hoje, em França, podemos morrer num hospital simplesmente porque não havia pessoal suficiente para nos tratar a tempo. Portanto, estas não são pequenas disputas políticas. São questões que afetam a vida das pessoas, que tipo de sociedade estamos a construir, e como as pessoas se vêem a si próprias. Se está toda a gente constantemente a competir uns com os outros por empregos, por acesso a cuidados de saúde, por um lugar na escola certa, então temos uma sociedade sem solidariedade. Uma sociedade onde todos cuidam apenas de si. É por isso que é tão grave, e é por isso que a questão da unidade não pode ser reduzida à soma de forças políticas.
Acabei de regressar de Montreal. Os nossos camaradas estão prestes a ser duramente atingidos. O Quebec Solidaire vai sofrer um grande golpe. Porquê? Porque o nível de educação política é insuficiente. As batalhas políticas não foram travadas até ao fim. Houve muitas disputas entre camaradas e pouca acção em grande escala. Agora as pessoas estão a dizer que os conservadores são como o Trump. Não, não querem Trump. E depois vão votar nos Liberais… E nós o que vamos fazer? É tarde demais. Esquerda versus direita não é uma batalha de mensagens. Os camaradas que acreditam nisso estão completamente enganados. É uma batalha de classes sociais, uma batalha de consciência. Se não apostamos, não nos surpreendamos quando perdermos. Eu disse algo um pouco duro aos meus camaradas nessa reunião. Não me intrometo no que acontece noutros países, mas eu disse-lhes: se deixarem as vossas ideias à porta da assembleia de voto, não se admirem se não as encontrarem na urna. OK? Se não fazem mais nada senão choramingar-se, e não estou a dizer que os camaradas do Quebec Solidaire são choramingas, mas se passam o tempo a lutar entre si e a dizer mal dos outros, não se admirem se ninguém estiver interessado no que têm para dizer.
Essa é a verdade. As pessoas perguntam-me: “O que precisamos para vencer?” Eu disse: “Não sei. Vão até à porta das pessoas. Falem, falem, falem: Bom dia, bonsoir, boa noite: aqui está o meu programa.” Falar. Construir. Fazer coisas. Parar de choramingar. E dizem-me também que se Mélenchon fosse mais educado, isso seria melhor. Ganharíamos mais votos. “Talvez se você se calasse, ganharíamos mais votos.” É o que digo àqueles que me atacam dia após dia. Como pode ver, sou muito fervoroso nisto. Bem… Que mais? É isto.
DD – Jean-Luc Mélenchon, muito, muito obrigado. E agora vamos fazer tudo em espanhol outra vez, desde o início (risos).
JLM – O mundo inteiro é… todos são afectados pela linha política dos EUA, que se baseia hoje no livro de Samuel Huntington, O Choque de Civilizações. Vocês entraram num momento revolucionário. Os democratas acabaram por capitular. Eles desapareceram. Não existem como uma força política alternativa. Não são nada. Nada. Tal como os democratas de Itália, chamavam-se comunistas, e depois A Esquerda. Depois, Partido Democrata. Finalmente, Partido Democrata apenas. Pois eu digo-lhes, chamem-se apenas “Partido Partido”, sem problemas, sem ligações, sem plataforma, sem nenhum programa, nada.
Mas o mais revelador é que o Sr. Trump acaba por admitir que o capitalismo é incapaz de organizar a sociedade… Primeiro dizem que o preço, o mercado é a regra, certo. Percebem o que quero dizer? E agora já dizem: não, o preço, o mercado não, o Estado. Ele fala como comunista.. Com os impostos. A seguir ele já diz que “acabou tudo, não sei o que fazer”. A guerra comercial e o imperialismo tributário fazem com que todo o planeta pague tributos aos Estados Unidos da América para fazer a guerra. Nada disso vai acontecer. Será o caos, nada mais. A política de Trump importa a luta de classes para aqui e exporta-a para todo o lado.
É um momento extraordinário. É uma oportunidade extraordinária e também um desastre extraordinário, se falharem. É um potencial desastre, mas é também uma vitória extraordinária. Milhões de pessoas vão perceber que tudo isto não funciona, é inútil, isto ameaça as suas vidas. Portanto, vocês camaradas têm a possibilidade de aproveitar estes acontecimentos e fazer algo com eles. E precisamos mesmo que vocês o façam.