A profunda crise econômica argentina se conjuga com um crescente descontentamento social. Embora suas causas sejam diversas e seus sintomas identificáveis, suas consequências ainda não estão definidas com clareza. Com as eleições gerais prestes a ocorrer, vale se perguntar até onde pode chegar esta situação.
Medido em relação a qualidade de vida em geral e a evolução do salário real em particular, o fato de que os últimos dois governos tenham fracassado na Argentina é um dado objetivo da realidade. Nem Mauricio Macri, à frente de um projeto essencialmente das elites econômicas, nem Alberto Fernandez, que chegou à presidência com o apoio de Cristina Kirchner e uma ampla coalizão antimacrista de absoluta maioria peronista, obtiveram resultados satisfatórios. O primeiro dos dois se apresentou em busca de sua reeleição em 2019 e perdeu por uma diferença considerável; o segundo nem sequer será candidato em 2023. As pesquisas indicam com clareza que ambos conservam uma péssima imagem pública.
Os diversos motivos de seus respectivos fracassos foram analisados extensamente em outros artigos. Aqui nos propomos a colocar os olhos nos efeitos – bem concretos – que esses governos falidos geraram no estado de ânimo da sociedade argentina. Definitivamente, estamos falando de nada menos que sete anos de uma significativa deterioração nas condições de vida das maiorias. E isso sem deixar de considerar que várias dificuldades e limitações da economia argentina começaram a se manifestar anteriormente, desde o segundo período de governo de Cristina Fernández de Kirchner.
A primavera kirchnerista ficou muito longe no tempo. O debate público girou de forma evidente para a direita (como demonstra eloquentemente, por exemplo, a virada no discurso do ex-presidente Macri desde 2015 até a presente data), e o descontentamento na sociedade cresce progressivamente. Esta combinação de situações tem diversas causas e se expressa através de múltiplos sintomas, mas com um ano de 2023 marcado pelo calendário eleitoral, o mais importante a curto prazo são as consequências que poderiam gerar.
Com as eleições presidenciais cada vez mais próximas, as pesquisas de opinião pública apresentam um cenário em que a polarização que marcou os últimos processos eleitorais parece debilitada. A oposição entre o kirchnerismo e o macrismo, com seus respectivos aliados e frentes eleitorais, já não é tão preponderante. Pelo contrário, o dado para as distintas consultoras parece ser o surgimento de uma terceira força que ameaça alcançar um cenário de três terços (no qual, inclusive, poderia terminar entre os dois primeiros lugares da eleição). Esse terceiro em discórdia é La Libertad Avanza, de Javier Milei.
A lógica do conflito palaciano perpetuado entre a Frente de Todxs e Juntos por el Cambio, assim como as disputas no interior de ambas coalizões, faz a sua parte para o crescimento desta terceira força. O fenômeno Milei é, antes de tudo, filho dos fracassos dos últimos governos. O debate público argentino se endireitou e nesse marco sua figura se consolida (incentivada, além de tudo, por um contexto internacional em que crescem as forças de extrema direita).
Isso não quer dizer que da noite pro dia a sociedade argentina tenha abraçado de maneira massiva as ideias de Friedrich August von Hayek ou Milton Friedman. Trata-se na verdade de uma atração por um candidato que expressa ressentimento, não carrega sobre suas costas praticamente (pelo menos na superfície) nenhuma responsabilidade pela crise e, ao mesmo tempo, apresenta uma estrondosa contestação – com alguns matizes não muito relevantes a efeitos práticos – à totalidade do sistema político sob a potente ideia de “casta”. Com a dolarização como leitmotiv, oferece uma solução mágica (para além de sua altamente improvável aplicação prática) a dois problemas recorrentes na economia argentina, estreitamente vinculados, que se expressam com especial crueza na atualidade: a inflação e a falta de divisas.
Ainda assim, segue persistindo um considerável grau de incerteza a respeito de quanto dessa raiva que Milei canaliza com eficácia vai se expressar efetivamente no dia da eleição. Muitas vezes foi levantado que o eleitorado se torna “mais conservador” na hora de depositar sua opinião na urna (dito de outra forma, que na hora da verdade, os candidatos com pouca história e escassa infraestrutura tendem a desinflar). Todavia, os antecedentes recentes de, por exemplo, Pedro Castillo no Peru ou Rodolfo Hernandez na Colômbia, mais além de suas ideias, dão conta de que isso não necessariamente é sempre assim. Sem cair na subestimação mas tampouco no catastrofismo, o que se trata é de compreender e analisar o fenômeno considerando a maior quantidade de arestas possíveis.
Outra força política que eventualmente poderia canalizar descontentamentos é a Frente de Izquierda y de los Trabajadores (FIT-U). Depois de um fraco desempenho em 2019, o partido obteve resultados históricos em 2021, com o papel destacado de Alejandro Vilca na província de Jujuy. O enfraquecimento do peronismo em geral e do kirchnerismo em particular põe a esquerda trotskista diante da oportunidade de colocar-se enquanto uma opção eleitoral a se considerar para pelo menos uma parte da classe trabalhadora do país. Todavia, para se constituir em uma alternativa de peso essa força deve superar limitações históricas, tanto na hora de interpelar as maiorias e escapar de sua endogamia característica como no momento de adiar disputas internas que deixam descobertas não poucas limitações táticas.
Por outro lado, que o recente rechaço da sociedade em relação a classe política vai se expressar através da abstenção ou do voto em branco não parece muito provável considerando os antecedentes mais recentes. Isso não aconteceu de forma significativa nem sequer em 2003, na saída da mega crise de 2001. Inclusive em 2021, sendo eleições de meio termo e na pandemia, embora a participação tenha sido relativamente “baixa” em termos nacionais, ficou ao redor de 70%. Embora na política (e menos na Argentina) nunca se pode descartar nenhuma possibilidade, se acontecer isso em 2023, estaríamos diante de um fenômeno verdadeiramente novo. Algumas das recentes eleições provinciais apresentaram porcentagens de voto em branco superiores ao habitual, marcando um antecedente a se observar nesse sentido.
Sem margem para paciência
Nas últimas semanas aconteceu um fato que, mais além da obrigada (e sensacionalista) cobertura nos programas de notícias mainstream e de algum eco em chave jocosa nas redes sociais, ficou em boa medida sem ser analisado. Nos referimos a agressão por parte dos trabalhadores de ônibus ao Ministro de Segurança da Província de Buenos Aires, Sergio Berni, a qual – pensamos – deve ser entendida como um evento sintomático.
Apesar das peculiaridades do delito que motivou o protesto, dos esboços conspiratórios em relação ao assunto e do estilo particularmente provocador do protagonista, romper a barreira da violência física contra uma autoridade política é algo que tem muito a ver com a conjuntura de um Estado com uma autoridade debilitada e uma classe política que há muito tempo não resolve os problemas da sociedade. Trata-se, além disso, de um acontecimento particular, devido a que sucedeu ao ministro de um governo peronista, em um lugar tradicionalmente peronista e, sobretudo, por parte do sujeito que o peronismo historicamente convoca: os trabalhadores.
Não são poucas as oportunidades da história recente da Argentina em que distintos setores trataram de “vender um 2001” à medida de sua conveniência. Não devemos pensar que estamos à porta de uma nova crise desta magnitude, mas sim que há condições objetivas para que o descontentamento cresça de tal forma que as instituições não possam contê-lo. As formas que poderia adotar são dissimuladas e numerosas. Mas certamente existe o risco de passar de uma sensação de apatia e rechaço a classe política para uma situação de violência desencadeada. Os estalidos sociais, como demonstraram Chile e Colômbia há poucos anos, podem suceder de forma aparentemente repentina e após alguma circunstância que pareça pouco relevante, como um aumento da passagem do metrô. Mais uma vez: nem subestimação nem catastrofismo.
Com a desconformidade e o descontentamento em aumento constante, torna-se lógico pensar que a sociedade demandará ao próximo governo efeitos positivos concretos e a curto prazo sobre suas condições de vida. As expressões da direita, sejam moderadas (como Horacio Rodríguez Larreta) ou radicalizadas (como Patricia Bullrich ou Javier Milei) que se propõem a governar a Argentina no próximo período, podem chegar a cair na ingenuidade política de acreditar que, dadas as condições subjetivas a priori favoráveis e dado o fato de que o governo atual não é de seu espectro político, a paciência será grande. Não é assim: a próxima gestão, mais além do selo que representar, não contará com um cheque em branco para sua administração, nem tampouco com uma “lua de mel” de média ou longa duração.
Em caso de aplicar – como vem esboçando, de maneira mais ou menos explicita, as forças politicas de direita – a dogmática medida de cortar sensivelmente os programas sociais, estariam destruindo um dos muros de contenção fundamentais para os setores mais vulneráveis da sociedade. Assim, salvo se fossem capazes de criar, com uma magnitude e uma velocidade viáveis apenas no pensamento mágico, milhões de postos de trabalho formal com salários muito acima da média atual, estariam precipitando um drástico aumento do conflito social.
Mas a possibilidade de que o descontentamento comece a se expressar de outras formas se apresenta como um condicionante para o sistema político em geral (e não parece que vai desaparecer imediatamente, menos ainda com o Fundo Monetário Internacional sobrevoando a economia argentina). Se conseguir a reeleição, a Frente de Todos faria bem se assumisse que também não contará com nenhum “período de agradecimento” por parte do eleitorado.
Os resultados serão esperados logo porque o atraso foi suficientemente grande. Ao não se dar as melhoras econômicas e sociais que a sociedade demanda, a resolução das tensões dependerá de fatores diversos (entre os quais pode-se enumerar a organização da resistência popular, a narrativa política oficial que se construir, o ordenamento que leve adiante as distintas forças políticas, o papel dos meios de comunicação etc), mas sempre estarão latentes. Se não eclodiu até agora isso se deve, ao menos em parte, ao papel apaziguador das tensões que representa o ato eleitoral, a poucos meses de distância. Mas o governo que vier, de qualquer campo político que seja, deverá ter em conta que o prazo para a paciência popular expirou faz tempo.