Articular a resistência a partir de um projeto ecofeminista

UMA ENTREVISTA COM YAYO HERRERO

Entrevista de Pedro Perucca


Entrevista com a ativista ecofeminista espanhola Yayo Herrero, no âmbito de um ciclo de palestras na Argentina, onde ela propôs repensar coletivamente a forma de enfrentar o colapso ambiental, social e humano a partir dos feminismos e das lutas territoriais.


A antropóloga, engenheira, professora e ativista ecofeminista espanhola (uma das mais influentes a nível europeu) Yayo Herrero visitou a Argentina há algumas semanas e realizou o ciclo de palestras ecofeministas «Reexistir em tempos de crise», com atividades nas cidades de Córdoba, Rosário e Cidade Autônoma de Buenos Aires (CABA), propondo repensar coletivamente a forma de enfrentar o colapso ambiental, social e humano a partir dos feminismos e das lutas territoriais.


No contexto do encontro organizado pela Fundação Rosa Luxemburgo e pela Equipe Transições, que ocorreu no dia 12 de setembro na sede da Cidade Autónoma de Buenos Aires (CABA) da Associação dos Trabalhadores do Estado (ATE), onde integrou o painel da palestra «Rumo a uma transição ecológica e feminista» (juntamente com Maristella Svampa, Verónica Gago, Corina Rodríguez Enríquez e Irma Caupan, com moderação de Candelaria Botto), Herrero foi entrevistada por Pedro Perucca para a Jacobin.


PP: Vamos começar por algo que se impõe pela sua urgência humanitária e considerando que a Espanha é um dos países onde a solidariedade internacional com a Palestina se manifesta com mais força. O genocídio israelense em Gaza também tem uma dimensão ecológica, por toda a devastação que implica o projeto colonial sionista. Em contraste com a relação profunda que o povo palestino tem com a sua terra, o projeto colonial caracteriza-se pela devastação das culturas, o controle da água, etc.


YH: Não estudei nenhum processo colonial que não tenha sido acompanhado por genocídio e terricídio. Acredito que todos os processos coloniais o fizeram: a chegada dos espanhóis ao território que hoje chamamos de América, houve genocídio e terricídio com a colonização de países da África e da Ásia, e no caso da Palestina é exatamente o mesmo. Um país, a Inglaterra, invade um território, o do povo palestino, e, uma vez invadido o território do povo palestino, em um determinado momento, cede esse território a um grupo de sionistas que aspira construir ali, refazer ali, digamos, uma espécie de utopia cívica.

Então, a partir daí, a história da Palestina é a história dos colonos entrando nos povoados, é a história da ocupação de terras, uma ocupação que às vezes foi além do povo palestino, não é? Por exemplo, as Colinas de Golã, território da Síria, foram invadidas por Israel basicamente porque era o lugar onde se acumulava toda a neve do inverno e de onde fluía a água que deveria irrigar os novos vergéis do suposto milagre produtivo israelense, que não era um milagre, mas, como em todas as produções agrícolas, uma terra que precisava de água que tinha que vir de algum lugar. E também existem as reservas de gás natural que há na Faixa de Gaza, na costa.

Viveu-se a Nakba, os processos massivos de colonização, as pessoas presas, gente torturada e tudo isso, ao mesmo tempo que iam surgindo diferentes posicionamentos ou pronunciamentos das Nações Unidas que obrigavam ou condenavam Israel, por assim dizer, a devolver o território... Toda uma série de pressupostos que jamais se cumpriram.

Agora, o que vemos é uma reviravolta ainda mais cruel, é a apropriação de uma faixa de terra na qual vivem pessoas que anteriormente foram expulsas de outros lugares e que agora, com uma crueldade inusitada, são bombardeadas. E não foram bombardeadas apenas as suas casas, mas também as suas bibliotecas, as suas escolas, as suas universidades, as suas plantações, as suas oliveiras. E a memória de uma cultura reside nos espaços que criamos para contê-la.

Ou seja, eu acredito que, no fim das contas, é impossível desvincular os processos genocidas dos despojos e das apropriações que têm a ver com o território e que produzem devastação ecológica. Neste caso, se além disso percebermos que a guerra está funcionando como o novo elemento, a nova galinha dos ovos de ouro para reativar o processo de acumulação capitalista (já que se gasta combustível e armamento, se desenvolvem e experimentam novas tecnologias de destruição em massa). E, entretanto, o poder económico do governo sionista israelense e de quem o sustenta materialmente, que é muito grande, materializa-se em toda a parte: nestas empresas que querem comprar a água que abastece a terra e da qual bebem e vivem muitas pessoas, como acontece no Chile. Mas também estão presentes no patrocínio da cultura ou do esporte… Como aconteceu há algumas semanas na Espanha, quando metade do país se mobilizou para evitar que os ciclistas chegassem ao seu destino, procurando tornar visível esta situação. É uma grande iniciativa.

PP: Que pedagogia lhe parece que esse poder económico está aplicando em Gaza?

YH: Bem, Rita Segato fala da pedagogia da crueldade, não é? Ou seja, o que Israel está fazendo com Gaza é exibir uma crueldade inaudita, que é também uma forma de disciplinamento. Acho que tem a ver com isso essa exibição de crueldade quase publicitada de forma obscena, onde vimos desde políticos como Netanyahu ou outros funcionários do seu governo a dizer que era necessário exterminar até a última criança, até o último carneiro, até o último burro, até a última oliveira, não é? Isto é, esse ódio contra a vida que é considerada subalterna e supérflua, que é por sua vez um ódio contra o conjunto da vida, as plantas, os animais que sustentam essas vidas. Mas é o mesmo ódio e a mesma exibição que Milei faz brandindo a motosserra e dizendo que a justiça social é uma aberração, ou com a performatividade da assinatura dos decretos de Donald Trump e com a deportação de migrantes acorrentados, ou quando a gente do Vox em Espanha aponta para crianças e adolescentes menores não acompanhados para os culpar por toda a delinquência e toda a violência que possa haver.

Acredito que estamos perante uma intensificação do despojo capitalista, que sempre foi despojo, colonial e patriarcal, mas que, neste momento de crise ecológica e social, de esgotamento de recursos, de contração obrigatória da esfera material da economia, passou a ser a resposta distópica de umas elites que se blindam, de forma explícita em alguns casos e não explícita noutros, decretando que aquelas vidas que valem menos são vidas supérfluas.

PP: Isto também tem um viés absolutamente patriarcal, não tem? Embora se manifeste também em mulheres colonas israelitas que reproduzem esse mesmo discurso da eliminação total do povo palestino.

YH: Claro, esta crueldade explícita e pedagógica tem também um viés absolutamente patriarcal e colonial. Nós, mulheres, costumamos trabalhar com uma ideia de patriarcado, entendido como aquele modelo ou forma de organizar a vida que permite que algumas pessoas alimentem uma falsa tripla emancipação: enquanto pessoas que podem viver como se estivessem emancipadas da terra e não dependessem dela e dos seus limites; que creem estar emancipadas do próprio corpo, já que não têm de cuidar dele porque há outras que o fazem; e que creem estar emancipadas das demais pessoas, que se consideram independentes e pensam que, por isso, não têm de se preocupar com ninguém nem reconhecer que alguém cuida delas. Esse é o sujeito patriarcal que está encarnado maioritariamente em corpos de homens, mas que muitas vezes também o está em corpos de mulheres que se comportam da mesma maneira. A guerra é um ato patriarcal nesse sentido, porque é a resolução dos problemas da política sustentada sobre a lógica do controle e do domínio. O patriarcado, além disso, faz uma coisa que é tremendamente perversa, que é unir a palavra cuidado com as palavras violência e controle.

O patriarcado é esse sistema que exerce controle e violência precisamente sobre aquilo que sustenta e que cuida. Que é a terra, que é o trabalho realizado por outras pessoas, que é o trabalho realizado pelas pessoas camponesas. Assim, encontramo-nos perante um exercício de violência patriarcal evidente.

PP: Em diferentes momentos, você reconhece como inspiração alguns movimentos de mulheres da América Latina, de Abya Yala, como é o caso do que inspirou Berta Cáceres, entre muitas outras. Que aprendizados ou que experiências você incorporou à sua perspetiva feminista que tenham a ver com esta inspiração latino-americana?

YH: Eu sou uma devedora absoluta das experiências das mulheres articuladas comunitariamente —também de muitos homens—, mas em particular das mulheres articuladas comunitariamente de Abya Yala e do continente africano, que é o que melhor conheço. Não me resta a menor dúvida de que noutros espaços também as há.

E digo que sou devedora porque tenho a sensação de ter tido pelo menos duas aprendizagens fundamentais. A primeira delas é a organização comunitária... Não porque no meu país não haja organização comunitária, que se vê na história do movimento operário, ou na história das mulheres articuladas dos povos, ou numa história bastante negada no meu país como a do povo cigano, onde há uma articulação comunitária poderosíssima. Mas é verdade que a conheci mais desta maneira e constatei como a comunidade anda de mãos dadas com a criatividade. Ou seja, quando há possibilidades de lançar e oferecer pensamento e prática em contextos onde são multiplicados, recolhidos e enriquecidos, a capacidade criativa aumenta enormemente.

E a segunda coisa que tenho de agradecer é o pensamento decolonial. Porque me parece que não é possível entender a crise ecológica e social que atravessamos sem reconhecer o pilar estrutural que ela tem no colonialismo, que é algo que começou há centenas de anos mas que ainda não terminou. Uma colonialidade que é do território, dos bens da terra e da cultura, que é epistémica, que se apropriou de saberes. Na realidade, o que a conquista denominou descoberta não foi mais do que renomear, primeiro anunciar as coisas como vazias e depois renomear e declarar novo o que outras pessoas já conheciam e lhes foi arrebatado.

Para mim foi muito importante porque analisar ou escutar e apontar os vieses coloniais do meu próprio pensamento permitiu-me compreender o nosso próprio colonialismo interior e até que ponto a colonização histórica e atual que se produziu em territórios como Abya Yala é uma colonização que também se produziu sobre os nossos meios rurais, que continua a produzir-se sobre os bairros das nossas cidades e sobre as formas e articulações econômicas comunitárias e populares, sobre uma ocupação, um colonialismo e uma apropiación de boa parte da história do movimento operário, dos movimentos cooperativistas. Portanto, para mim, considero-me muito, muito devedora desse pensamento.

PP: Considerando que você se situa dentro da perspetiva do decrescimento, como responderia àquelas críticas que sustentam que essas propostas correspondem a uma visão mais própria do Norte global, já que para as classes subalternas do Sul o decrescimento poderia implicar que aceitem que por enquanto vão permanecer nesse lugar de despossuídos porque é preciso baixar os ritmos de produção e consumo, quando o que o Sul parece precisar se assemelha mais a um desenvolvimento económico, industrial, produtivo, etc.?

YH: Vejamos, eu, dentro do âmbito em que me movo, tenho companheiros queridíssimos que apresentam o decrescimento como uma proposta política mais ou menos nos termos que você assinalou, como uma proposta ética e política. Mas para mim o decrescimento não é isso, mas sim o contexto material em que, queiramos ou não, os 8.000 milhões de pessoas que habitamos o planeta vamos viver. Quer dizer, não por ética, não por uma visão ou proposta mais ou menos ecologista, mas porque as formas de articular a vida em comum que a cultura ocidental propicia há já 500 anos (e que continuaram a expandir-se através do capitalismo e das dinâmicas neoliberais, sobretudo nos últimos 70 ou 80 anos), esgotaram a maior parte dos recursos existentes. Isto é, os 8.000 milhões de pessoas que estamos agora no planeta, queiramos ou não, globalmente vamos viver com menos energia, menos materiais e menos bens da terra.

Portanto, para mim, é absurdo debater se decrescimento material sim ou decrescimento material não. Na verdade, o decrescimento material já opera de uma forma intensa sobre aqueles sectores da população que estão despossuídos. Basta ver o que o capitalismo faz quando, pelo mecanismo dos preços, tira às pessoas o acesso à electricidade, ao alimento suficiente ou à casa.

Então, para mim, o decrescimento é o contexto material em que a vida se vai desenvolver. O projeto político é a forma como se gere. A extrema-direita tem a sua gestão do decrescimento e é uma gestão fascista, para blindar elites que, protegidas pelo poder económico, político e militar, continuam a sustentar os seus sonhos de expansão, enquanto se vai deixando na periferia — ou diretamente fora da vida — setores crescentes da população, que são enunciados como supérfluos. As políticas da extrema-direita, deste fascismo de fim dos tempos em que estamos vivendo, são umas políticas que estão a evidenciar o despojo de setores amplos da população, aos quais além disso se desumaniza e se expulsa da vida.

A nossa proposta, ou as propostas de decrescimento que eu apresentaria, passa por como abordar esse decrescimento da esfera material da economia, colocando no centro a garantia de condições de vida dignas para toda a gente. Nesse marco, a suficiência é uma chave, porque é um direito e uma obrigação. É o direito a ter o suficiente por parte de quem não o tem e precisa de mais. Por isso o decrescimento não é uma proposta ética, porque há quem precise de mais. E é uma obrigação para aqueles povos que consomem muito mais do que há nos seus próprios territórios, que estão obrigados a viver com menos. Também por isso as propostas de cariz ecofeminista estão muito enraizadas na luta de classes. Mas é uma luta de classes muito mais complexa, na medida em que incorpora dentro das relações de produção a própria terra e as pessoas que fazem trabalhos não remunerados. E, além dessa suficiência, a redistribuição, que é um clássico, e as abordagens da sustentabilidade da vida, que vem a ser basicamente perguntar-se como organizar a vida em comum em todos os âmbitos: habitação, educação, saúde, urbanismo. Sim, o que pretendemos e o que pomos no centro é que todas, absolutamente todas as pessoas tenham condições de existência dignas.


PP: Em relação ao feminismo, você posiciona-se numa postura aberta e muito crítica do feminismo exclusivo, TERF, etc. Que riscos vê nesse tipo de feminismo? Que implicações negativas isso pode ter para a construção de um projeto social transformador e que opção superadora podemos sustentar?


YH: Acredito que, atualmente, não apenas os feminismos, mas qualquer movimento social emancipador que queira colocar a vida no centro, não pode ter dinâmicas de exclusão, porque não estamos onde estávamos há dez anos. Estamos num contexto de guerra absoluta contra a vida, onde há governos (e aqui na Argentina viu-se claramente) que declararam guerra à sua própria população, para os quais é indiferente que as pessoas não comam, porque consideram que só tem direito a comer quem pode pagar pela comida. Um modelo, além disso, profundamente violento.

Dentro disto, acredito que devemos buscar espaços que incluam, tendo em conta que isso não significa criar um único espaço homogéneo, onde toda a gente esteja com esse debate de "olhemos para o que nos une e não para o que nos separa". Acredito que vamos ter de pensar em movimentos muito menos estáveis, onde nos possamos juntar e onde aprendamos a gerir o conflito.

Partilho imensas perspetivas do feminismo, que colocam no centro o direito ao aborto ou o direito a decidir das mulheres, mas eu participo em organizações que são mistas e quando me aproximo de um companheiro ou uma companheira nunca me ocorreu perguntar-lhe o que tem debaixo das cuecas ou das calcinhas. Quando os companheiros chegam e se apresentam, recebo-os como se apresentam. Para mim, isso nem sequer é um debate.


PP: Em A Vida no Centro, você levanta a questão de que a sustentabilidade da vida tem de organizar o social e o econômico em geral, mas, considerando o que mencionava antes sobre a guerra dos governos contra os povos, está claro que estamos num contexto atual com retrocessos muito importantes. Como reformularia essas questões hoje ou, em todo o caso, como pensá-las à luz dos avanços destas novas direitas autoritárias, ecocidas, hiperpatriarcais, etc.?

YH: Não me atrevo a explicar o que seria preciso fazer, porque não faço ideia. O que temos de fazer vai ser uma experimentação constante. Mas o que tenho claro, pelas experiências que vi no meu país, é que se não existir uma sociedade mais ou menos articulada, consciente da magnitude e da gravidade dos problemas que atravessamos, é impossível criar um contrapoder que trave esta dinâmica destruidora, que articule formas de autodefesa que permitam de alguma maneira continuar a sustentar a vida.


Sou uma defensora do cooperativismo, vivo basicamente cooperativizada em todos os âmbitos da minha vida, tenho quase tudo e acredito muito na cooperativização de muitas coisas e na confederação de lutas, portanto, acho que explorar por aí é muito importante. E tentar confederá-las, não abandonando o Estado e a disputa pelo Estado, mas tendo claro (eu, pelo menos, tenho) que neste contexto ninguém que ganhe as eleições, por mais que seja o político dos nossos sonhos, vai ser capaz de fazer nada se não houver uma sociedade que tenha mais ou menos claro o que é que quer. Quer dizer, que estes significantes vazios, a tendência a dizer coisas que caiam bem a toda a gente, eliminando discursos que pudessem ser complicados de sustentar, gerou uma dinâmica de neoliberalismos progressistas, de arrastar as propostas emergentes mais para a direita, a pôr uma alfombra vermelha à ultradireita.


PP: Considerando que você encara a crise ecológica também como uma crise política e cultural, que transformações lhe parecem imprescindíveis para lidar com o que, em algumas conceções, se apresenta como um colapso iminente?


YH: Vejamos, primeiro não nos podemos esquecer que há povos e lugares que já estão em colapso. Nisto coincido bastante com Maristella Svampa: o colapso é sempre um colapso situado. Não há uma espécie de apagão global que, de repente, desligue tudo. Isto é importante, porque enquanto o conjunto dos seres humanos nunca assistiu a um colapso global, os povos sim, já viveram em colapso muitas vezes, atravessaram catástrofes que os deixaram arrasados, começando pelos povos originários, que ainda resistem.


Digo isto porque o colapso são estes desmoronamentos que se produzem na ordem estabelecida, mas não significam de modo algum extermínio nem fim total, e os povos têm sido capazes de se organizar para reverter dolorosamente muitas situações de colapso.

A partir daí, nós, mulheres, temos trabalhado muito em torno da ideia de transição ecológica e social justa e fizemos alguns processos participativos para ver como seriam esses processos e quais seriam os seus princípios. E basicamente apareceram sete ou oito objetivos-chave. O primeiro era articular já uma garantia das condições de vida dignas para as pessoas. Isto é muito importante e inclui questões que têm a ver com o salário, mas também outras como o acesso à habitação e a alimentos suficientes e de qualidade, com rendas básicas em espécie… São propostas que não têm de ser contraditórias com o emprego, mas vejo-as absolutamente complementares. Ou seja, haveria que pensar nas necessidades humanas, cuidados, educação… e ver como podemos satisfazê-las com os recursos que temos. A boa notícia é que os recursos existem, não há um impedimento material.

O segundo elemento tem de ser trabalhar na redução da pegada ecológica naqueles lugares onde esta supera a capacidade do território (claramente é o caso do meu país). E reduzir a pegada ecológica significa trabalhar coletivamente com os sindicatos e os espaços de produção para, contrastando necessidades e população, pensar o que é preciso produzir, como é preciso produzi-lo e como se distribui essa produção.


Isto leva à terceira questão, que é repensar o mundo do trabalho, tendo claro que não é a mesma coisa proteger pessoas que proteger setores. Porque alguns setores sindicais, muito instalados na concertação social e não na luta de classes, terminaram por interiorizar a mentalidade do inimigo e consideram que, para poder proteger os trabalhadores, há que proteger primeiro o sector, garantindo que o dono dos meios de produção ganhe o que quer ganhar para que depois as pessoas tenham direito a comer. Pensando na crise que temos a partir desse lugar, aparece-nos um problema grande. Porque há setores — por exemplo, o turismo massivo no meu país — que estão a ser um problema, porque assim como te garante o salário, tira-te tudo o resto. E os setores extrativistas, a produção de carros para uso privado… Há muitas coisas em que se pode meter a mão.


Falaria também em pensar a reordenação do território. Nós estamos a trabalhar com uma chave biorregional, de tal maneira que possamos romper essa falsa separação entre campo e cidade. Pensemos na organização do território com uma lógica ecossistémica, englobando, harmonizando e criando circuitos curtos de comercialização, favorecendo a produção de alimentos o mais perto possível, estimulando dinâmicas de agricultura urbana e periurbana, pensando nos modelos de transporte, apostando no transporte público e coletivo (se possível, eletrificado). Este tipo de coisas.


Quanto ao quinto ponto, pensamos também em como fazer para que aquelas coisas que já são estruturais não sejam sempre tratadas como contingência. Por exemplo, em Espanha vai haver uma grande quantidade de incêndios, vai haver secas plurianuais, vamos ter DANAs e chuvas extremas. Então, uma vez que sabemos que isto vai acontecer, é absurdo que não estejamos preparados comunitária e estatalmente para abordar esses processos e que eles não tenham previsão nos orçamentos gerais do Estado. Já não é algo conjuntural.


Seguiríamos com a questão da tecnologia, de pensar uma tecnologia ao serviço da vida, sem apostar tanto em tecnologias que a destroem. Pensaríamos também na mudança cultural, que para nós, mulheres, é uma questão central, a educação ecológica e social, os dispositivos culturais que possam ajudar à transformação, a cultura popular. E, por último, em contar com recursos para poder fazer isto. Num dos processos participativos que fizemos, depois de saírem todas as propostas, convidámos algum economista que tivesse feito orçamentos gerais do Estado… e o que lhe saía era que fazer a transformação viria a levar entre 3,5% a 5% do PIB durante 20 anos. Ou seja, o que se quer destinar agora mesmo ao rearmamento. O que quero dizer com isto é que, estrutural, política e economicamente, as transições não são impossíveis. A impossibilidade está em que há um desequilíbrio brutal de poder, com sectores da população que querem continuar na dinâmica da acumulação e para os quais é indiferente o que acontece ao resto.


Por isso a importância da articulação, da configuração em torno de uma luta de classes enriquecida, de partilhar os diagnósticos com clareza, de nos acompanharmos e darmos a mão, de fazermos juntas o luto por saber que o modelo de progresso que nos tinham vendido era uma falácia.


PP: Você costuma sublinhar a questão da necessidade de mudar os imaginários. Todas estas são propostas muito concretas e muito práticas, para além de necessárias e urgentes, mas enfatiza também a importância de pensar e mudar os imaginários que sustentam o capitalismo. Que narrativas ou experiências alternativas lhe parece que podem contribuir nesse sentido?


YH: Do meu ponto de vista, é fundamental o trabalho em torno da ideia de sermos animais dependentes do tecido da vida, que não podem viver fora dele. Na minha experiência de muitos anos de trabalho em torno desta ideia e deste motivo de encontro em Espanha, os resultados são magníficos. É como se, de repente, um monte de gente se desse conta e dissesse: como é possível que não tivéssemos isto no centro? É que se investe muito dinheiro e muitos recursos para tirar as pessoas da natureza e para tirar as pessoas das relações de dependência de outras pessoas.


Acredito que é um campo claro. E tenho tido a experiência, por exemplo, de participar em projetos de educação ecológica e social, onde nos articulamos e, muito recentemente, chegámos mesmo a conseguir uma mudança profunda na matriz curricular do ensino primário e secundário no Estado espanhol. Agora vem o desafio de ajudar a que o professorado seja capaz de trabalhar com essas coisas com as quais não trabalhou na sua preparação para ser docente. Mas a mim parece-me que essa parte cultural, de mudança de imaginário, é a chave. Ou seja, o que impede que as pessoas se articulem e desejem um projeto de transição ecológica e social justa é viver instalado num imaginário em que te sentes como dono da terra, em que acreditas que alguma tecnologia se inventará para resolver os problemas e em que não podes acreditar que quem te governa esteja a ser insensível perante o extermínio da própria população.


PP: Você esteve percorrendo um pouco de vários lugares da Argentina. O que você leva contigo? Que experiências você conheceu? O que te surpreendeu?


YH: Bem, eu acompanho muito e tenho muito contacto com companheiras daqui, que constantemente me enviam coisas, eu sigo-as, leio-as e assim por diante. Mas claro, uma coisa é ler as coisas e outra é conhecer quem põe o corpo. Isso é sobretudo o que levo comigo. Já sabia que a Argentina é um lugar com uma articulação social brutal onde, em circunstâncias tremendamente difíceis, em que hoje muita gente tem de estar a pensar na sobrevivência quotidiana, surpreende-te encontrar pessoas que estão naquilo em que estão, na sobrevivência. E não digo sobrevivência em termos pejorativos, mas sim que estão a pensar em como produzir e reproduzir a vida em circunstâncias brutalmente hostis. É um país com um movimento social impressionante, histórico, com uma criatividade tremenda. Isso é o que mais levo comigo do que pude ver aqui.