Bolívia: fim de um ciclo?

Tradução: Equipe Radar Internacional

Em que pese o evidente giro à direita, as últimas eleições bolivianas não modificaram a estrutura de terços eleitorais em 2025. Mas o MAS, que conserva seu núcleo duro, sofreu uma grande perda de credibilidade no histórico “terço em disputa”.

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Marcha do TIPNIS de 2011, Bolívia.


O que ocorreu no dia 17 de agosto na Bolívia não pode ser entendido sem se considerar a profunda crise do MAS, o principal partido do país, que competiu fragmentado em três vertentes e com seu líder mais influente, Evo Morales, excluído do processo. A grosso modo, os resultados refletem um giro à direita e também que o voto nulo/branco ficou em segundo lugar, representando uma forma de ação política coletiva, especialmente entre comunidades camponesas. Longe de ser uma expressão amorfa, o voto nulo encarna uma deliberação orgânica que caracterizou o evismo durante duas décadas.


De todo modo, os votos nulos e brancos são uma opção política, mas não geram uma opção estatal, por isso a Assembleia Legislativa Plurinacional aparece dominada por uma abrumadora maioria entre as velhas direitas e a emergente direita populista.

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A Bolívia dos dois terços


A divisão em terços reflete uma tendência histórica do comportamento eleitoral boliviano desde 2005. O primeiro terço corresponde ao voto duro do MAS, articulado em torno do bloco indígena-campesino e popular urbano. Seu antagonista é o segundo terço representado pela direita neoliberal tradicional, sustentada por setores de classe média acomodada e pelo aparato midiático neoliberal. O terceiro terço - o “terço em disputa” - foi historicamente um segmento mais flutuante, composto por setores populares urbanos, trabalhadores informais e jovens em ascensão social. Durante duas décadas, a maior parte deste último terço se articulou com o MAS, o que lhe possibilitou várias vitórias no primeiro turno. Todavia, em 2025, essa franja foi capitalizada em grande parte por uma direita populista emergente, encabeçada pelo binômio Rodrigo Paz/ Edman Lara, o que marca tendências a um giro ideológico em uma parte considerável do eleitorado.


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A surpreendente vitória do binômio Paz/Lara


Rodrigo Paz faz parte há muito tempo das camarilhas de políticos profissionais de direita. Sua carreira política é, em grande medida, uma herança de seu pai, o ex-presidente Jaime Paz Zamora e, por conseguinte, carece de atributos que o distinguem por mérito próprio. Sem respaldo empresarial, permaneceu durante anos na segunda fila. Seu maior acerto até agora foi escolher como companheiro de chapa Edman Lara, um ex-capitão de polícia que se tornou viral muito antes das eleições graças a seus vídeos denunciando a corrupção dentro da sua instituição. Lara e, na realidade, o verdadeiro vencedor do primeiro turno.


A população está padecendo em um país onde os preços dos produtos básicos sobem a cada semana, o combustível é escasso e acumulam-se denúncias de corrupção envolvendo o presidente Arce. A corrupção estatal junto a especulação e o contrabando de combustível por parte de empresas privadas gerou cenas de caminhões esperando com desespero sua vez nos postos de gasolina. Soma-se a isso uma rede de extorsão armada pelo banco privado, com cumplicidade dos “entes reguladores” estatais que custeia os dólares como senhores feudais custeiam suas terras e os vendem a pequenos e médios comerciantes a preços arbitrários. Tudo isso foi preparando o terreno para a irrupção de interpeladores contingentes, como Lara, um homem que grita contra a corrupção e promete “acabar com ela em 15 dias”, reunindo audiências dispostas a escutá-lo, aplaudi-lo e votá-lo.


As gerações jovens de pequenos comerciantes, motoristas de ônibus, trabalhadoras precarizadas e pedreiros dificilmente se reconhecem como destinatários de uma proteção efetiva por parte dos serviços públicos. Na prática, o único direito realmente universalizado pelo Estado Plurinacional foi a educação primária. Outros direitos fundamentais, como o acesso à saúde ou a uma moradia digna, continuam sendo promessas distantes para amplos setores populares.


Para estes grupos, o Estado não representa uma garantia de bem-estar, mas apenas um gestor do chamado “movimento econômico”: uma dinâmica de consumo popular que permite a subsistência de pequenos empreendimentos individuais e familiares. Essa função, mais que redistributiva, é tolerada como mecanismo de sobrevivência. Em síntese, o poder político aparece deslegitimado não apenas pela sua incapacidade para enfrentar a crise econômica, mas sim pela sua disposição a lucrar com ela através de redes de corrupção que aprofundam o mal-estar social.


A velha e conhecida direita neoliberal quis aproveitar o momento dosando seu estado de histeria. Imitando com gestos caricaturescos o fenômeno Milei na Argentina, promete privatizar tudo como revanche pelos vinte anos de “socialismo” que, segundo seu relato, levaram a Bolívia ao colapso. No entanto, mais além de sua base social tradicional, tem dificuldades de soar crível. Seus candidatos carregam longos históricos como benfeitores dos ricos, operadores de interesses estadunidenses e representantes de empresas transnacionais. Por isso, seu discurso não consegue se conectar com amplas faixas do mundo popular, que recebem da direita clássica um tufo persistente de elitismo e racismo apenas dissimulado.


Do mesmo modo, todas as frações do ex-MAS perderam legitimidade nesse mesmo terço flutuante que antes lhe davam rotundas vitórias nas urnas. Atribui-se essa perda a duas causas principais: a crise económica e as profundas divisoes internas. Ambas estão profundamente entrelaçadas, configurando no MAS um conservadorismo político que paralisou qualquer tentativa de renovação.


O único candidato da esquerda que aparecia com alguma possibilidade, Andronico Rodriguez, conduziu uma campanha eleitoral conservadora em sentido estrito. Falou de “cuidar” das conquistas do processo e, temendo provocar uma “guerra suja” por parte da direita, evitou levantar consignas que levantassem reformas críveis. Sua campanha, tímida por planejamento - não por juventude nem falta de recursos - não conseguiu despertar entusiasmo nem impedir que a maquinaria comunicacional da direita o atacasse com virulência.


Por sua parte, Evo Morales, marginalizado mediante manobras turvas do governo de Luis Arce e do poder judicial, optou por chamar o voto nulo. Com isso confirmou que entre seu objetivo de se impor como “o único candidato do povo” e os meios de conseguir isso não existem pontes. Os números o ratificam como o líder popular mais influente e lhe permitem sua autocomiseração diante do fracasso de seus ex-companheiros “traidores”. Todavia, esse capital simbólico não se traduziu em avanços concretos em relação a uma política, um programa ou uma estratégia capazes de rearticular uma vontade majoritária com projeção estatal.


Uma das lições-chave de tudo isso é que as manifestações do mal-estar econômico nunca são meramente “condições objetivas”. O descontentamento diante da crise é produzido e moldado pela luta política. Nessa disputa pelo sentido, a direita conseguiu avançar significativamente mediante um relato que culpa o “modelo econômico masista” e o “socialismo” por todos os males. Instalou uma narrativa que apresenta a crise como consequência direta da intervenção estatal, ocultando as dinâmicas estruturais - como a dependência externa e a concentração do excedente em mãos privadas - que a precedem e a aprofundam.


A esquerda, por outro lado, não conseguiu articular um relato antagônico coerente. Limitou-se a advertir sobre os perigos do retorno da direita ao poder, o que serviu para desprestigiar os políticos da velha direita, mas não para se posicionar como uma alternativa crível de solução. Esse vazio político foi ocupado, pelo menos conjunturalmente, pelo fenomeno populista de direita encarnado pelo ex-capitao Lara, cuja irrupçao expressa tanto o esgotamento do relato do MAS quanto as limitações da direita senhorial. A esquerda deve mostrar que a crise atual é resultado do retrocesso do Estado na apropriação do excedente social e expressar essa crítica em um programa renovado de reformas econômicas. Um programa que não se limite a atenuar os sintomas do colapso, mas sim um programa que aponte para a transformação das condições materiais de vida, tornando efetivamente melhor a existência cotidiana das maiorias.


Não é a “crise do modelo econômico”, é a dependência


As reformas neoliberais dos anos 1980 aprofundaram a primarização da economia boliviana, orientada para a exportação de matérias-primas, e debilitaram sua já frágil indústria nacional, que abastecia o mercado interno. Como resultado, cresceu a importação de mercadorias. O setor comercial, antes monopolizado por elites de sobrenomes estrangeiros, se diversificou progressivamente, incorporando setores populares. No entanto, durante os vinte anos de neoliberalismo (1985-2005), o dogma da contração monetária limitou a expansão do mercado interno, restringindo o crescimento desse novo circuito popular ligado ao comércio.


O verdadeiro auge comercial chegou com a gestão do MAS, sobretudo no período de 2008 a 2015. A maior captação de excedentes provocada pela exportação de gás permitiu uma expansão inédita do investimento público, expandindo a economia boliviana como nunca antes. Mas essa expansão não esteve acompanhada de um fortalecimento da produção interna capaz de abastecer o consumo nacional. Por isso, grande parte do excedente voltou a sair do país mediante a importação de mercadorias, com tudo o que implica importar em um país mediterraneo.


Como apontam os clássicos da Teoria Marxista da Dependência, o ciclo do capital em países como a Bolívia se caracteriza pela separação estrutural entre os processos de produção e circulação de mercadorias. Enquanto a produção se orienta para a exportação (gás, minerais, soja, gado), a circulação interna se baseia no intercâmbio de bens importados. O chamado “modelo econômico do MAS” não rompeu - nem sequer de forma tendencial - com esse padrão dependente; na verdade, o reproduziu em escala ampliada.


Soma-se a isso um agravante: diante da crise de produção de hidrocarbonetos, o excedente exportado começou a ser capturado crescentemente pela empresa privada, que o consome de forma improdutiva e cuja carga financeira recai sobre o Estado. Essa variável - que teoricamente deveria ter sido regulada pelo governo do MAS - foi deixada à deriva. A ruína da administração econômica que permitiu a direita derrotar ideologicamente o MAS tem suas raízes nesse processo material de dependência. Aqui se constitui a base do modelo econômico das classes dominantes bolivianas - agroindustriais e financeiras, principalmente - profundamente antinacionais, as quais parasitam a renda nacional enquanto enviam seus dólares para paraísos fiscais.


O que esperar do segundo turno


A análise exposta permite pensar em uma alta probabilidade de vitória no segundo turno do binômio Paz/Lara. Não obstante, a direita melhor organizada - cujo candidato mais votado, Tuto Quiroga, ficou em terceiro lugar atrás de Paz e do nulo/branco - está articulando um esquema de poder que lhe permitirá controlar o próximo governo, independentemente de quem ganhe a votação. Os políticos profissionais operam com o respaldo do poder econômico de Santa Cruz e da extrema-direita internacional, para consolidar um “governo de acordos e consensos”: isto é, um governo firme na aplicação do ajuste econômico contra a população, na concessão de benefícios aos bancos e a agroindústria, na abertura para investimentos estrangeiros para a entrega de recursos naturais. Rodrigo Paz, provável futuro presidente, não mostra o menor reparo em transitar por esse caminho.


Todavia, essa operação do poder concentrado está enfrentando um obstáculo inesperado: o “capitão” Lara. Seu estilo histriônico, dirigido a audiências populares, começou a irritar os comandantes do bloco direitista, que lançaram uma campanha comunicacional para reprovar seus “maus modos” e associá-lo ao masismo - essa entidade demonizada que acreditavam ter sido sepultada com o resultado eleitoral. Lara, apaixonado por sua própria popularidade, resiste a abandonar o atrevimento. Cada vez que pega um microfone ou aparece no TikTok, reafirma que não se entregará aos “velhos políticos”. Suas declarações reforçam seu magnetismo popular, gerando um circuito de legitimação que, no entanto, tem limites objetivos.


Como é evidente, chegará o momento em que Lara descubra que fazer política não consiste unicamente em colher aplausos nem likes em redes sociais. As correlações de forças reais impõem limites à valentia e à venda de ilusões. Para além da sua fama digital, Lara carece de estrutura partidária, de organizações de base que o respaldam e - para dizer a verdade - também não parecem ter uma ideia clara do que implica ser vice-presidente do Estado. Sua interpelação às massas, embora barulhenta, não conseguiu articular um conjunto minimamente coerente de demandas econômicas, políticas e sociais. É um discurso de conteúdo moralizador e até reacionário, mas amorfo.


Na espiral dos seus discursos, prometeu aumentos substantivos aos subsídios sociais para estudantes e idosos, enquanto o bloco com o qual governará prepara políticas empobrecedoras. Jurou que será implacável com a corrupção, inclusive denunciando seu próprio presidente se fosse necessário, enquanto a coalizão governante esfrega as mãos diante das possibilidades de latrocínio e desvio estatal. Com a ênfase de um ilusionista, Lara sentenciou: “Se os defraudo, me enforquem”, esquecendo que na Bolívia defraudar é fácil e ser enforcado é uma metáfora que beira o literal.


O que foi encerrado e o que segue aberto?


A Bolívia já não tem um partido hegemônico de esquerda e as eleições desenvolveram uma relação de forças políticas onde a direita controla os três poderes do Estado. Esta correlação, contudo, não apenas não corresponde ao que já existe entre as forças sociais, como também o candidato mais votado, Rodrigo Paz, não fez campanha a favor do programa que quer aplicar. Seu voto vem de setores vulneráveis, os mais afetados se forem aplicados planos como os do FMI. Nessa medida, as eleições não resultaram em nada, a crise segue seu curso e seu desenlace segue em aberto. A esquerda tem uma oportunidade se for capaz de entender que não basta resistir aos embates da direita e que deve propor um horizonte crível às massas. Para resolver este enigma, a esquerda tem muito o que aprender dos últimos 20 anos e está convocada a evitar os erros ainda persistentes que ameaçam a sua existência como força com enraizamento popular.

VLADIMIR MENDOZA MANJÓN

Psicólogo e Professor da Universidade Mayor de San Simón. Ex-executivo da Federação de Trabalhadores da Educação de Cochabamba.