Bolívia: presidente Arce é ‘expulso’ do partido de Evo Morales

 

Luis Arce não comparece ao congresso do MAS e é considerado expulso da sigla por uma ala do partido. Mandatário, porém, pede anulação de evento na Justiça e organiza congresso paralelo, em novo episódio do racha na esquerda boliviana

 

A fratura aparentemente irreconciliável da esquerda boliviana ganhou novos contornos ao longo desta semana, durante o congresso do Movimento ao Socialismo (MAS), partido que governa o país de forma quase ininterrupta desde que Evo Morales chegou ao poder pela primeira vez em 2006. Com o presidente Luis Arce decidindo se ausentar do evento, frequentado pela ala “evista” – como são conhecidos os mais alinhados a Evo –, os apoiadores do antigo líder tomaram a decisão drástica de considerar o atual mandatário “autoexpulso” da sigla – o que, além de tornar incertos os próximos passos da política situacionista, ainda abre caminho para a aclamação do próprio Morales como candidato do MAS às eleições presidenciais de 2025, poucos dias depois de ele mesmo anunciar que tentaria voltar ao governo, em grande parte devido ao crescente distanciamento em relação a Arce.

Como seria de imaginar, o presidente não ficou passivo, e conseguiu na Justiça que as resoluções do MAS fossem temporariamente suspensas. Luis Arce também convocou sua própria conferência paralela e justificou sua ausência alegando a necessidade de um evento mais amplo, que contemplasse a participação de outras organizações regionais e sindicais que, segundo ele, vêm sendo excluídas da democracia interna do MAS para criar um cenário “sob medida” para Evo continuar ditando os rumos do partido – com um peso supostamente desproporcional conferido a entidades originárias e cocaleiras vinculadas ao antigo presidente. No contra-ataque, o atual presidente republicou uma série de documentos e manifestações das entidades que diz terem sido excluídas – todas, é claro, enfatizando seu apoio à gestão Arce, numa clara tentativa de comprovar a própria governabilidade.

Ou seja: ao menos por enquanto, Luis Arce não está oficialmente fora do próprio partido aos olhos da lei, nem Evo é o nome formalizado do MAS para 2025, mas nenhum analista ou correligionário acredita que ainda haja espaço para os dois políticos na mesma sigla. A menos que haja uma grande virada na relação entre ambos, hoje parece pouco provável que as diferentes alas dentro do grupo governista caminhem juntas rumo às eleições. Os acontecimentos da semana não são um fato isolado ou surpreendente. São apenas a parte mais saliente de uma escalada de distanciamento que este GIRO vem acompanhando ao longo dos últimos meses, ao ponto de algum leitor mais atento possivelmente ler a manchete de hoje e até pensar – “mas outra vez Evo e Arce brigaram?”. Uma briga, vale dizer, que não deve acabar tão cedo.

Para quem perdeu os acontecimentos, vale recapitular desde alguns anos atrás: Evo foi afastado do poder por um golpe de Estado em 2019, após tentar concorrer a uma controversa reeleição e sair vitorioso em um pleito no qual a oposição acusou fraude (jamais tendo comprovado essa versão). Exilado durante o governo interino de Jeanine Áñez (2019-2020), hoje presa, ele não pôde se lançar nas eleições extraordinárias de 2020, com o MAS apostando no nome mais moderado de Luis Arce, ex-ministro de Economia e Finanças na maior parte do tempo em que Morales foi presidente. Visto como a faceta tecnocrata e mais pró-mercado do partido, era também uma cara conhecida e exaltada pelo crescimento econômico acentuado que veio acompanhado da redução da pobreza, sobretudo pelos acertos de Arce e seu modelo de economia mista que financiou o “milagre” boliviano a partir da exploração de recursos naturais.

Já nas eleições de 2020, porém, viria o primeiro baque para Evo: a vitória de Arce realmente confirmou a força do MAS, mas também indicou o desgaste do velho presidente – seu apadrinhado acabou fazendo mais votos do que o próprio Morales um ano mais cedo. É neste ponto, segundo alguns observadores do contexto boliviano, que teria começado a ganhar corpo uma corrente dentro do partido para tentar “aposentar” Evo, abrindo caminho a novas lideranças. Em novembro de 2020, Evo voltou ao país ainda como amigo de Arce e, embora sem função oficial no governo e perfilando meramente como um embaixador informal do MAS por sua militância histórica, ficou no ar a questão de até que ponto o novo presidente seria ou não uma espécie de fantoche.

Hoje, está evidente que a influência de Morales sobre Arce, pelo contrário, é quase nula.

Todos esses movimentos foram aprofundando gradativamente uma fissura que, agora, parece ganhar dimensões tectônicas a cada semana. Aliados de Evo dentro do MAS, fortemente vinculados a organizações ligadas a povos originários, acusam Arce de conduzir um governo que perpetua a exclusão indígena vista – literalmente por séculos – antes de Evo se eleger em 2006. Arce, por outro lado, defende-se apontando que conta com apoio de entidades originárias, apenas não são as mesmas que sempre estiveram com seu antecessor. E insiste que, enquanto os “evistas” usam a bandeira de um suposto racismo de seu governo, eles próprios estariam excluindo uma série de organismos sindicais e de trabalhadores urbanos que sempre deram muitos votos ao MAS, mas se sentiriam apartados da tomada de decisões do partido.

Por enquanto, as brigas internas da esquerda boliviana também parecem encontrar terreno fértil por uma relativa despreocupação com a oposição “de verdade”: a direita ainda segue dilacerada pela derrota de 2020, que tirou legitimidade das principais lideranças do golpe do ano anterior – boa parte das quais, hoje, está até na cadeia. Sem uma oposição forte, o MAS tem mais tempo para brigar consigo mesmo. Mas faltam dois anos para as eleições e, até lá, dá para esperar muita instabilidade e reviravolta. Nesse meio tempo, uma dúvida central paira nos ares rarefeitos de La Paz: quem teria mais chances de herdar os espólios eleitorais do MAS se as duas facções do partido realmente virarem movimentos independentes?

Evo e Arce se enfrentariam diretamente ou algum daria um paso al costado dependendo do desenho do cenário eleitoral? E, talvez mais importante do que isso: a direita que há quase duas décadas fracassa nas urnas conseguiria se aproveitar da crise do MAS para finalmente criar uma alternativa viável ou, uma vez mais, tentaria apenas jogar gasolina na fogueira buscando reinar sobre as ruínas? No país sul-americano que mais golpes de Estado teve até hoje – com direito a um que aconteceu há míseros quatro anos –, o futuro pode guardar respostas bastante perigosas.