Por Carolina Colazzo e Adrian Pulleiro
Via Jacobin
A cidade de Buenos Aires, governada durante os últimos vinte anos pela direita, constitui um claro exemplo do que o neoliberalismo pode fazer quando opera à vontade. Mas para mudar a situação não basta apenas disputar eleições.
Com as eleições gerais na Argentina chegando, as internas do oficialismo portenho vem ocupando os principais noticiários há meses. Em parte, isso se deve ao fato de que a Cidade de Buenos Aires é um dos principais locais onde se resolve a disputa que atravessa a principal aliança opositora a nível nacional e, por outro lado, porque está tudo dado para que quem suceda Horacio Rodríguez Larreta na chefia de governo seja desse espectro político.
Quando isso se concretizar, estaremos diante de um dado tão evidente quanto significativo: teremos chegado a duas décadas ininterruptas de governos locais que não apenas encarnam um projeto neoliberal, mas que também têm sido fundamentais para recriar esse projeto logo depois da crise de 2001 e projetá-lo nacionalmente.
Na Argentina, não são poucos os casos em que as forças políticas de diversos tipos e com trajetórias históricas variadas conseguiram se manter em governos distritais durante um período comparável ou inclusive mais extenso, sem que tenham surgido opositores que questionem realmente sua continuidade. Há experiências desse calibre protagonizadas pelo Partido Justicialista (PJ) e a União Cívica Radical (UCR) e também por partidos provinciais.
Geralmente, desde as visões mais pejorativas, costuma-se defini-los como “regimes feudais”. Seja como for, e assumindo as particularidades que comportam, experiências como a puntana, a neuquina, a rionegrina ou a missioneira – apenas para mencionar algumas – têm em comum a capacidade para transcender mudanças de governo a nível nacional e ser especialistas em transitar por crises políticas, econômicas e sociais nacionais e internacionais. Definitivamente, exercem em seus territórios uma supremacia política solidificada.
Dar conta dessas experiências é uma linha de entrada válida para evitar exagerar as particularidades da conjuntura histórica portenha e evitar locais comuns que levam a um beco sem saída. Um exemplo disso são os discursos que explicam o êxito da direita local oscilando entre a suposta natureza conservadora da população e o poder de enganação do marketing político ou a capacidade de encobrimento dos meios de comunicação. São formulações que não apenas ficam na superfície do fenômeno político, como também tornam mais distante a possibilidade de gerar uma alternativa.
Voltando ao fio condutor que propomos, então, o que se trata é de considerar o cenário de supremacia política que se dá na Cidade Autônoma de Buenos Aires (CABA) como um caso entre outros e, simultaneamente, dar conta daquilo que o diferencia do resto. Pensamos que esse ponto de partida leva a analisar, como uma dimensão fundamental desse cenário, os processos que levaram a legitimar um conjunto de sentidos comuns (valores e aspirações) e a que – de um modo crescente – uma boa parte da população os vê encarnados em uma força política particular (o PRO e as forças que orbitam ao seu redor). Em outras palavras, os mecanismos específicos que estão na base, já não de uma série de triunfos eleitorais, mas sim da construção de uma hegemonia política. Um objetivo ambicioso, mas sobre o qual vale a pena ensaiar algumas aproximações, mesmo que sejam parciais.
Um localismo muito PRO
As supremacias distritais que viemos mencionando tem a particularidade de ter atravessado – e inclusive algumas delas de ter sido gestadas – em meio a um cenário nacional e internacional caracterizado por crises recorrentes. Nesse sentido, a estabilidade no pagamento pequeno contrasta com a alternância que se deu a nível nacional e a sucessão de episódios traumáticos que aconteceram no último período (do mega endividamento com o FMI à pandemia e a guerra na Europa).
Para dizer de forma simples, a Argentina na última década mostra um quadro que combina sinais de um estancamento econômico não resolvido, uma ofensiva dos setores do capital que corroeu as condições de vida das maiorias e uma espécie de empate regressivo entre as forças sociais em disputa, que se traduziu em uma crescente deslegitimação do sistema político e das instituições do Estado. Todavia, esse cenário convive com um conjunto de ilhas onde a hegemonia política é um fato.
Uma parte desse paradoxo se explica pela construção de identidades políticas gestadas ao calor de algum tipo de localismo. Se alguns foram construídos relacionados a uma longa história de autonomia em relação às estruturas nacionais – o Movimento Popular Neuquino é um exemplo disso – e outros a partir de um gesto de aquiescência mais ou menos explícito em relação à política que emana “desde Buenos Aires”, retomando em ambos casos a tradição do federalismo, na Cidade de Buenos Aires, no momento da criação do PRO e da sua chegada ao governo portenho, a apelação a essa autonomia foi um pilar necessário, mas logicamente teria que correr por outra via.
Este localismo teve um componente eminentemente neoliberal desde um começo, já que se apoiou em dois grandes pilares: a política foi assumida e promovida como administração eficiente e os modelos foram colocados nos centros internacionais de poder. De algum modo, o PRO se construiu como um partido de Estado (local), que encarnava a eficiência empresarial, em oposição à crise do ibarrismo por Cromanon e o ascetismo ideológico em oposição – no início silenciosa – à hegemonia incipiente encarnada naquele tempo pelo kirchnerismo.
Deve-se dizer, então, que a consolidação do PRO se deu, antes de tudo, como expressão local, algo que parece ter ficado longe no tempo, mas que segue sendo um componente substantivo na sua maneira de governar a cidade.
O modelo é a Cidade
Paralelamente, essa consolidação se nutriu de uma progressiva sofisticação em relação ao projeto específico de cidade a ser levado a cabo e do relato que justifica seu avanço. Essencialmente, essa foi a tarefa fundamental dos governos de Larreta, que não apenas sobreviveu eleitoralmente ao fracasso que significou a presidência de Macri como também saiu fortalecido do retrocesso sofrido pelo partido amarelo em 2019.
Dito isso, vale agregar que o PRO (e seus aliados) é um gestor hábil e eficaz do programa que o grande capital financeiro vem exercendo nas grandes cidades em escala global. A força motriz das transformações que vem experimentando as principais cidades do mundo durante as últimas três décadas é o avanço de grandes corporações que veem no espaço urbano um terreno propício para gerar rentabilidade através de investimentos imobiliários que movem um volume cada vez mais importante de capital. Comparando com outros momentos históricos caracterizados pelas grandes transformações urbanas, atualmente é notório que os padecimentos da população se multiplicam e que essas cidades se tornam lugares cada vez mais excludentes.
No discurso que durante esses anos justificou esse projeto de cidade há um elemento que é chave porque articula os níveis da “economia” e da “politica”. A diferença do relato tão instalado pelos neoliberais dos anos 1990 sobre a necessidade de um “Estado mínimo” – relato que por outro lado foi fundamental para legitimar a privatização das empresas e serviços públicos – desde o PRO trabalha-se com a ideia de um “Estado facilitador”.
Como disse Rodríguez Larreta em seu último discurso de abertura de sessões ordinárias da Legislatura: “o Estado tem que ser um promotor, tem que ser o que identifica os setores estratégicos com maior potencial de crescimento para melhorar suas condições e acompanhá-lo em seu desenvolvimento”. Esta ideia estará associada a múltiplos significados que retomaremos mais adiante, mas há um que é elementar: o empresariado (“o setor privado”) é o sujeito social que gera riqueza (e emprego genuíno) e o Estado deve ajudar nesse processo. Daí que ver cada torre construída como um sinal de progresso, sem importar quanto de sua capacidade ficará vazia ou quanto prejudica a população vizinha, há apenas um passo.
Deve-se somar a isso que a Cidade de Buenos Aires possui um campo cultural e uma infraestrutura que a diferencia do resto das grandes cidades do país, que a tornam também um espaço válido para outro tipo de atividades que permitem ter uma grande rentabilidade econômica. Assim, desde esse paradigma, a Cidade se converte em um produto de exportação do turismo e toda uma série de atividades, que vão da gastronomia aos serviços educativos. Novamente, o papel do Estado local será facilitar e difundir uma série de ofertas (como a artística) e de serviços (como o de segurança) que convertem Buenos Aires em um destino atrativo para o turismo local, regional e internacional.
O que resta é um acúmulo de políticas que reproduzem em diferentes níveis e modalidades o esquema que viemos apresentando. Longe de qualquer concepção que remeta ao acesso universal de direitos sociais e que ponha o problema da desigualdade como o fator que explica as trajetórias (sociais) diversas dos habitantes da Cidade, terrenos como as políticas de emprego ou a educativa colocam em prova um ideário baseado no mito que explica as trajetórias exitosas com base a características individuais e ao tão proclamado mérito pessoal.
A efetividade desse discurso não é um elemento menor. Como sustenta o sociólogo Lucas Rubinich em seu último livro, Contra o homo resignatus, está ligada de uma maneira não simples com o imaginário que forjou a experiência de um país que durante boa parte do século passado se caracterizou pelos altos níveis de mobilidade social ascendente, que ficou associada historicamente à cultura do trabalho enquanto esforço individual e a valores igualitaristas que ainda operam fortemente na cultura argentina.
Esse mito do mérito pessoal se complementa, no relato da direita portenha, com o ideal do Estado facilitador. Nesse marco entende-se que a maioria das ações do Governo da Cidade (GCBA) orientadas a atender o desemprego tenham como palavra-chave a “empregabilidade”. Ou seja, colocam a responsabilidade em quem está fora do mercado de trabalho e são pensadas como instâncias para capacitar a busca de trabalho, na aquisição de certas competências elementares ou, diretamente, colocando em contato empresas e aspirantes.
Daí também que a educação é pensada nos termos que Larreta utilizou em seu último discurso diante da Legislatura: “a educação é o caminho em direção à liberdade individual e a melhor ferramenta para que qualquer pessoa possa progredir com base no esforço e dedicação. Precisamos de uma educação moderna, focada nas habilidades do futuro, com a melhor infraestrutura, com docentes preparados, e que tenha pontes em direção ao mundo do trabalho”.
Dizer que estamos diante de uma força política que promove o papel de “gestor hábil e eficaz” da estratégia global que o grande capital exerce nas grandes cidades do mundo não significa subestimar esse papel; pelo contrário, sinaliza a necessidade de analisá-lo em profundidade. Mais ainda, aqui tentamos ressaltar que o nível de avanço dessa estratégia na Cidade de Buenos Aires implicou o exercício de uma condução política e cultural, que vai mais além de uma mera gestão de governo. Que conseguiu neutralizar a capacidade de dano dos setores que a questionam, que tira um grande proveito da fragilidade que o peronismo e as esquerdas em suas diferentes variantes vem demonstrando e que pode conquistar um nível de consentimento muito relevante. Ainda quando o esquema de poder que vem se reproduzindo não resolve os problemas das maiorias nem conseguiu superar as desigualdades históricas que constituem a nossa cidade.
Fantasias aspiracionais, discursos segmentados e poder estatal
Há ao menos quatro níveis que são fundamentais para explicar a supremacia política gerada e consolidada pela direita local encabeçada pelo PRO.
Em primeiro lugar, o governo atua como um habilitador de negócios, mas faz isso invocando uma promessa de que isso, cedo ou tarde, se verterá sobre o conjunto da população. Essa promessa desloca a intervenção estatal a uma figura impessoal de intermediação que “articula” (com o setor privado), “facilita” (informação para se inserir no mercado), “potencializa” (a empregabilidade), “promove” (o talento), “incentiva” (oportunidades), “estimula” (os empreendedores), “fomenta” (voluntariados de moradores), ou seja, toda uma retórica incompatível com a relação entre a ação do Estado e a garantia de direitos coletivos. Ação que, por outro lado, deveria distinguir entre os elos mais fortes e mais fracos da cadeia.
Em segundo lugar, essa direita postula e alimenta um imaginário de cidade moderna e cosmopolita. Uma identidade apreciada de um modo paradigmático no seu programa BA Global, que define a Cidade como um lugar ideal “para visitar, viver, estudar e fazer negócios”. Por outro lado, o GCBA se esforça para mostrar uma cidade que está em dia com os debates globais, entre os quais coloca com centralidade o tema ambiental (foi anfitriã da Cúpula Mundial de Prefeitos C40, que teve como eixo principal essa questão) e, em menor medida, a diversidade de gênero (o GCBA incorpora em sua agenda de comunicação as principais datas da agenda do movimento pela diversidade). Por outro lado, a partir dos índices gerais de qualidade de vida, da vultosa oferta cultural e educativa, da conectividade existente e da abundante atividade gastronômica, o GCBA oferece a própria cidade como um produto de exportação.
A Cidade se coloca, em função desses aspectos, em uma espécie de vitrine permanente, que grande parte da população poderá observar cotidianamente através dos dispositivos publicitários do Governo local – o spot da última campanha publicitária oficial “Braços Abertos” é contundente nesse aspecto – embora apenas uma pequena parte dessa população chegue a vivenciá-la. Isso supõe ainda discursos pensados para destinatários diversos, com ênfases variadas, temas distintos (desde a segurança, a oferta cultural a “empregabilidade”) e dispositivos específicos (desde a publicidade em via pública as redes sociais), orientados desde aos setores mais acomodados aos setores médios e populares, cujo eixo integrador é uma fantasia aspiracional.
Pertencer a uma Cidade moderna, com um circuito artístico próprio das principais capitais do mundo e que brinda amplas possibilidades para estudar e trabalhar opera para amplos setores como uma compensação simbólica, ou seja, como um horizonte de expectativa valorizado positivamente e que pode chegar a ser realizado em algum momento.
Em terceiro lugar, consolidou-se um sentido comum sobre a política como gestão e resolução de problemas concretos (que se apresenta como superadora das “ideologias”), mas profundamente ideológica que coloca que o Governo da Cidade deve dedicar-se principalmente a áreas delimitadas da vida social como a segurança, a manutenção dos espaços públicos e a circulação.
Isso é reforçado com um discurso erigido pelo menos sobre dois pilares. Em primeiro lugar, uma operação permanente de desresponsabilização que desloca as responsabilidades para cima e para baixo: os problemas têm uma origem no Governo Nacional ou nos trabalhadores que garantem certas atividades, algo que é percebido com claridade na estratégia de estigmatização exercida em relação a docência ou aos trabalhadores do metro. Em segundo lugar, a incorporação da “participação cidadã" e da "política de proximidade” ao vocabulário de uma forma de fazer política na qual essa participação se reduz ao encontro com os moradores (enquanto indivíduos) para conhecer suas demandas e a colocar em prática consultas vias dispositivos digitais para coletar opiniões de iniciativas já executadas ou que irão se executar (sobre o nome de uma pequena praça ou sobre o tipo de jogos a se colocar em uma praça), mas que não fazem a tomada de decisões transcendentais.
Por fim, todos esses procedimentos discursivos e ações comunicativas se complementam com a construção de uma trama institucional forjada entre o PRO e seus aliados que dá sustento a esse predomínio político-cultural e que está dada pela conformação de uma burocracia própria estendida e uma aceitada manipulação do Poder Judiciário.
Nesse ponto, a figura dos servidores públicos que chegam a funções estatais para concentrar ali sua experiência empresarial ou sua passagem por ONGs, tão cara ao momento fundacional do PRO, contrasta com toda uma camada de funcionários formados quase integralmente no Estado portenho no seio dos governos de Mauricio Macri e Rodríguez Larreta, algo que se converte em um capital político extra dada a experiência e a expertise ali acumulada.
Do mesmo modo, em tensão com um discurso que destaca o valor republicano da divisão de poderes, quando se trata de outras jurisdições, os últimos anos deram conta do avanço da influência que o partido fundado por Macri conquistou no Poder Judiciário da Cidade de Buenos Aires. Tanto a celeridade com que conseguiu no tratamento de julgamentos chave, como o que definia a faculdade para dispor a promulgação de aulas durante a pandemia quando ainda regia uma norma nacional que ia em sentido contrário, com as revelações recentes sobre os vínculos estreitos entre o ex-ministro de Justiça e Segurança, Marcelo D’Alessandro e o Chefe dos Fiscais, Juan Bautista Mahiques, são uma mostra cabal desse estado de coisas.
Todo o dito até aqui deixa lugar para duas conclusões. Por um lado, a direita local construiu sua hegemonia em função de uma série de virtudes no plano da ação política e comunicacional, mas que se estendeu sobre a base de uma ideologia neoliberal arraigada, com diferentes intensidades, no conjunto da sociedade, que forjou subjetividades em um processo que e de longa data. Por outro lado, isso supõe desafios de diversa índole – políticos, programáticos, discursivos – embora sobretudo implique assumir um ponto de partida: para construir uma alternativa deverá consolidar-se um paradigma de construção política que vá mais além do curto prazo que impõe a agenda eleitoral, em defesa de um projeto de cidade não apenas distinto, mas sim antagônico.