Por Valério Arcary
Colunista do Radar Internacional
Originalmente publicado em Esquerda Online
A mal desesperado, remédio heroico
A cisma é pior que uma doença.
Provérbios populares portugueses.
1. O “tango” apocalíptico de Milei é uma versão argentina do que foi o bolsonarismo no Brasil, e os perigos são os mesmos. São quatro, pelo menos, os fatores estruturais: (a) a extrema-direita conquistou influência porque há desespero social, e o programa de choque ultrarradical tem uma base social que, ainda quando minoritária, consegue arrastar a maioria; (b) a sociedade está fraturada pela estagnação econômica que divide a burguesia, aumenta a pobreza, interrompe a mobilidade social, acelera a desigualdade social, radicaliza as camadas médias, e desmoraliza os trabalhadores: (c) uma estratégia de neoliberalismo” com descontos conduz a esquerda para o abismo, porque a vida das amplas massas não pode mudar para melhor, e paciência tem limites, abrindo caminho para uma derrota histórica; (d) o pêndulo da disputa ideológico-cultural inclinou-se para a direita em função da audiência reacionária de ideias nacionalistas exaltadas, machistas atávicas, racistas xenófobas, homofóbicas retrógadas, etc;
2. O desempenho catastrófico de Sergio Massa sugere que o peronismo cometeu um erro de estratégia política fatal ao descartar Cristina. Cristina, representante do kirchnerismo, era a única candidatura que poderia empolgar e, talvez, mobilizar a base social popular, justamente, porque se diferenciou do caminho escolhido pela presidência de Alberto Fernández, representado por Massa. Sem a “paixão” política que Cristina poderia despertar era impossível enfrentar a avassaladora onda de radicalização extremista. Apostaram que Bullrich seria a inimiga principal. Erraram “rude”. Subestimaram Milei até que, nas PASO, se confirmou que Patrícia Bullrich com o apoio de Maurício Macri não era a favorita. A representação da direita foi pulverizada pela ascensão vulcânica da candidatura de extrema-direita que conquistou 30%. No segundo turno Milei atraiu a votação de Juntos por el Cambio ao fazer os acertos com Macri e Bullrich.
3. Era impossível derrotar Milei? Não, não há fatalismos na luta política. Quem pensa o contrário abraça uma “teorização” que tem como desfecho a desmoralização. A conquista do poder por uma liderança da extrema-direita era somente uma das hipóteses no campo de possibilidades. No terreno do balanço são inevitáveis os cálculos contrafactuais. São perigosos, mas possíveis, quando consideramos com lucidez as variáveis mais importantes. O governo Alberto Fernández fez escolhas graves e elas tiveram consequências. Aceitou as condições usurpadores impostas pelo FMI nas negociações dos empréstimos feitos durante a gestão de Macri. Poderia não ter aceito, e seguido outro caminho. Outra estratégia precipitaria rupturas com o centro político da classe dominante argentina. Seria incontornável procurar a mobilização popular para garantir sustentação. Romper relações com FMI, aumentar o salário mínimo, impulsionar um Plano de obras públicas de emergência, implantar impostos sobre as grandes fortunas, congelar os preços de uma cesta básica de primeira necessidade, e outras medidas eram possíveis. Seria uma resposta corajosa a uma crescente fratura social que deslocava parcelas das camadas médias e das massas populares para a direita. Não o fez. Foi fatal.
4. A vitória de Milei representa, em si, uma mudança, dramaticamente, desfavorável da relação política de força, e sugere que a relação social de forças já tinha se alterado para pior muito antes. A força dos movimentos sociais na Argentina não deve ser desvalorizada. Mas a derrota de Massa, inclusive em regiões urbanas de concentração popular, ainda mais grave se considerarmos que a votação teve grande comparecimento, e a votação de brancos e nulos foi marginal, parece indicar perda de autoridade político-social. A influência dos sindicatos, ou dos movimentos populares de trabalhadores desempregados, dos de direitos humanos, das feministas, educação popular, de defesa da saúde pública, a resistência contra privatizações e desnacionalização não estão intactas. Isso significa que seguramente, haverá muita luta. Mas elas se darão em condições muito, mas muito piores que antes. Bloquear o ajuste de choque que o governo Milei irá declarar como uma impiedosa guerra contrarrevolucionária será um desafio titânico. A tática da Frente Única, que só é possível em unidade na ação com o peronismo, será, mais do que nunca, a chave para abrir o aminho de vitórias, como foi possível contra Bolsonaro.
5. A maioria da esquerda socialista argentina está agrupada na FIT-U. Merecem o respeito de todas as forças anticapitalistas à escala internacional. Os quatro partidos da FIT-U estão entre as maiores organizações revolucionárias da América Latina. O PTS e o Partido Obrero estão entre as dez maiores do mundo. Têm uma longa e heroica história de lutas. Portanto, imensas responsabilidades. Saberão muito mais que nós sobre as condições nas quais tiveram que se posicionar. Conhecem melhor do que qualquer um de nós o seu país, e seu povo. Mas isso não nos deve impedir de dizer que parecem ter subestimado o perigo representado por Milei. Infelizmente, nesse erro seguiram o caminho da maior parte da esquerda brasileira, mesmo entre as correntes da esquerda radical, diante de Bolsonaro. Também no Brasil, ainda em 2018, foi impressionante a polêmica necessária para alertar que um neofascista era o favorito nas eleições. Pior, algumas tendências defenderam o voto nulo no segundo turno entre Lula e Bolsonaro em 2022. A decisão de neutralidade no momento “tragédia” deste 19 de novembro, a excepção da Isquierda Socialista e do MST, foi inexplicável. Declarar o voto não significava apoio político. Votar Massa contra Milei, explicando que se tratava de gesto tático, significava somente unir os revolucionários à escolha da esmagadora maioria dos melhores lutadores do povo. Votando em Massa, não seguíamos o peronismo, somente não rompíamos com os trabalhadores e oprimidos que usaram o voto contra Milei.