Como desbolsonarizar o Itamaraty

A desastrosa política internacional do governo Bolsonaro está prestes a acabar, mas o bolsonarismo continua vivo dentro do Itamaraty. O que temos que fazer para enfrentar as condições estruturais e ideológicas que geram e empoderam diplomatas como Ernesto Araújo?

foto: reprodução Jacobin Brasil

Felipe Antunes de Oliveira

 

 

É tentador colocar nas costas de Ernesto Araújo toda a culpa pelo pior período da política externa brasileira desde o início da Nova República. De fato, o idealismo periférico do ex-chanceler causou danos profundos, transformando o Brasil em um agente internacional errático e pouco confiável. A humilhante demissão de Ernesto Araújo e o fim do governo Bolsonaro aparentemente oferecem uma oportunidade de voltar aos trilhos.

Acadêmicos, jornalistas e políticos progressistas falam cada vez mais em recuperar as iniciativas de integração regional, reconstruir relações bilaterais desgastadas e retomar o protagonismo em diferentes foros internacionais. Enfim, retomar a tradicional, respeitada e estável política externa brasileira, conduzida pelo Itamaraty, essa suposta ilha de excelência no Estado brasileiro.

Infelizmente, no entanto, Ernesto Araújo representa um problema muito maior do que si próprio. O Itamaraty não foi sequestrado por um lunático, que forçou o seu neutro e competente quadro de profissionais a aderir ao olavismo. O Itamaraty criou Ernesto Araújo. Sua superficialidade intelectual, sua posição social, sua arrogância, sua subserviência ao poder e seu profundo desconhecimento e desprezo pelo país que representava infelizmente fazem de Ernesto Araújo um sintoma do bolsonarismo latente no Itamaraty. Como ele há outros, muitos dos quais colaboraram ativamente com sua desastrosa gestão. O maior risco nesse momento é condenar Ernesto Araújo e esquecer o bolsonarismo que o criou.

Assim como Bolsonaro não foi um raio em céu azul e sua ascensão deveria levar a uma introspecção sobre a latência do fascismo na sociedade brasileira, Ernesto Araújo representa o lado bolsonarista do Itamaraty, normalmente escondido sob uma densa camada de bacharelismo e retórica inócua. O desastre de sua gestão oferece uma oportunidade de repensar as bases da política externa brasileira e democratizar profundamente o Itamaraty e suas práticas.

 

Ernesto Araújo e o idealismo periférico

Há uma contradição entre os dois períodos da política externa de Bolsonaro. O caos discursivo do primeiro período, com Ernesto Araújo como chanceler, encobriu uma visão estratégica relativamente coerente, embora fundamentalmente nociva. Já o discurso polido, vazio e hipócrita do segundo período, com Carlos Alberto França como Ministro das Relações Exteriores, encobre uma ausência completa de visão estratégica, que se revela na subordinação prática do Itamaraty a interesses da família Bolsonaro e de seus aliados próximos. Ambos os períodos representam faces do bolsonarismo no Itamaraty.

Antes de nos perguntarmos como o bolsonarismo se reproduz dentro do Itamaraty, vale a pena descrever e conceitualizar brevemente a política externa bolsonarista. Ernesto Araújo começou sua gestão com um inusitado cartão de visitas. Em seu discurso de posse, o novo chanceler evocou de Fernando Pessoa a Raul Seixas, passando por Renato Russo, Clarice Lispector, Marcel Proust, um de seus seguidores no Twitter, Olavo de Carvalho e a Ave Maria em Tupi do Padre Anchieta. No que se tornaria seu estilo ao longo dos dois anos seguintes, a colagem de referências aleatórias e superficialmente citadas faz com que o discurso pareça não ter sentido ou coerência, lembrando uma associação livre de temas românticos, pseudo-filosóficos e pequeno burgueses. Durante o discurso de posse, diplomatas se olhavam atônitos no grande salão no terceiro andar do Palácio do Itamaraty, em Brasília.

Sob o entulho retórico, no entanto, é possível encontrar uma ideia central, que conecta a política externa de Araújo com a ideologia bolsonarista em geral. Para Araújo, o Brasil é um país fundamentalmente ocidental. O Itamaraty seria um dos principais guardiões de nossa identidade nacional, um lugar onde, segundo Araújo, “nós [diplomatas] convivemos com os descobridores, com Alexandre de Gusmão, José de Anchieta, com D. João VI, com os imperadores e as princesas, com os bandeirantes e os abolicionistas, com os seringueiros e garimpeiros e tropeiros que construíram essa nação”. Sempre de acordo com Araújo, infelizmente o Itamaraty teria se afastado dessa imagem da identidade nacional (que, vale a pena pontuar, é fictícia, além de patriarcal e francamente racista). A expressão mais relevante da negação da identidade nacional idealizada por Araújo seria a adesão ao “globalismo”. Nesse ponto, finalmente aparece a visão estratégica do primeiro chanceler de Bolsonaro: “Nós vamos lutar para reverter o globalismo e empurrá-lo de volta ao seu ponto de partida”.

A luta contra o globalismo é, em si mesma, um objetivo idealizado – similar, portanto, às aspirações do idealismo clássico das relações internacionais, como a defesa principista da paz entre as nações, do direito internacional e do livre comércio. O idealismo de Ernesto Araújo tem o sinal trocado, no entanto. Ele é baseado na afirmação não das virtudes da cooperação e da igualdade jurídica entre as nações, mas de identidades nacionais idealizadas, bem como da superioridade moral, material e espiritual do ocidente. Esta visão contrasta, por exemplo, com uma matriz realista – na tradição internacionalista brasileira também chamada de “pragmática” – em que a defesa do “interesse nacional”, sempre problematicamente definido, toma precedência sobre a defesa de princípios abstratos como a paz entre as nações ou a luta contra o globalismo. Contrasta ainda com uma visão materialista histórica, que coloca em primeiro plano conflitos de classe e as dinâmicas de desenvolvimento desigual e combinado como elementos definidores das relações internacionais.

O tipo específico de idealismo proposto por Ernesto Araújo em seu discurso de posse e em diversas intervenções posteriores tem uma distinta marca periférica. Nesse ponto, a contribuição teórica de Carlos Escudé é particularmente relevante para entender Ernesto Araújo. Escudé, o ideólogo da política externa implementada por Carlos Menem na Argentina na década de 1990, acreditava que as possibilidades de política externa das nações periféricas são estruturalmente limitadas por seu lugar no mundo. O realismo periférico proposto por Escudé procurava reconciliar os princípios realistas clássicos de defesa pragmática de interesse nacional com essa condição periférica. Em casos como o da Argentina, defendia Escudé, não adianta tentar implementar uma “política de poder sem poder”. O interesse nacional estaria, portanto, mais bem servido por uma política de alinhamento e subordinação à potência hegemônica (os Estados Unidos), em uma tentativa de imitar a estratégia histórica de nações como o Canadá, o Japão e a Austrália.

Similarmente, o idealismo periférico de Ernesto Araújo também reconhecia que não caberia ao Brasil a liderança na defesa do ocidente e na luta contra o globalismo. Esse papel pertenceria aos Estados Unidos e encontraria expressão na própria pessoa do ex-presidente Donald Trump. De modo contrário ao realismo periférico, no entanto, o alinhamento aos Estados Unidos foi apenas secundariamente justificado por Araújo em termos de interesse nacional. Embora ocasionalmente o primeiro ex-chanceler de Bolsonaro tenha recorrido ao lugar comum mais longevo da política externa brasileira – a saber, a promessa de “desenvolvimento” – para tentar justificar as supostas vantagens de um firme alinhamento à gestão de Donald Trump, na maior parte das vezes a subordinação explícita ao imperialismo estadunidense foi defendida com base em supostos valores comuns, como a defesa da “liberdade”. Nas palavras do ex-chanceler: “Sim, o Brasil hoje fala em liberdade através do mundo. Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”.

 

A queda de Ernesto Araújo

Os resultados do idealismo periférico de Ernesto Araújo conseguiram ser ainda piores do que os do realismo periférico de Escudé. No caso argentino, fazia certo sentido estratégico alinhar-se com o lado vencedor da Guerra Fria, embora a fé na reciprocidade estadunidense tenha se provado no mínimo inocente. No caso brasileiro, a decisão de apostar tudo em uma aliança com os Estados Unidos em um momento em que o mundo caminha decididamente para a fragmentação geopolítica e econômica foi desde o início fadada ao fracasso. Os danos causados pelo idealismo periférico foram agravados ainda mais pela ênfase na relação pessoal do presidente brasileiro com Donald Trump, uma personalidade errática e de inclinações fascistas.

Em pouco menos de dois anos, a visão estratégica de Ernesto Araújo implodiu. A derrota eleitoral de Trump e suas malfadadas manobras para invalidar os resultados das eleições deixaram evidente tanto o erro estratégico fundamental do idealismo periférico quanto a incapacidade brasileira de corrigir rapidamente seu discurso diplomático. Japão, Canadá e Austrália correram para se afastar de Trump e se aproximar de Joe Biden. Já Bolsonaro não apenas demorou para reconhecer o resultado e congratular o novo presidente, como insistiu em diversas ocasiões que as eleições americanas teriam sido fraudadas.

Após janeiro de 2021, a permanência de Ernesto Araújo como chanceler tornou-se insustentável. O estopim para a queda foi a incompetência objetiva de sua gestão no contexto da pandemia da Covid-19, quando um Itamaraty mais preocupado com o combate ao globalismo do que com a cooperação internacional em saúde e a obtenção de vacinas começou a provocar danos materiais sérios à sociedade brasileira. Pesou contra Ernesto Araújo em particular o seu antagonismo principista à China, a despeito dos interesses materiais do agronegócio brasileiro. O idealismo periférico teve assim o fim comum a diferentes matizes de idealismo. Ao chocar-se contra a realidade geopolítica e interesses materiais das classes dominantes, os grandiosos objetivos do ex-chanceler se desfizeram no ar.

Com o rápido e doloroso fracasso do idealismo periférico brasileiro, o Itamaraty aparentemente voltou ao seu tradicional pragmatismo. Ou seja, voltou a servir de modo mais ou menos eficiente aos interesses particulares dos setores que controlam o Estado. Sentado em sua cadeira, enfezado como uma criança pequena que ficou acordada até tarde demais, Ernesto Araújo viu Carlos Alberto França fazer um discurso de posse que foi praticamente a antítese do seu. Em pouco menos de 10 minutos, França falou generalidades, traçou três prioridades (saúde, economia e desenvolvimento sustentável), e fez referência apenas ao Barão do Rio Branco. Nenhuma menção ao globalismo ou à civilização ocidental. Dessa vez, a sensação entre os diplomatas era de alívio pelo retorno aos lugares-comuns do discurso diplomático brasileiro.

Mas seria o idealismo periférico de Ernesto Araújo um triste acidente histórico ou a expressão de problemas mais profundos do Itamaraty?

 

O bolsonarimo latente no Itamaraty

Em muitos sentidos, a chegada de Ernesto Araújo à posição de Ministro das Relações Exteriores foi uma tragédia. Em pelo menos um sentido foi uma sorte, no entanto. De maneira semelhante ao que ocorre com o próprio presidente Bolsonaro, a gestão de Ernesto Araújo combinou de forma única uma agenda de grande potencial destrutivo com uma inacreditável incompetência para efetivamente implementá-la. Só podemos imaginar o tamanho do dano que um hipotético Ernesto Araújo competente teria causado ao país. A má notícia é que as condições tanto para o surgimento do idealismo periférico quanto para a ascensão de pessoas tão incapazes quanto o ex-chanceler continuam latentes no Itamaraty.

Na verdade, há um bolsonarismo arraigado no Itamaraty. Enquanto não houver uma profunda reforma da política externa brasileira e da instituição responsável por sua implementação, qualquer combinação entre más ideias e péssima implementação contínua possível. Novos ernestos continuarão sendo produzidos. E talvez da próxima vez tenhamos ainda menos sorte.

A base material do bolsonarismo latente no Itamaraty se assemelha a uma grande linha de produção com quatro engrenagens articuladas entre si: elitismo sistêmico, formação continuada de baixíssimo nível, infantilização funcional permanente e falta de transparência e previsibilidade nas práticas de promoção e remoção, gerando uma série de incentivos negativos ao longo da carreira de todos os diplomatas. Claro, vários diplomatas conseguem escapar da máquina de moer sonhos, ideais e personalidades – geralmente canalizando suas capacidades criativas para atividades paralelas e explorando cada oportunidade para diminuir danos e renovar a instituição. Muitos outros, no entanto, acabam se deixando moldar, e acriticamente naturalizam e reproduzem valores socialmente retrógrados.

O elitismo sistêmico do Itamaraty revela-se no perfil socioeconômico da grande maioria dos diplomatas, bem como em históricas práticas racistas e patriarcais que continuam a ocorrer no ministério, muitas vezes de forma velada. Faltam estudos detalhados, mas quem conhece a instituição por dentro e já teve a oportunidade de ver suas muitas paredes repletas de fotos de homens brancos e ricos sabe que o Itamaraty não oferece um ambiente inclusivo para mulheres, pessoas negras, indígenas e para quem não consiga ou não queira se expressar usando os códigos culturais da elite sudestina.

A posição social dos diplomatas tem um efeito direto sobre a política externa brasileira, pois ela facilita o acesso da classe dominante, com a qual os diplomatas naturalmente se identificam, ao Estado. Basta olhar a agenda do Ministro de Estado das Relações Exteriores, do Secretário Geral ou dos Subsecretários para ver o perfil de quem é considerado um interlocutor legítimo. Repetindo uma tendência do bolsonarismo em geral, os interesses de setores privilegiados são acriticamente tomados como sendo o interesse nacional. Trata-se de uma ilusão de ótica, pois os interesses de distintos setores da classe trabalhadora sequer são ouvidos, quiçá levados em consideração. É justamente esse elitismo sistêmico que permitiu a Ernesto Araújo identificar o Itamaraty com “descobridores”, “imperadores e princesas” e “bandeirantes”. O Itamaraty jamais é percebido como a casa de escravizados, índios, trabalhadores ou seus descendentes.

Às limitações epistemológicas, éticas e políticas provenientes do elitismo sistêmico se somam os graves problemas na prática de formação continuada do Itamaraty. Aqui, as aparências podem enganar a quem olha o ministério de fora. Afinal, os diplomatas são formados pelo Instituto Rio Branco (IRBr), e precisam passar por diversos cursos ao longo da carreira para atingir o topo; entre eles, o Curso de Aperfeiçoamento de Diplomatas (CAD) e o Curso de Altos Estudos (CAE), além de treinamentos específicos para servir no exterior. Acontece que a qualidade do ensino é péssima e os cursos são encarados pelos diplomatas como enfadonhas obrigações funcionais, não como verdadeiras oportunidades de aperfeiçoamento. Semelhante ao que ocorre nas escolas superiores militares, um outro berço do bolsonarismo, não há qualquer forma de controle externo e sequer de diálogo sistêmico com a comunidade acadêmica brasileira e internacional.

O resultado é que os cursos do IRBr acabam servindo mais para auto-validação, puxa-saquismo de chefias medíocres e reprodução da cultura institucional do que para o arejamento intelectual dos diplomatas e do Itamaraty. Ernesto Araújo, por exemplo, usou parte de sua tese de CAE para elogiar a política externa do PT. Enquanto isso, debates contemporâneos nas ciências sociais brasileiras, como a questão do racismo sistêmico ou as especificidades de nossa formação social excludente passam longe dos bancos do IRBr.

Também são ignoradas as contribuições críticas que transformaram a disciplina de Relações Internacionais nas últimas décadas, incluindo debates sobre colonialidade, racismo, sexualidade, gênero, dependência e desigualdade. Diante dessas limitações, raros são os diplomatas que, após passarem por todos os cursos de formação, tenham se tornado mais críticos, criativos, ou sequer atualizados sobre a produção acadêmica em sua área de atuação. A prova última do baixo padrão de exigência do sistema interno de formação do Itamaraty é o fato de ter produzido um egresso do quilate intelectual de Ernesto Araújo.

A terceira engrenagem do bolsonarismo no Itamaraty é o que chamei de infantilização permanente. Ao contrário do que ocorre em outras partes da administração pública civil brasileira, no Itamaraty os aprovados em concurso não são tratados como adultos capazes de assumir responsabilidades, mas como treinees a serem socializados nas práticas da instituição. A condição de infantilização funcional perdura na maior parte dos casos por décadas a fio, e às vezes ao longo da carreira inteira. Mesmo ao assumirem chefias de divisão (DAS-4) ou de departamento (DAS-5), diplomatas com vinte ou trinta anos de carreira continuam a consultar as chefias antes de mandar um simples e-mail administrativo.

Reproduzindo a cultura de infantilização à qual foram submetidos, chefes normalmente esperam que seus subordinados estejam disponíveis em tempo integral para tarefas francamente banais, que poderiam ser perfeitamente realizadas por estagiários universitários. Raras são as chefias que estimulam ou mesmo toleram conversas francas sobre as linhas de ação a serem seguidas nas diferentes áreas de atuação do Itamaraty. As ideias de diplomatas mais jovens que poderiam contribuir para superar as tendências bolsonaristas internas e reconectar a política externa com as prioridades de novas gerações são assim ativamente suprimidas. Esse ambiente de silenciamento com o tempo tende a gerar tanto uma incapacidade de falar quanto uma ânsia profunda por dizer coisas, mesmo que não façam sentido. Ernesto Araújo é, novamente, um bom exemplo. Após quase três décadas de infantilização e silenciamento, o ex-chanceler estava claramente despreparado para assumir a responsabilidade de formular e articular a política externa brasileira.

A quarta e última engrenagem do bolsonarismo dentro do Itamaraty são os incentivos nefastos produzidos pelos mecanismos de remoção e promoção de diplomatas. Para quem não pertence aos quadros do Ministério das Relações Exteriores é difícil de entender a centralidade do binômio promoção e remoção. Afinal, o salário inicial já é bom, e Brasília não é um mal lugar para viver. Provavelmente a grande maioria dos trabalhadores brasileiros aceitaria sem problemas a perspectiva de ficar o resto da vida funcional em Brasília recebendo cerca de 20 a 30 salários-mínimos. Para os diplomatas, no entanto, promoção e remoção representam maneiras de remediar as frustrações da carreira. No exterior, os salários são substancialmente mais altos (tipicamente três vezes o salário no Brasil, incluindo benefícios), o que permite um estilo de vida plenamente alinhado ao elitismo estrutural do Itamaraty. Diplomatas podem assim projetar uma imagem de sucesso entre si e para suas respectivas famílias e amigos, mesmo que em muitos casos suas rotinas de trabalho se resumam a tarefas burocráticas pouco estimulantes intelectualmente.

Para piorar, tanto promoções como remoções são realizadas sem qualquer previsibilidade ou republicanismo, em processos cujas decisões são personalizadas, tomadas a portas fechadas e não precisam ser publicamente motivadas. A cultura do segredo e do privilégio é um elemento fundamental do bolsonarismo latente no Itamaraty. Para obter remoções e promoções, os diplomatas precisam se submeter às relações de poder pouco transparentes. O endosso de chefias e de colegas mais antigos é particularmente importante. Como resultado, os diplomatas têm fortes incentivos para não questionar suas chefias, não importa o quanto ruim elas possam ser. A administração de Bolsonaro e a figura de Ernesto Araújo ofereceram um teste único para o mecanismo de controle hierárquico do Itamaraty. Mesmo diante de um governo fascista e de um chanceler claramente incapaz, muitos diplomatas escolheram continuar na linha e não questionar as estruturas de poder. Como na época da ditadura, alguns diplomatas mais progressistas foram ostensivamente punidos com ostracismo, para servirem de exemplo para os demais.

 

Como desbolsonarizar o Itamaraty

O fim do idealismo periférico brasileiro foi recebido com um longo suspiro de alívio. No último ano do governo Bolsonaro, Ernesto Araújo foi ostracizado, incapaz de passar em sabatinas do Congresso para assumir o posto de Embaixador e sem força política sequer para ser nomeado para um consulado estadunidense qualquer. Seus principais colaboradores foram premiados com bons postos, no entanto.

Desde a queda de Ernesto Araújo, o Itamaraty tem se esforçado para mostrar que voltou ao normal. Em suas visitas ao Congresso Nacional, o segundo chanceler de Bolsonaro, Carlos Alberto França, conseguiu se esquivar de todos os questionamentos relevantes, usando com maestria uma mistura de bacharelismo e hipocrisia. França é a prova viva de que o bolsonarismo no Itamaraty não se resume à trágica gestão de Ernesto Araújo. Ele também se revela no esforço mais sutil de normalizar o fascismo presidencial e diminuir seus custos internacionais.

Enquanto as engrenagens do elitismo sistêmico, da péssima formação continuada, da infantilização permanente e de mecanismos nada republicanos de promoção e remoção continuarem funcionando, o bolsonarismo continuará latente no Itamaraty. Na melhor das hipóteses, com a mudança do cenário político, figuras patéticas como Ernesto Araújo talvez não sejam mais içadas ao cargo de chanceler. Bolsonaristas mais oportunistas e sofisticados, como França e outros colaboracionistas, no entanto, farão de tudo para continuar próximos ao poder, enfraquecendo qualquer iniciativa de democratização da política externa.

Felizmente, o Itamaraty não é apenas bolsonarista. Existem diplomatas comprometidas com a justiça social, com a sobrevivência do planeta, com o fim do racismo e do patriarcado. A carreira diplomática continua atraindo grandes talentos. Muitos lutam contra os incentivos negativos da instituição e não se deixam formatar. Para esses, sobreviver dentro do Itamaraty tentando diminuir os danos causados pelo bolsonarismo nos últimos quatro anos foi um ato diário de resistência.

O novo governo representa uma oportunidade histórica de superar de vez o bolsonarismo latente no Itamaraty e renovar profundamente a política externa brasileira. O elitismo deve ser confrontado por meio de políticas sistemáticas de empoderamento de mulheres e pessoas negras, bem como da decidida abertura à participação e controle social da política externa. A reforma do processo de formação continuada envolve diálogo constante com a academia e incentivos a diplomatas que busquem se aperfeiçoar além dos muros da instituição, por meio de cursos de pós-graduação em universidades brasileiras e estrangeiras. O fim da infantilização permanente passa pela valorização das novas gerações, a abolição dos títulos diplomáticos no Brasil e a dissociação entre títulos diplomáticos e funções de chefia. Finalmente, os processos de promoção e remoção devem ser inteiramente reformulados.

O caráter hierárquico e piramidal da carreira diplomática deve acabar, seguindo o padrão de outras carreiras civis, como gestores e funcionários do Banco Central e da Receita Federal. Critérios objetivos para as promoções precisam ser estabelecidos. Remoções devem ser previsíveis e motivadas com base nas habilidades de cada funcionário para cumprir as funções esperadas nos diferentes postos, em vez de serem usadas como recompensa ou punição.

Desbolsonarizar o Itamaraty deverá levar a uma renovação do nosso discurso diplomático para além dos lugares comuns atrás dos quais bolsonaristas mais sofisticados como Carlos França se escondem, em particular a eterna busca de um “desenvolvimento” que nunca chega. É fundamental, enfim, repensar as prioridades da política externa brasileira e renovar o sentido do que chamamos de “desenvolvimento” com perspectivas anticoloniais, ecológicas, feministas, anti-racistas, latino-americanistas e socialmente emancipatórias.

 

_____________________________________

Felipe Antunes de Oliveira é doutor em Relações internacionais pela University of Sussex e professor da Queen Mary University of London. Diplomata de carreira, em licença não remunerada.