Pablo Stefanoni
Via Outras Palavras
Há pouco mais de duas décadas, a Argentina explodiu em pleno ar. O presidente Fernando de la Rúa teve que renunciar e fugir de helicóptero dos telhados da Casa Rosada, em meio a uma enorme onda de protestos contra ele. A imagem da decolagem permaneceu congelada como símbolo da época e como ameaça aos seus sucessores.
Não menos importante, a revolta interclasses coincidiu com a eclosão do modelo de convertibilidade entre o peso argentino e o dólar, que garantiu durante dez anos uma estabilidade de preços inédita, ao mesmo tempo que incubava uma série de desequilíbrios econômicos e sociais que estavam condenados a explodir; isto deu origem ao famoso “corralito” bancário e a uma série de “quase-moedas” (títulos emitidos pelas províncias que circulavam com curso legal). Contudo, num sentido mais amplo, o ano de 2001 constituiu um verdadeiro acontecimento, com a sua singularidade, o seu carácter contingente e irrepetível, e os seus efeitos em termos de experiências e subjetividades. A cidade de Buenos Aires estava cheia de assembleias de cidadãos, e os piqueteros, que anos antes transformaram os bloqueios de estradas em densos espaços de resistência e sociabilidade, convergiram fugazmente com as classes médias da capital argentina.
22 anos depois de 2001, a semelhança familiar entre a agitação atual e a daquela época é surpreendente. Mas se no final dos anos 90 a esquerda cantava “se viene el estallido”, hoje, a mesma música da banda Bersuit Vergarabat que reza “se viene el estallido/ de mi guitarra/ de tu gobierno” marcou o crescimento eleitoral do libertário de extrema direita Javier Milei, após seu salto para a política em 2021.
Eu te odeio, político
O ano de 2001 funcionou como um momento de catarse generalizada – uma grande percentagem dos discursos nas assembleias de bairro foram uma espécie de libertação pessoal – com um tecido intergeracional: a geração dos anos 70 sentiu que tinha chegado finalmente o momento de reverter a derrota que a ditadura militar causou a sua “geração dizimada”, a dos anos 80 puderam experimentar que o neoliberalismo era “derrotável” e os ainda mais jovens puderam entrar na política numa situação com carga épica.
Na década de 90, uma nova identidade pós-industrial tomou forma – os piqueteros –, um novo formato de protesto – o corte de ruta –, uma nova modalidade organizacional – a assembleia – e um tipo específico de demanda – o trabalho. “A consolidação de um novo repertório”, escreveram na época Maristella Svampa e Sebastián Pereyra, “tem menos a forma de uma substituição do que de uma nova aliança e articulação entre sindicatos dissidentes, partidos – de esquerda – e desempregados, pouco a pouco reunidos sob a simbologia do piquetero” 1 . A política popular passou da fábrica para o bairro. Houve então uma certa incapacidade do peronismo em continuar a expressar movimentos populares, uma vez que estava associado às reformas neoliberais e, inclusive, às repressões que muitas vezes sofreram aqueles que bloquearam as estradas durante a década de 1990.
No nível ideológico, prevaleceu uma espécie de “momento Le Monde Diplomatique”. O apelo difuso mas eficaz ao “pós-neoliberalismo”, do qual aquela revista global francesa era uma espécie de arauto, apareceu como um guarda-chuva de múltiplas sensibilidades e movimentos que surgiram como cogumelos. Mas foi também um momento autonomista. Numa situação de forte mobilização, mas sem horizonte de ocupação do Estado, a insurreição zapatista no México ofereceu uma “saída”: “mudar o mundo sem tomar o poder”, como propõe o livro do irlandês-mexicano John Holloway, que, nos dias seguintes a dezembro de 2001, reuniu multidões na Argentina, como quando lotou a Aula Magna da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires. A ideia de uma política que “prefigurasse” a nova sociedade a partir das margens e não das instituições estatais capturou então grande parte dos imaginários de mudança e das energias militantes.
Já antes, em 1999, um grupo de estudantes tinha idealizado o “Movimento 501” para não votar nas eleições presidenciais daquele ano (na Argentina o voto é obrigatório, mas não ir às urnas pode ser justificado se estiver a mais de 500 quilômetros de distância de sua sessão eleitoral). Entre os principais organizadores deste pequeno feito estava o jovem economista Axel Kicillof, mais tarde ministro da Economia de Cristina Fernández de Kirchner e, atualmente, reeleito governador da província de Buenos Aires, a mais populosa do país.
Dois anos depois, nas eleições legislativas de 2001, a estrela foi o chamado “voto derrotado” (branco e nulo). Se há um livro que reflete, desde o título, o clima daqueles anos, é A política está em outra parte 2. Com isso, destacamentos de sociólogos dedicaram-se então a ir a essa “outra parte” e a estudar movimentos de piquete in situ nas zonas profundas da Grande Buenos Aires, mas também nas províncias petrolíferas do norte e do sul, dos camponeses, “fábricas recuperadas” autogeridas por seus trabalhadores, etc. Mas também houve outro livro, do escritor Dalmiro Sáenz, intitulado Eu te odeio, político. O livro para todos os cidadãos que não vivem da política 3 , que estava em sintonia com um mundo midiático e cultural, expressava o inconformismo dominante e até lucrava com a indústria do pessimismo político 4 .
Enquanto isso, os políticos não podiam sair às ruas sem correr o risco de serem agredidos, os deputados saíam quase clandestinamente do Congresso após as sessões, e os questionados juízes da Suprema Corte nomeados no governo de Carlos Menem (1989-1999) assistiam de suas janelas os escrachos massivos em frente às suas casas no auge dos protestos. Embora os sindicatos tenham convocado greves e planos de luta nos dias anteriores a 19 e 20 de dezembro de 2001, as mobilizações ocorreram às margens das grandes entidades sindicais. Na verdade, muitas das marchas decorreram no período da tarde/noite, após o horário de trabalho, aproveitando as temperaturas de verão daquela época do ano no hemisfério sul.
No entanto, já que Walter Benjamin como um pensador da moda hoje em dia, também é possível tentar “pentear a história [de 2001] a contrapelo”. A crise favoreceu uma convergência particular nas ruas daqueles que detestavam o capitalismo com aqueles que nele confiaram (mais uma vez) 5 , colocando o seu dinheiro nos bancos depois de “esquecerem” a crise hiperinflacionária de 1989, apenas uma década antes. Se tivermos que escolher uma imagem de 2001, talvez possamos escolher a de uma mulher de um bairro rico que, diante das câmeras de televisão, tirou um martelo da bolsa e começou a bater nas chapas metálicas que os bancos haviam colocado em portas e janelas para se protegerem da fúria dos poupadores (seus próprios clientes). Ou seja, em 2001, aqueles que nunca confiaram no neoliberalismo convergiram com aqueles que o celebraram e cujo desamparo surgia precisamente do fato de se sentirem traídos (mais uma vez); os cacerolazos e o “Que se vayan todos” contra uma “casta” que então não recebia esse nome, uniu todos num movimento aluvial e único, com uma potência também excepcional.
Mesmo assim, não deixa de ser surpreendente que nas eleições de 2003, dois candidatos que propuseram um aprofundamento do “modelo”, o ex-presidente Carlos Menem (que promoveu a dolarização da economia) e o fugaz ministro da Economia Ricardo López Murphy, promotor do “déficit zero”, ultrapassaram em conjunto os 40% dos votos. Só a fortíssima rejeição à figura de Menem, que obteve 24,4%, conseguiu que um pouco conhecido Néstor Kirchner, com apenas 22% dos votos no primeiro turno, chegasse à Presidência da Nação vindo da Santa Cruz, província no extremo sul da Argentina que governava com um estilo peronista bastante convencional. Menem finalmente desistiu do segundo turno para evitar a humilhação e Kirchner não conseguiu “estourar as urnas” em votos contra o ex-presidente, como as pesquisas previam, e ficou com seus escassos 22%.
Desta forma, o kirchnerismo emergiria da vertente desafiadora do neoliberalismo, variante do peronismo que constituiu uma verdadeira facção capaz de modificar o ethos do movimento fundado por Juan Perón na década de 1940 com um projeto de centro-esquerda. Do outro lado, uma força de centro-direita surgiria um pouco mais tarde: aquela liderada pelo ex-presidente do clube Boca Juniors e empresário, Mauricio Macri, que lançou o primeiro partido de sucesso fora do histórico sistema bipartidário. Modelada pelo guru equatoriano Jaime Durán Barba sob a premissa de que a maioria das pessoas não se interessa por política, a Proposta Republicana (PRO) assumiria uma forte carga pós-ideológica. Mas ao mesmo tempo – e à luz do contexto não deveria ser surpreendente – os kirchneristas e os macristas prometeram ao eleitorado a conquista de um “país normal”.
No caso de Kirchner, como escreveu Gabriel Vommaro, “isso significou reconstruir a autoridade do Estado, a confiança nas instituições e uma coesão social desgastada”. No regime de Macri, a normalidade seria, pelo contrário, um programa pós ou antipopulista de tipo republicano, modernizador e de “volta ao mundo” capaz de captar o “ethos do voluntariado e do empreendedorismo ancorado no mundo dos negócios e ONGs” para “trazer ao Estado a eficiência e a transparência que, numa visão encantada, prevalece nesses mundos” 6 .
País normal 1: “Ordem e progressismo”
Num de seus livros, Martín Rodríguez captou em duas palavras o significado do projeto liderado por Kirchner: ordem e progressismo, brincando com as palavras “ordem e progresso”, slogan das elites positivistas latino-americanas do século XIX 7 . Ao contrário da esquerda, que viu no “Argentinazo” de 2001 o que havia de mais próximo de uma revolução – e resgatou o seu poder produtivo – o kirchnerismo sempre leu a eclosão em termos de pura crise. A sua resposta foi então construir uma nova ordem, ancorada a um discurso progressista, mas longe do tom épico bolivariano ou “anticapitalista”. Para continuar com títulos de livros que sintetizam épocas, podemos recorrer ao da ensaísta Beatriz Sarlo, que definiu Kirchner como uma mistura de “audácia e cálculo” 8 : audácia para encarnar a “agenda 2001” e cálculo para avançar dentro do peronismo sem velhas práticas políticas asquerosas. Para construir esta “ordem e progressismo”, Néstor Kirchner tinha o terreno pavimentado pelo governo de transição de Eduardo Duhalde, que depois de vários presidentes abatidos e fugazes fez o “trabalho sujo” de desvalorizar o peso, com o seu efeito nos salários reais, e impor a ordem, que incluía atos de repressão amplamente repudiados, como os assassinatos de Maximiliano Kosteki e Darío Santillán em junho de 2002, que marcariam negativamente a sua Presidência.
Kirchner foi sem dúvida um “presidente inesperado” que, como já observamos, venceu com poucos votos e, por isso, teve que construir a sua legitimidade a partir do poder. E fez isso ao refletir sobre a identidade de um peronismo de esquerda que sempre foi minoritário no movimento e que historicamente despertou o rechaço do peronismo ortodoxo, especialmente do ramo sindical hegemonizado por uma liderança com visões corporativistas e anticomunistas. O novo mandatário desempoeirou um discurso revisionista sobre a violência política na década de 1970, reativou os julgamentos de soldados acusados de violações dos direitos humanos durante a ditadura militar (1976-1983), nomeou juízes de prestígio para o Supremo Tribunal e justificou a “juventude maravilhosa” que fizeram parte do peronismo revolucionário dos anos 60 e 70, onde ele próprio participou quando jovem. Nas palavras de Sarlo, para a maioria dos argentinos Kirchner era uma folha em branco. Mas, longe de ser uma fraqueza, essa foi a sua melhor qualidade, aquela que lhe permitiu reinventar-se.
Dessa forma, Kirchner construiu-se como um presidente progressista e colocou o peronismo nessa esteira. Foi um presidente forte porque começou a compreender que era fraco e que precisava se legitimar através da gestão, mas também através da circulação de símbolos poderosos. Desde sua posse, ele buscou fazer a diferença. No dia em que assumiu o comando, 25 de maio de 2003, ele literalmente mergulhou na multidão, quebrando os protocolos de segurança. Naquela multidão estavam “os restos dispersos de uma subjetividade de esquerda que não encontrou lugar para se sustentar” 9 . Naqueles restos dispersos estavam peronistas de esquerda que carregavam a dor infinita da derrota dos anos 70 e ex-militantes comunistas que viram a União Soviética desmoronar, que se misturaram com jovens sem experiência militante anterior que acreditavam ter visto no novo governo uma “virada da história”.
O próprio Kirchner disse em seu discurso de posse que fazia parte de “uma geração dizimada, punida com ausências dolorosas”. Mas, para dizer a verdade, o novo presidente iniciou o seu governo de uma forma bastante exploratória e moderada, apelando inicialmente para alcançar uma sensibilidade republicana generalizada nos setores médios (reforma do Supremo Tribunal de Justiça, política de direitos humanos); o kirchnerismo como o conhecemos seria construído ao longo do tempo. E, nessa construção, o “setecentismo”, como revanche geracional, era ma chave de leitura que não pode ser ignorada. Não faltaram, então, os símbolos que protagonizaram a “mudança de época”: espaço para as Mães e Avós da Praça de Maio em todos os acontecimentos; a ordem ao chefe do Exército para retirar ao vivo o retrato do ditador Jorge Rafael Videla da galeria do Colégio Militar, com Kirchner ali presente; o pagamento da dívida ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para “tornar o país independente”; o alinhamento com os governos da “maré rosa” latino-americana (embora sem incorporar o discurso do socialismo do século XXI), etc. Logo Cristina Fernández continuaria o trabalho de kirchnerização do peronismo.
São vários os momentos que marcaram a construção kirchnerista. Um deles é o confronto com o setor rural em 2008, uma derrota para o governo já presidido por Cristina Fernández que, no entanto, acabou sendo uma vitória: após o fracasso legislativo da modificação dos impostos sobre as exportações de soja, o governo iniciou uma batalha cultural que reemergiu o discurso público da velha clivagem populista de povo versus oligarquia. Setores do mundo artístico – e da cultura em geral – que foram fundamentais para a hegemonia kirchnerista participaram desta batalha cultural.
Outro passo na constituição do kirchnerismo como identidade política foi a comemoração do Bicentenário da Revolução de Maio em 2010. Foi um espetáculo massivo, pop e vanguardista, marcado pela uma estética imponente do grupo teatral Fuerza Bruta. Embora tenha havido uma visão revisionista da história nacional desde os seus primórdios, incluindo a reivindicação dos povos indígenas, o mais importante foi a forma como foi lida a história do último meio século. As Mães da Plaza de Mayo ocuparam um lugar central. “A versão é redencionista: as Mães fecham a violência do século XX e preparam a reparação dos primeiros anos do século XXI”, observa Sarlo 10 . A partir do oficialismo, a celebração será lida através do prisma dos peronistas de 17 de outubro de 1945, como a rebelião da clandestinidade do país (como alguém definiu o peronismo), a emergência plebeia…
A multidão invisível transformou-se no povo do Bicentenário – escreveu o intelectual kirchnerista Ricardo Forster – a multidão, os negros da história, os incontáveis, aqueles que clamavam desde sempre pelo reconhecimento e pela igualdade, apareceram, transformando Buenos Aires durante quatro dias numa magnífica alquimia de ágora e carnaval, de imagens monumentais desdobradas sem medir riscos estéticos pela força bruta da invenção artística e pela interrogação inquieta do passado que continua a insistir no presente.11
Mas na realidade a estética estava mais voltada para as classes médias e jovens. La Cámpora, grupo fundado por Máximo Kirchner – filho de Néstor e Cristina – atraiu novas gerações de jovens 12 . No entanto, ao contrário de outras organizações do passado, o crescimento de La Cámpora esteve ligado ao seu acesso ao Estado e aos seus recursos. Svampa identifica uma mudança no que diz respeito ao “ethos militante” que predominava em 2001. “A militância kirchnerista visa revalorizar o papel do Estado e combina uma boa dose de pragmatismo político com os clássicos apelos ao nacional-popular (que inclui a defesa do líder como expressão e condensação do projeto político)”; daí as formas verticais e até autoritárias de liderança interna 13 . Demonizado pela oposição, La Cámpora também encontrará resistência dentro do campo peronista, cujos líderes mais tradicionais o percebem como um grupo de jovens carreiristas em busca de espaços de poder, especialmente nas listas de legisladores peronistas e em instituições com grandes orçamentos de Estado. Os camporistas apresentam-se como “soldados” de Cristina Fernández e, ao mesmo tempo, como “quadros técnicos”, assumindo o papel de zelar e garantir a continuidade, e até a radicalização, do projeto, além de garantirem a “transferência geracional”. “
Um terceiro momento chave é a morte repentina de Néstor Kirchner, em 27 de outubro de 2010, e sua mitologização como o homem capaz de dar sentido aos sacrifícios e derrotas do passado e possibilitar um novo presente para o país. Foi nesse clima político que Cristina Fernández de Kirchner venceu as eleições presidenciais de 2011 com retumbantes 54% dos votos. Mas, ao contrário do momentum do Bicentenário, a economia começaria a desacelerar e novas medidas, como as restrições à compra de dólares (além da manipulação das estatísticas públicas iniciada vários anos antes), provocariam um distanciamento de setores médios e um crescimento do centro-direita.
Para além do equilíbrio das suas políticas e da opacidade na sua forma de gerir os recursos públicos (e pessoais), não há dúvida de que durante os seus três governos (2003-2015) o kirchnerismo atualizou a tradição nacional-popular no país. Foi produto e, ao mesmo tempo, encerrador do processo aberto em 2001. Ideologicamente, como sempre acontece com o peronismo, capturou o novo clima da época: o antineoliberalismo; politicamente, restaurou a autoridade do Estado e a legitimidade da figura presidencial. Uma espécie de progressismo de cima que, por um lado, selou o regresso à normalidade e, por outro, prometeu restaurar o Estado-Providência perdido.
Até 2008 predominava o discurso do “país normal”; mais tarde seria a luta da pátria contra a anti-pátria, numa chave mais ligada ao discurso bolivariano, embora a Argentina kirchnerista sempre tenha mantido um melhor funcionamento das instituições da “democracia liberal” e, em geral, do pluralismo político. Ao mesmo tempo, como escreveu o ex-ministro da Economia Matías Kulfas, no plano econômico havia “três kirchnerismos”: o do mandato de Néstor Kirchner, o do primeiro de Cristina Fernández (com Kirchner vivo, o que alguns chamaram de “duplo comando”) e, após sua morte, o de Cristina Fernández na solidão. As visões da economia mudaram junto com os contextos. Entre 2003 e 2013, o país cresceu às “taxas chinesas” (6,7% anuais), o que levou Cristina Fernández a falar da “década vencida”. O período 2003-2008 foi, com efeito, um período de expansão da indústria transformadora, de melhoria dos salários reais e de excedentes fiscais e comerciais 14 . Para a oposição, porém, foi uma “década perdida”, produto de um “vento favorável” (altos preços internacionais das commodities) que não foi aproveitado o suficiente para fugir das visões de curto prazo. Já em 2011, a situação começou a piorar e seguiu-se a desaceleração e a estagnação, e mais tarde o controle cambial: as chamadas “ações” do dólar.
No nível político, especialmente na era de Cristina, o kirchnerismo apresentou-se como a esquerda verdadeiramente existente. Até a própria Cristina Fernández de Kirchner disse em 2014: “À minha esquerda está o muro”. E, sem dúvida, o peronismo foi mais uma vez um problema (ou uma solução) para a esquerda, que teve que se posicionar contra um movimento político reinventado: ao contrário de outros populismos da região e baseado numa sensibilidade progressista, o kirchnerismo levantou a bandeira da direitos civis (casamento igualitário, Lei de Identidade de Gênero etc.) e, ao mesmo tempo, mudou o alinhamento internacional do país numa chave moderadamente anti-imperialista. Neste novo contexto, o mapa à esquerda foi transformado. E cada tradição política procurou posicionar-se num âmbito que ia da exterioridade à incorporação no bloco peronista expandido.
Mas, como destacou Pablo Touzon, o kirchnerismo introduziu outra mudança relevante no peronismo 15 . Até então, os líderes que terminaram o mandato ou foram derrotados saíram do centro da cena – foi o que aconteceu com Menem ou Duhalde. Mas o kirchnerismo construiu uma facção estável no movimento. E, a longo prazo, uma espécie de minoria intensa na sociedade: com o kirchnerismo não é suficiente, sem o kirchnerismo não é possível… É aí que residem muitos dos problemas do peronismo contemporâneo.
País normal 2: República versus populismo
“Vejo o país como um grande time”, disse Mauricio Macri em seu discurso de posse, no final de 2015. E não foi por acaso: o ex-presidente do Boca Juniors buscou se projetar como um líder de time cujo objetivo era a modernização do país. Nas palavras de Vommaro, “managers e voluntários são portadores [para o macrismo] das virtudes com as quais pode transformar o mundo público” 16 . Uma lógica consistente com a de um think tank transformado em partido – o PRO – que primeiro governou a cidade de Buenos Aires e depois, aliado à centenária União Cívica Radical (UCR), derrotou por pouco o peronista moderado Daniel Scioli. A aposta do macrismo era que se o país superasse a anomalia populista tudo estaria no caminho certo. Por isso, Macri garantiu na campanha que baixar a inflação seria extremamente fácil. E o mesmo aconteceria com a falta de investimentos. Mas embora tenha sido o primeiro presidente de uma força ideologicamente pró-mercado, a discursividade do pró-mercado era bastante “pós-ideológica” e, em grande medida, muito distante da defesa militante do encolhimento do Estado que o ministro Domingo Cavallo encarnou no anos 90. Ao mesmo tempo, ele implantou um discurso minimalista em sintonia com as novas sensibilidades sociais na era da autoajuda e do mindfulness.
Seja pela persistência da memória (negativa) do período neoliberal, seja por um tecido de organizações sociais e sindicais fortalecido durante os três governos kirchneristas, o macrismo avaliou que a correlação de forças não permitia demasiado radicalismo. Por isso, Macri optou inicialmente por um programa “gradualista” e pela manutenção das políticas sociais do kirchnerismo, como o Abono Universal para Crianças (AUH), que se somou às estreitas relações que o Ministério do Desenvolvimento Social, encabeçada por Carolina Stanley, manteve com as organizações de desempregados.
Entre as primeiras medidas “estrelas” de Macri estava a saída da “armadilha” cambial (controle cambial), bem como políticas de “normalização” na frente financeira (pagamento de dívidas a fundos abutres, etc.). “O gradualismo foi possível graças à herança econômica do kirchnerismo”, escreveu José Natanson. Embora o segundo governo de Cristina Fernández tenha sido marcado pela deterioração econômica, houve, num contexto de queda em praticamente todos os indicadores, dois fatores que se mantiveram em níveis razoáveis: emprego e dívida. Os resultados desta aposta gradualista não foram os esperados: o investimento internacional direto manteve-se nos mesmos níveis dos últimos anos do kirchnerismo, as exportações não descolaram e a fuga de divisas continuou. Mas apesar de tudo, com algumas minimedidas heterodoxas, a administração de Macri conseguiu vencer as eleições legislativas de 2017 17 . E muitos anteciparam uma reeleição segura para Macri em 2019.
Cada vez mais, a política argentina era lida como uma luta entre o Partido Conurbano de Buenos Aires (a Argentina Assistida) e o Partido Pampa Húmeda (a Argentina Produtiva); entre aqueles que vivem da política social ou do clientelismo estatal (províncias pobres no norte e algumas menos pobres no sul) e aqueles que pertencem à Argentina geradora de dólares (províncias agroindustriais no centro) 18 . Desta forma, o sistema político regressou a uma forma de bipartidarismo – agora de dupla coligação, gostam de dizer alguns cientistas políticos – que reproduzia parcialmente a antiga geografia eleitoral entre peronismo e antiperonismo.
Neste contexto, o “campo” ocupa um lugar político/simbólico de destaque desde 2008, atualizando antigas imagens nacionais, tanto aquela que se refere ao país próspero baseado na inovação e no trabalho árduo, como o oposto: uma oligarquia latifundiária que busca deter a industrialização argentina. Apoiada na economia da soja, a chamada “zona núcleo” constitui “uma extensa rede que inclui desde os portos multinacionais do rio Paraná e grandes propriedades tradicionais até os novos pools de colheita e empresas prestadoras de serviços agrícolas. Longe da imagem tradicional de proprietários de terras e trabalhadores, o campo argentino é hoje uma terra de engenheiros agrícolas, veterinários, mecânicos de máquinas agrícolas e pilotos de pulverizadores agrícolas. Mais importante ainda, “esta nova classe média semi-rural estava construindo, particularmente no seu confronto com o kirchnerismo, uma história de si mesma como o ator mais dinâmico da economia argentina, competitivo, hipertecnológico e integrado na globalização, e também desprovido de reivindicações para subsídios” 19 . Por isso, outra das grandes medidas do macrismo foi reduzir ou eliminar as “retenções” na exportação de produtos agrícolas. Não devemos esquecer que, como mencionamos, a batalha dos sojeiros, com o fechamento de estradas em diferentes partes do país, foi a mais importante no espaço de oposição durante os 12 anos de hegemonia kirchnerista e ativou uma forte solidariedade urbana dos setores médios, que saíram em massa às ruas em favor dos “produtores”, símbolo da Argentina “que trabalha” e é “salpicada” pelo Estado.
Mas o governo de Macri terminou com picos de inflação e pobreza, e um cenário muito diferente daquele que o então presidente imaginou quando assumiu o cargo e prometeu “pobreza zero”. O paradoxo foi, em qualquer caso, que o fracasso de macrista não foi causado pela mobilização popular, mas pela opinião negativa dos “mercados”. Como mostraram Nicolás Comini e José Antonio Sanahuja num artigo de 2018, os centro-direitistas como os de Macri apostavam numa “abertura ao mundo”, mas o mundo estava mudando. Por esta razão, a América Latina não encontrou as respostas favoráveis que a centro-direita esperava da sua “virada globalista” 20 . Não por acaso, Mauricio Macri apoiou Hillary Clinton contra Donald Trump em 2016, indicando que acreditava “nas relações, nas redes, não na construção de muros” e que esperava ter na Casa Branca “uma contraparte que acredita na mesma coisa”. 20 . Na verdade, o macrismo adotou parte da estética de Obama.
Mas o que parecia ser o caminho para uma reeleição segura de Macri em 2019 transformou-se num terreno lamacento e incerto. O país terminou 2018 com uma inflação acima dos 40%, o valor do dólar passou de 10 pesos para mais de 50 pesos entre 2015 e 2019 e, num contexto de recessão, a taxa de pobreza subiu para mais de 35%. E a tudo isto somou-se um questionado megacrédito do FMI de 50 bilhões de dólares, facilitado por Christine Lagarde – a então diretora da organização – como um resgate para o próprio macrismo. A promessa de um “país normal” derreteu-se num cenário de crise e queda da imagem presidencial.
Com a aproximação das eleições de 2019, Cristina Fernández de Kirchner deu um passo inesperado, cujo objetivo era principalmente unir novamente o peronismo. Escolheu como candidato o ex-chefe de gabinete de Néstor Kirchner, Alberto Fernández, e reservou para si a vice-presidência. Até recentemente, Fernández era considerado uma espécie de traidor nas fileiras kirchneristas, uma vez que se distanciou da ex-presidente e não poupou epítetos contra a sua gestão. Até o kirchnerismo o acusou publicamente de ser lobista da Repsol e operador do grupo de mídia Clarín. Mas nos últimos tempos, a ex-mandatária o “anistiou” e ambos iniciaram um processo de reaproximação pessoal e política. A mudança funcionou. Possivelmente, mais graças ao fracasso macrista do que à competência estratégica de Cristina Fernández de Kirchner, embora a sua saída do centro do tabuleiro político tenha sido sem dúvida hábil: conseguiu reduzir a animosidade contra ela e apresentar uma candidatura moderada capaz de atrair votos insatisfeitos com a gestão de Macri e, insistimos, unificar o peronismo (incluiu, por exemplo, o rebelde Sergio Massa, que mais tarde foi eleito presidente da Câmara dos Deputados).
Em 27 de outubro de 2019, a Frente de Todos, novo nome do espaço peronista ampliado, obteve duas vitórias retumbantes: Axel Kicillof derrotou a governadora María Eugenia Vidal, figura proeminente do PRO, e Alberto Fernández com mais de 50% do votos e foi eleito presidente, sem necessidade de segundo turno, com mais de 48%. No entanto, Macri reduziu a diferença em relação ao seu fracasso nas eleições primárias e sua sobrevivência política foi garantida.
País anormal: caímos, levantamos
Se o macrismo tomou posse denunciando o “pesado legado” que o kirchnerismo lhe deixou, Alberto Fernández iniciou seu governo lembrando o que Mauricio Macri lhe deixou, e seus técnicos ficaram acordados até tarde com os vencimentos das faturas da dívida externa. Mais do que uma retórica sobre um país normal, Fernández apelou para a epopeia de um país que cai mas levanta, uma e outra vez. A pandemia cancelaria qualquer aparência de normalidade durante o seu mandato. Com uma boa gestão da comunicação no início, o governo sofreria posteriormente uma série de reveses políticos (“vacinação VIP”, fechamento quase indefinido de escolas, comemoração do aniversário da primeira-dama na residência oficial em plena quarentena), somados a números macroeconômicos agravados pela covid-19.
Enquanto isso, a oposição de centro-direita estava dividida entre uma ala mais moderada representada pelo chefe de governo da Cidade Autônoma de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta (os “pombos”), e uma ala mais radicalizada encarnada pela ex-ministra da Segurança e presidente da pró Patricia Bullrich (os “falcões”), com Macri mais próximo deste último. Na verdade, a ala dura saiu diversas vezes às ruas contra as medidas anticovid do governo com as bandeiras da “Liberdade” e da “República”.
O tema mais quente do governo de Alberto Fernández foi a assinatura de um acordo com o FMI para renegociar a dívida herdada, cuja negociação foi levada a cabo pelo então ministro da Economia, Martín Guzmán. O kirchnerismo vinha se distanciando de qualquer solução acordada com o Fundo. E as divergências entre o presidente e o seu vice foram a marca de um governo que nunca conseguiu decolar e que viu muitos dos números macroeconômicos piorarem, principalmente a inflação, que chegaria a 140% ano a ano. O papel de Alberto Fernández acabou por se confundir ao extremo, enquanto o kirchnerismo mais uma vez confirmou que era uma grande minoria, e, embora muito grande, sem a capacidade hegemônica do passado. Foi esse impasse que abriu as portas ao centrista e ultrapragmático Sergio Massa como candidato à unidade peronista em 2023.
Alejandro Galliano sustenta que, afinal, os argentinos nutrem “o desejo obscuro de uma explosão que resolva os problemas econômicos num piscar de olhos”, uma espécie de “catastrofismo optimista” 22 . O salto para a política de Javier Milei – que em apenas dois anos derrubou a centro-direita e passou dos estúdios de televisão para a Casa Rosada, com um discurso “anarco-capitalista”, uma crítica furiosa à “casta política” e uma motosserra na mão – expressou uma espécie de “retorno dos reprimidos” de 2001 e aquela vontade de explodir; uma nova versão de “Eu te odeio, político” de Dalmiro Sáenz. Mas se em 2001 a indignação no Ocidente rimava com críticas ao neoliberalismo, hoje conecta-se com diferentes expressões das “direitas alternativos”. E o mesmo aconteceu na Argentina, sob uma curiosa versão “paleolibertária” – como é chamada nos Estados Unidos 23 –. A vitória de Milei, aliado do ex-presidente Macri, anuncia uma reconfiguração da direita argentina e um cenário político incerto – e possivelmente convulsivo.
Notas:
(1) M. Svampa y S. Pereyra: Entre la ruta y el barrio. La experiencia de las organizaciones piqueteras, Biblos, Buenos Aires, 2003, p. 23.
(2) Hernán López Echagüe: La política está en otra parte. Viaje al interior de los nuevos movimientos sociales, Norma, Buenos Aires, 2002.
(3) Planeta, Buenos Aires, 2001.
(4) Eduardo Minutella: «El año que votamos a Clemente» en Panamá, 1/8/2021.
(5) Martín Rodríguez: «Última visita al 2001, ese museo de grandes novedades» en elDiarioAR, 5/12/2021.
(6) G. Vommaro: «‘Unir a los argentinos’. El proyecto de ‘país normal’ de la nueva centroderecha en Argentina» en Nueva Sociedad No 261, 1-2/ 2016, disponible en www.nuso.org.
(7) M. Rodríguez: Orden y progresismo. Los años kirchneristas, Emecé, Buenos Aires, 2014.
(8) B. Sarlo: La audacia y el cálculo. Néstor Kirchner 2003-2010, Sudamericana, Buenos Aires, 2011.
(9) Ibíd., p. 224.
(10) Ibíd.
(11) R. Forster: «El pueblo del Bicentenario» en Página/12, 30/5/2010.
(12) El nombre refiere a Héctor J. Cámpora, fugaz presidente en 1973 con el apoyo del peronismo de izquierda.
(13) M. Svampa: «Argentina, una década después. Del ‘que se vayan todos’ a la exacerbación de lo nacional-popular» en Nueva Sociedad No 235, 9-10/2011, disponible en nuso.org.
(14) M. Kulfas: Los tres kirchnerismos. Una historia de la economía argentina 2003-2015, Siglo XXI Editores, Buenos Aires, 2019.
(15) P. Touzon: «Ganar y perder en el nuevo peronismo» en El País, 15/11/2021.
(16) G. Vommaro: ob. cit.
(17) J. Natanson: «Mauricio Macri en su ratonera. El fin de la utopía gradualista» en Nueva Sociedad No 276, 7-8/2018, disponible en nuso.org.
(18) M. Rodríguez: «Última visita al 2001, ese museo de grandes novedades», cit.
(19) J. Natanson: ob. cit.
(20) N. Comini y J.A. Sanahuja: «Las nuevas derechas latinoamericanas frente a una globalización en crisis» en Nueva Sociedad No 275, 5-6/2018, disponible en nuso.org.
(21) «Macri apoya a Hillary» en La Política Online, 10/8/2016.
(22) A. Galliano: «El tiempo dislocado» en elDiarioAR, 11/12/2021.
(23) Ver P. Stefanoni: «Paleolibertarismo a la criolla» en elDiarioAR, 3/10/2023.