Crise da democracia ou crise do capitalismo?

Por Ezequiel Ipar e Lucia Wegelin

Durante os últimos anos, houve um aumento da presença de correntes ideológicas hostis à democracia. A direita encabeça uma rebelião contra a igualdade que, paradoxalmente, ao invés de desprezar seu valor, tenta se apropriar dele.

Faz algum tempo que se fala sobre “deterioração da democracia”, fazendo referência com isso a uma espécie de desafeição democrática ou inclusive a um crescente rechaço da democracia por parte da cidadania. Esta subestimação do democrático é abordada, em geral, longe da pergunta por suas causas econômicas estruturais ou por sua dimensão histórica. Pelo contrário, é examinada a partir da apresentação e interpretação de estudos de opinião pública que ilustram as sequências mais superficiais.

Que há registros que mostram um crescente desinteresse pela democracia é algo evidente. Também existem dados – mais preocupantes e contrastantes com resultados eleitorais – que dão conta da consolidação de tendências abertamente antidemocráticas, fundamentalmente durante o período posterior à crise global de 2008.

Quando analisamos mais detidamente a aprovação explícita da democracia (que nos Estados Unidos ou na Argentina alcança níveis muito altos por diferentes motivos históricos), observamos que esses mesmos estudos de opinião pública revelam, por sua vez, porcentagens elevadas de cidadãos que, em determinadas circunstâncias, justificariam um golpe militar (nos EUA estes representam 24,6% da população e na Argentina, 30,2% em 2018). Isso contradiz a ideia de uma suposta adesão homogênea aos “valores da democracia”.

Como entender a presença de correntes ideológicas que atraem uma parte importante da população a posições que debilitam essa forma política do Estado, a qual em teoria defende seus direitos fundamentais e sua capacidade para decidir sobre seu futuro? De que maneiras particulares a democracia entra em crise para a cidadania?

Há leituras que identificam a crise contemporânea da democracia com o sintoma da polarização política. Sugere-se, assim, que estamos diante de um despertar de paixões políticas obscuras que conduziram a cidadania a sair das trilhas “normais” da autorregulação que se estendem entre as democracias liberais e as economias de mercado. Outras versões da mesma explicação costumam considerar a ideia de uma deterioração da cultura política da região, que se revelaria em sua forma autêntica nos contextos de crise.

Quando se tenta ir um pouco mais além da superfície do fenômeno, aparecem estudos e opiniões que falam das frustrações identitárias diante do caráter irrefreável do multiculturalismo e dos valores emancipatórios ou da difícil situação que enfrentam os trabalhadores com baixas qualificações educativas para se adaptar às lógicas laborais e de reconhecimento social da globalização. Se revisamos estas interpretações, vemos que é difícil decidir se nos encontramos frente a uma causa real do desencantamento com a democracia ou se na verdade nos topamos com uma constelação de efeitos político-ideológicos de um processo que ainda não terminamos de compreender.

Em qualquer caso, uma das grandes falhas de muitas das leituras sobre o mal-estar contemporâneo com a democracia consiste em homogeneizar ao extremo a instância da determinação das posições políticas, fazendo valer para cada sujeito uma única posição verdadeira, que simplesmente é apresentada e desenvolvida, depois, no espaço político. A leitura cria, assim, um cidadão ideal, autocentrado ao redor de um motivo e um interesse únicos, que se transforma logo na razão de um desencanto com a democracia exageradamente idealizada.

Por esse caminho, o que suprime as explicações e os modelos é precisamente o que hoje resulta mais importante para pensar a crise das democracias na cidadania: as contradições no sujeito político e o caráter paradoxal de muitas das ações dos diferentes grupos e classes sociais. Entre as primeiras, cabe destacar as contradições que gera o princípio igualitário da democracia. Entre as segundas, deve-se utilizar os modos paradoxais nos quais se interpretam – graças à extraordinária sobrevivência de uma série de mitos da ideologia neoliberal – as desigualdades sociais e as lógicas de exploração do capitalismo contemporâneo. Na experiência e no conhecimento dessas contradições e paradoxos joga-se a possibilidade (ou a impossibilidade) de pensar, por trás da crise da democracia, a contundência da crise do capitalismo.

Dialética da igualdade

Se se trata de pensar a rearticulação da direita a nível regional, há um fato que não pode passar batido. Logo após os anos da confluência de governos progressistas, as direitas latino-americanas mostraram (e seguem mostrando) uma habilidade nada desprezível para explorar as contradições das classes populares. E é que, por meio da ideia de “igualdade”, conseguiram canaliza-as e articula-las ideologicamente em torno a projetos políticos de direita.

As diferenças nacionais são vastas, resultando-se impossível reunir processos políticos díspares (desde Trump a Pinera, passando por Bolsonaro, Macri, Lenin Moreno, Lacalle Pou e Anez) no marco de uma explicação única. Todavia, é possível dizer que todos eles contam com um mesmo êxito político-ideológico: articular os discursos anti-igualitários que cresciam como críticas aos processos progressistas.

No exame desta estratégia política, que deveria ser chamada “rebelião contra a igualdade”, devemos colocar especial atenção no seguinte: trata-se de uma estratégia que não busca expressar de modo manifesto um simples rechaço a igualdade em nome de algum outro valor prioritário. Pelo contrário, o rechaço assenta suas bases sobre alguma forma – mais ou menos imaginária – de igualdade que se convoca a uma cruzada contra outras igualdades denunciadas como falsas.

Este fenômeno ideológico forma parte da reação autoritária que a direita conseguiu articular com diferentes alianças e ferramentas políticas em cada país nos últimos anos, colocando em cena uma erosão do princípio inclusivo das democracias da região.

O presente da democracia na América Latina não pode ser entendido sem se observar o substrato ideológico anti-igualitário que aparece, por exemplo, nas posições contrárias ao gasto dos governos nacionais em políticas de inclusão social dos mais pobres. Dos dados apresentados no gráfico 1, depreende-se que, em média, 24,5% dos entrevistados na Bolívia, Chile, Brasil e Argentina encontram-se (com distintos graus de intensidade) em desacordo com o gasto social em sociedades profundamente desiguais e com níveis de pobreza em crescimento nos últimos anos.

Estas posições sobre o papel ativo do Estado para combater a pobreza (com distintos graus de acordo e desacordo em cada país) devem ser interpretadas em relação com outras representações sobre a igualdade. É nessa passagem, nessa articulação, onde opera a ideologia de direita. Nos países onde a aprovação as políticas estatais para combater a pobreza e alta (Brasil e Chile), também é alta a adesão a outra ideia de igualdade, expressa no gráfico 2: a imagem mítica de uma igualdade de possibilidades no mercado laboral, em disponibilidade para todos, que pode logo ser usada dentro da dialética da igualdade como justificativa para a oposição neoliberal a intervenção e/ou redistribuição exercida pelo Estado.

É esta dialética da igualdade o que devemos interrogar para pôr em questão que modelos de igualdade estão em disputa no campo ideológico contemporâneo e para desvendar, também, que critérios de justiça se desprendem de cada reivindicação que se faz no espaço político em nome da igualdade e que relação guardam entre si as diferentes representações em disputa.

Podemos ensaiar algumas respostas preliminares a essas perguntas. É possível identificar três grandes narrativas dessa “rebelião contra a igualdade” que exploram o próprio significado interno da aspiração igualitária. Em primeiro lugar, uma narrativa que, embora diga aceitar e reconhecer um papel do Estado na produção de igualdade de oportunidades, critica a implementação das políticas de intervenção e redistribuição.

A segunda estratégia consiste em criticar a intervenção estatal e o uso de recursos públicos para combater as desigualdades a partir de uma identificação com a justiça de mercado, que seria a que em teoria produz verdadeiras regras de jogo igualitárias.

Finalmente, uma terceira posição critica qualquer mecanismo redistributivo (fiscal, regulatório) a partir da reivindicação do igualitarismo do esforço, que seria o único capaz de garantir uma simetria transparente entre a contribuição e o que toma cada um do trabalho socialmente útil.

Trata-se de três tramas que aparecem entrelaçadas nos discursos, associadas a uma série de mitos que se repetem na hora de justificar a oposição às ajudas sociais que o Estado financia e sobre as que a sociedade pode decidir democraticamente. E é nessa última possibilidade, que esta ideologia ataca e aponta para neutralizar, a que explica o caráter elusivo da deterioração da valorização da democracia na cidadania.

A teoria neoliberal da mais-valia

A operação ideológica que utiliza a ideia de igualdade contra as políticas igualitárias se completa, na atualidade, com algo que chamaremos “teoria neoliberal da mais-valia”, que inverte (com e sem ironia) a teoria de Marx. Vejamos, para finalizar, uma aplicação típica dessa teoria em seu uso massivo. O diálogo que citamos a continuação se deu em uma discussão que levantamos fazendo pesquisa qualitativa na Argentina:

Moderador: Por que você acredita que as pessoas aceitam o que vocês chamam de “a cultura dos subsídios”?

P1: eu acho que são pessoas mais acomodadas, acredito que não enviem currículos. Engravidam para cobrar coisas, também. Tenho 32 anos e esta é a primeira vez na vida que me deram o IFE (Ingresso Familiar de Emergência). Nunca me pagaram nada. Eu conheço vizinhos, familiares que entre o casal chegam a ganhar 100 mil pesos; cada um tem seus planos e por casal ganham cerca de 100 mil pesos e não trabalham. Você fica como... Ninguém vai tirar isso deles, e assim.

Moderador: E que sentimento te causa descobrir isso?

P1: Sinto uma raiva... um incômodo. Porque eu sempre trabalhei e nunca tive ajuda de ninguém. Do governo, nada: nem um plano, nem um cartão para comprar mercadoria, nada de nada. Recentemente, que pedi o IFE, me deram: um milagre. Mas se não, não.

P2: Para mim, o ideal seria eleger e pensar bem a quem dão cada subsídio. Porque, como dizia P1, você soma e soma e soma e termina sem trabalhar, estudando na sua casa, com ar condicionado, com a Hilux... E pra quem trabalha custa muito.

A imagem mítica “dos que vivem do Estado” e vão cobrar suas prestações sociais em caminhonetes 4x4 permite explicar por que a redistribuição estatal pode ser vivida como um mecanismo que produz desigualdade. Mas não apenas isso: nessa representação fica claro, ademais, uma denúncia. A denúncia do pobre e do próximo que “pode viver sem trabalhar” (mais além de se essa possibilidade se realiza efetivamente ou não). É daí que se produz um distanciamento contínuo até a justificação ou a demanda de violência sobre o corpo desse outro que impede a realização da igualdade abstrata do esforço.

Tanto em termos teóricos como políticos, refletir sobre a sobrevivência desses mitos é fundamental. Como sobrevivem as representações tantas vezes desmentidas na experiência? Que grau de compromisso tem os sujeitos com esses mitos? Se acreditam, honestamente, nessas ideias que colocam os pobres como os “grandes exploradores” das sociedades ou, na verdade, o que vemos não é mais que uma crença-refúgio, a qual se adere sem convicção, simplesmente para não incomodar os poderosos?

Acreditar que todos os desempregados poderiam conseguir trabalhar se assim lhes propusessem implica acreditar que toda a população poderia seguir vivendo sob o domínio das regras do capitalismo atual, ainda quando a falsidade contida nessa crença já tenha sido demonstrada. A ideologia, nesse caso, não funciona escondendo o que realmente acontece, mas sim transformando os fracassos estruturais do sistema econômico em fracassos individuais de seus membros.

Em qualquer caso, no nosso tempo tem crescido essas contradições e se ramificaram esses combates paradoxais entre os debaixo, induzidos pela ideologia neoliberal. Esses mitos impõem aos sujeitos populares grandes desafios na sua vida social ordinária porque os submetem a imperativos contraditórios: preocupe-se com a pobreza, mas denuncie ativamente o pobre que não se esforça de forma suficiente; não aceite sem protestar o crescimento da desigualdade social, mas não se esqueça de controlar o montante das ajudas sociais que o seu vizinho recebe porque ali reside a fonte dessa desigualdade.

Escapar dessas armadilhas das mitologias neoliberais, que fazem com que homens e mulheres lutem a favor do sistema que os explora como se estivessem lutando contra a exploração, não é tão fácil como parece.