Sofia Scasserra
Originalmente publicado em Revista Anfíbia
Tradução de Rôney Rodrigues para o portal Outras Palavras
Avança, na OMC, acordo que sujeita Estados e sociedades aos algoritmos das Big Techs e ao “livre” comércio de dados. Nova ameaça colonialista reduz países do Sul a produtores de matérias primas, num setor central para a economia do século XXI
Desde 1998 estamos envolvidos no (mal)chamado programa de comércio eletrônico ou, como recentemente começou a ser chamado, de economia digital. O projeto materializou-se em 2017 na negociação de um Acordo sobre Comércio Eletrônio entre 88 vários países que decidiram fazer o que no jargão se chama de “iniciativa de declaração conjunta”. O texto avança OMC (Organização Mundial do Comércio) e, se assinado, será vinculativo e executável para todos os membros.
Poucos sabem disso em detalhes. Permanece opaco por muitos atores políticos, especialistas em tecnologia, movimentos sociais e formuladores de políticas públicas. E representa, em suma, um verdadeiro problema para regular a indústria digital, para gerar uma inserção inteligente da Argentina nas cadeias globais de valor de produtos baseados em inteligência artificial e para garantir que a tecnologia esteja a serviço da sociedade com padrões verificáveis.
A matéria-prima
Para que algo seja matéria-deve existir uma indústria que lhe dê valor e o torne vendável de forma massiva no mercado. Os dados, então, são os principais produtos da indústria digital. Mas do que falamos quando falamos da indústria digital? Num processo industrial, uma matéria-prima heterogênea e dissimilar entra em uma fábrica, é processada até a obtenção de um produto homogêneo e idêntico, e são realizados controles de qualidade para que possa ser colocada de forma massiva no mercado. Este processo geral é aplicável a um pano, a um litro de óleo e até a um carro.
Os dados, nesse caso, entram na fábrica algorítmica: um maquinário treinado para transformá-los em informações facilmente vendáveis e muito valiosas para o mercado. Os controles de qualidade nada mais são do que o treinamento que lhes damos através da internet. Todos os dados que geramos tornam-se informações valiosas para as empresas: elas os utilizam para construir nossos perfis como consumidores. Quando aceitamos ou rejeitamos ofertas, quando dizemos que uma tradução está mal feita ou quando simplesmente ignoramos uma sugestão de publicação, estamos ajudando a verificar se as previsões feitas a nosso respeito são verdadeiras ou não. Depois que essas grandes empresas das indústrias digitais verificam as informações, elas as vendem no mercado para empresas menores que pagam para poder anunciar aos consumidores que desejam comprar seus produtos.
Esta indústria digital pode ser replicada nas mais diversas áreas: desde campanhas políticas, passando pela produção e logística de produtos, até à otimização na gestão dos trabalhadores. Estamos, cada vez mais, imersos nesta enorme fábrica de informações sobre quem somos e sobre as nossas relações humanas.
As controvérsias em nível global, porém, não esperaram. Embora possa ser muito útil para a economia e muito confortável em alguns aspectos, os abusos e o enorme poder concedido a muitas empresas tecnológicas deram origem a debates sobre a sua regulamentação. Deveríamos deixar escândalos como o Cambridge Analytica acontecerem sem quaisquer consequências? É lícito que a engenharia do nosso comportamento acabe matando uma menina de 14 anos?
Nesse sentido, diversas instâncias reguladoras são discutidas na ONU através, por exemplo, do Pacto Digital Global, iniciativa que busca lançar as bases para o que se espera do futuro digital das nações, emitindo princípios que os Estados devem seguir ao regular e desenhar de políticas públicas. Mas há uma agenda regulatória que vem avançando de forma crescente há alguns anos e que já teve avanços em acordos plurilaterais entre duas ou mais nações: a agenda de livre comércio na economia digital.
O acordo
O acordo de economia digital tem muitas partes e mudanças dependendo se está dentro da OMC ou num acordo bilateral entre países. Existem vários limites, definições e artigos, mas os artigos básicos e seus efeitos permanecem de negociação em negociação. O seu objetivo é liberalizar a cadeia produtiva, parte por parte, tentando fazer com que os grandes players da indústria digital percam concorrentes e se estabeleçam como donos dos monopólios que geram maior valor acrescentado na economia.
O documento estabelece a livre mobilidade dos dados: as empresas têm a possibilidade de levar toda a informação recolhida para onde quiserem, impedindo o acesso dos Estados e proibindo requisitos de localização ou processamento. Os dados são o que a economia chama de bens “não rivais”, aqueles que mais de uma pessoa pode consumir ao mesmo tempo sem que isso implique o seu esgotamento. Se bebo um copo de água ele acaba instantaneamente, mas o mesmo não acontece quando subo num trem, vejo um quadro num museu ou faço uma aula: são bens e serviços que posso consumir com outras pessoas e o quanto mais os consumimos, mais nos beneficiamos como sociedade.
A mesma base de dados pode, então, ser utilizada para ganhos empresariais, para conceber políticas públicas, para pesquisa acadêmica, para compreender processos demográficos ou para conceber novas ferramentas para comunidades específicas. Concentrar estes dados em poucas mãos e limitar o seu acesso equivaleria a construir um trem para uso de apenas uma pessoa, algo que claramente não faz sentido. Se acrescentarmos a isto que a maior parte dos dados são armazenados em paraísos fiscais para escapar das mãos dos reguladores e das comunidades que os geraram, é possível perceber a intenção monopolista desta captura de valor.
O acordo também estabelece que os dados podem sair da fronteira livres de taxas alfandegárias. Ou seja, o bem mais valioso atualmente nas economias pode ser extraído por pessoas ou empresas estrangeiras sem deixar rendimentos para a população que o gerou. Igual à extração de prata de Potosí: extrativismo de matéria-prima sem qualquer benefício para o território que a possui.
Outro dos seus artigos determina que um Estado não pode exigir que uma empresa tenha acesso aos algoritmos e ao seu código fonte associado (ou seja, às instruções executadas pelo algoritmo escrito na linguagem de programação específica) para auditar ou transferir tecnologia. Uma proposta não menos controversa. O perigo de um sistema automatizado desenvolvido com preconceitos discriminatórios decidir sobre nossas vidas já está documentado em livros, artigos acadêmicos e campanhas de divulgação. A Liga da Justiça Algorítmica foi criada para lutar contra isso.
Como se não bastasse, o acordo de livre comércio na economia digital tem outras pérolas. Propõe-se isentar as plataformas da responsabilidade pelos conteúdos que publicam. Num mundo onde se debate o impacto das notícias falsas na democracia ou da venda de conteúdos de pedofilia nas redes sociais, isto torna-se cada vez mais problemático. Todas estas questões devem ser debatidas por especialistas para alcançar urgentemente uma regulamentação que evite os efeitos nocivos deste conteúdo e a sua circulação nas redes. A assinatura do acordo vai na direção oposta.
Salve-se quem puder
Hoje existe um discurso hegemônico […] que diz que aqueles que estudam programação e trabalham para o Vale do Silício exportando serviços de informática não só serão salvos, mas levarão a região a ser o gigante que sempre sonhou. Não estaremos exportando a commodity da hora humana do programador para que ele possa entrar no mercado numa tecnologia estrangeira como, por exemplo, um telefone celular? […] O acordo de economia digital limita o acesso aos dados e restringe a oportunidade de debater como regular a “fábrica algorítmica” das indústrias digitais com o objetivo de avançar para uma sociedade mais humana e com diversas tecnologias no mercado internacional.
Em outubro de 2023, o governo de Joe Biden retirou parte do projeto que havia apresentado para negociação anos atrás: os artigos que decidiram reconsiderar são a proibição da auditoria algorítmica e a livre mobilidade de dados. Até o império tecnológico que são os Estados Unidos percebeu o grande problema que estes pontos implicavam. Embora o acordo cambaleie na OMC, estas regulamentações avançam noutros acordos de comércio livre.
É por esta razão que organizações da sociedade civil que defendem os direitos digitais na região, ONGs especializadas em questões de livre comércio, entre outras, assinaram uma carta pedindo aos Estados que se retirassem da negociação e reconsiderassem, primeiro, quais são as regulamentações nacionais necessárias para criar espaços regulatórios que conduzam à inovação e ao desenvolvimento tecnológico regional. A reunião ministerial da OMC que acontecerá em Abu Dhabi de 26 a 29 de fevereiro deste ano busca avançar na negociação e colocar o projeto de volta na mesa, garantindo que os 88 países que dele fazem parte cheguem a um acordo.
Existe um caminho possível, e parece ser o de criar tecnologias com elevado valor acrescentado, qualidade e padrões globais, novas e inteligentes. Este acordo empurra na direção oposta a esses objetivos. Esta não é a primeira vez que alguns burocratas na Suíça – que entendem muito sobre comércio liberal, mas pouco sobre economias mais humanas – negociam acordos de comércio livre para decidir o destino da região. Temos muito a oferecer no mercado global. Não vamos permitir novos saques. Não sejamos Potosí novamente.