Dardot: “Apostemos na

memória do futuro

Por Pierre Dardot em entrevista a Sarah Babiker, no El Salto | Tradução: Rôney Rodrigues

Nada está perdido, aponta filósofo. Com imaginação política, as ruas mostram saídas à subjetividade neoliberal. Mas insistir na lógica de consensos, como faz Boric no Chile, aprisiona ao eterno presente. É uma lição para outras democracias

Entre a análise da pulsão revolucionária e a razão neoliberal que a engana e sufoca, encontra-se a obra do filósofo e professor Pierre Dardot (Paris, 1952). Este especialista em Hegel e Marx, autor de obras como Comum Ensaio sobre revolução no século XXI e O ser neoliberal, ambos em parceria com Christian Lavan, busca mostrar ferramentas para a compreensão de um mundo que avança (e retrocede) muito rápido. Nesta entrevista, ele fala sobre seu último livro A memória do futuro. Chile 2019-2022, contando a história recente do país sul-americano com um misto de serenidade e entusiasmo – e do ciclo vertiginoso em que o mundo assistiu os movimentos sociais passarem do entusiasmo à decepção em apenas três anos.

Dardot explica que em sua decisão de escrever sobre o ciclo de ruptura e fechamento que ocorreu no Chile, duas dimensões confluíram: por um lado, sua própria experiência pessoal de um processo de imaginação política que o cativou e, por outro, um interesse intelectual e político pelo que estava acontecendo.

Sarah Babiker  Você desembarcou no Chile durante a rebelião. Em que aquilo que você viveu lá o desafiou?


Pierre Dardot – Fui ao Chile pela primeira vez em 2016 para uma conferência na Faculdade de Ciências Sociais de Santiago. E depois voltei em 2018 e em 2019, nesse ano desembarquei no país no início de novembro, e a rebelião havia começado em 18 de outubro. Digamos que cheguei na hora certa e participei dos protestos em massa. Desde os tempos de jovem ativista trotskista, quando tinha 17, 20 anos, nunca tinha visto nada igual. Foi uma revolução: centenas de milhares de pessoas em mobilizações massivas e, ao mesmo tempo, muito tensas no confronto com os carabineiros. Aquilo me impressionou muito: era tudo muito violento. Eu estava na manifestação em que deixaram Gustavo Gatica cego, os carabineiros apontavam muito conscientemente para os olhos, da mesma forma que muitas vezes apontavam para os órgãos genitais das mulheres.

Eu estava naquela manifestação e outra coisa me chamou a atenção. Ao mesmo tempo que acontecia toda essa violência, havia uma alegria extraordinária de estar juntos. Era possível escutar orquestras nas marchas, algo que eu nunca tinha visto na França. Não eram vans com equipamentos de som repetindo slogans; não, eram verdadeiras orquestras. Era possível sentir um poder coletivo, uma incrível energia coletiva. Vou me lembrar disso por toda a minha vida: as bandeiras feministas, as bandeiras mapuche, em todos os lugares. Por isso, a capa do livro traz uma foto com a bandeira mapuche, onipresente nos protestos. O que não havia, e isso também chama a atenção, eram bandeiras de partidos políticos.

Essas manifestações me marcarão pelo resto da vida. Mais tarde fui a uma pequena cidade do interior, chamada Osorno, no sul do Chile, porque tinha amigos universitários lá, após participar de uma mesa redonda sobre a nova Constituição; fui à praça da cidade e lá estavam pessoas dando aulas, era o que eles chamava de universidade da rua: historiadores do direito falaram com as pessoas sobre a história do direito no Chile.

E isso não foi uma coisa de poucas semanas.


Essa perseverança também me impressionou. Em 15 de novembro se chegou a um acordo entre os partidos políticos proposto pelo então presidente Piñera — um mau acordo na minha opinião. Gabriel Boric o assinou, mas em a título pessoal, não em nome do seu então partido, a Convergência Social. Apesar da assinatura desse acordo, o movimento continuou. Havia manifestações o tempo todo, sextas-feiras eram dias de manifestação, mesmo durante a pandemia. Achei extraordinária a persistência do movimento.

Eu havia voltado para Paris, mas continuei a documentar os protestos, lendo artigos, conversando com meus amigos chilenos. E fiquei na expectativa quando foi aberto o processo constitucional, o referendo de 25 de outubro de 2020. E logo vieram as eleições para a Assembleia Constituinte. Isso foi em maio de 2021. Depois veio a abertura do processo constituinte com a primeira reunião da Convenção Constituinte. Isso foi em julho de 2021. Eu acompanhei tudo isso.

Para além da experiência do rebelião chilena, meu interesse relaciona-se com a minha história pessoal. Eu era um jovem ativista em 1973, quando Pinochet deu seu golpe. E, claro, isso me impressionou porque eu tinha acompanhado o movimento da Unidade Popular e fiquei completamente atordoado com o golpe. Mas agora, para mim, o interesse político e intelectual é que algumas lições de tudo isso possam ser tiradas para toda a esquerda. Aponto especialmente para a vinculação dos movimentos sociais com o processo constituinte, algo que considero absolutamente formidável. Pareceu-me que pela primeira vez, ou pelo menos uma das primeiras vezes na América Latina, havia uma revolução acontecendo em nome da democracia, no sentido mais radical do termo, não do populismo autoritário, nem do globalismo neoliberal. Era a democracia em sua essência. Há uma espécie de imaginário coletivo no movimento do 18 de outubro, que é também o imaginário coletivo nas deliberações internas da Convenção Constitucional.

O seu livro aborda também os precedentes da rebelião chilena, mas distingue manifestações e protestos anteriores da revolução de 2019. A que se deve esta disrupção inédita?


Acredito que está ligada à história do Chile contemporâneo, porque em 2019 há uma consciência compartilhada por todos os atores, pelos manifestantes, mas não apenas pelos manifestantes. A consciência de que a situação do país se deve ao bloqueio neoliberal. Isto é muito importante. Tudo isso estava fermentando muito antes da rebelião chilena. Quando Pinochet perdeu o referendo em 1989 e foi forçado a deixar o poder, uma sucessão de presidentes eleitos democraticamente chegou, e então a sociedade esperou pela mudança prometida. Um expressão usada, “a alegria virá”, era um dos lemas dos democratas-cristãos na época. A alegria estava chegando e as pessoas estavam esperando por ela. Mas, “onde está a alegria”, os chilenos se perguntavam. O regime continuou, já era democrático do ponto de vista das eleições, mas continuou com a mesma política neoliberal. Era uma democracia consensual: um pacto com as forças armadas e depois com os partidos da coligação: a Democracia Cristã, os partidos socialistas. Esse pacto consistia em não mexer na Constituição de Pinochet de 1980 e respeitar o conceito de Estado subsidiário. Em troca, as eleições governos alternativos eram permitidos, sem problemas. Mas, no fundo, o princípio da subsidiariedade do Estado bloqueia tudo.

Os movimentos vinham se chocando contra esse muro da política neoliberal, sempre continuada pelos governos de concertação e garantida pela vigência da Constituição. Foi isso que fez tudo explodir: já eram 30 anos batendo na mesma parede. Por esta razão, esses movimentos convergiram para produzir a rebelião.

E como esses movimentos estão relacionados?


Primeiro, podemos ver algumas diferenças. Há uma pesquisadora chilena, Daniela Schroder, de quem falo no livro, que usa essa imagem das três confluências que produzem a rebelião. Mas são movimentos — os feminismos, o movimento estudantil e o movimento mapuche — que não se situam na mesma escala de tempo, já que os mapuches remontam às fundações coloniais do Estado chileno.

Os que criaram o Estado chileno, entre 1860 e 1870, conseguiram fazer o trabalho que os espanhóis não haviam concluído: no final do século XVI, os espanhóis pararam aproximadamente no rio Biobío e não avançaram mais. Mas em 1860-1883 veio a guerra de pacificação de La Araucanía, uma terrível ofensiva. Esta guerra vai deixar sua marca. Quando os mapuches falam de como era tudo antes de 1883, eles sonham: aqui havia fartura, havia liberdade, tínhamos muita terra própria… Depois, as coisas foram diferentes.

Nas últimas décadas, o movimento mapuche foi se reconstituindo, principalmente na época da implantação da concertação, já que estes governos, e em particular o presidido por Patricio Aylwin, fizeram muitas promessas a eles. Mas sempre foi sobre direitos culturais, nunca sobre direitos políticos coletivos. Eles foram apenas informados: você tem uma cultura e você tem que valorizá-la.

Essa é uma característica dos anos noventa.


Com certeza, existe esse tipo de multiculturalismo neoliberal, essa é a estrutura. Assim, a ala mais radical dos mapuches vai esbarrar neste muro, quando persistirem na reivindicação do território. Uma luta que persistirá até 2019. No entanto, também é preciso dizer que os mapuches estavam muitas vezes integrados a outros movimentos durante a rebelião. Em essência, não é um movimento homogêneo. Alguns mapuches dizem que os que vivem nas cidades não são realmente mapuches, mas 70% dos mapuches vivem nas cidades. Esses mapuches participam de manifestações, são estudantes, são mulheres.

O que faz a diferença é que os movimentos feministas e estudantis têm uma orientação transversal. Pego emprestada essa ideia de Karina Nohales. Significa que o feminismo atravessa todos os estratos da sociedade e é capaz de criar raízes, as próprias feministas são capazes de se apropriar das demandas ou reivindicações dos mapuches. Não é o contrário, é mais nessa direção. O mesmo vale para os estudantes. Em 2011 também houve bandeiras mapuches, foi uma orientação transversal do movimento estudantil que reivindicava uma educação pública gratuita e de qualidade: uma reivindicação que era transversal a toda a sociedade.

Fiquei impressionada com a extraordinária vivacidade do feminismo chileno, que foi capaz de não reduzir o feminismo a uma questão de mulheres. É sem dúvida por influência das feministas argentinas, porque na Argentina esse ciclo começou em 2015-2016. No Chile, as primeiras manifestações foram em 2017 e a primeira greve geral feminista em 2018. O que eu acho interessante, em última análise, é que só houve convergência porque houve essa orientação transversal.

Diante dessa transversalização dos movimentos, o que vem acontecendo lá de cima, como tem funcionado a democracia de consenso de que você fala em seu livro?


A democracia baseada no consenso, no Chile, tem um papel muito importante. Não se trata de acordos entre partidos, esse tipo de pacto existe em toda a América Latina, ou na Europa. O que é próprio do Chile é justamente essa ideologia de concertação. O democrata-cristão Edgardo Boeninger foi seu principal ideólogo. Muito em breve, em 1986, ele escreveu uma carta em que dizia – e é importante ter presente essa data porque naqueles anos houve grandes protestos e manifestações bastante radicais – “precisamos de paz, precisamos de consenso, precisamos de democracia”.

A ordem é importante, porque as pessoas pensam em outra sequencialidade: há manifestações, logo ela se apagam e então Boeninger chega com os democratas-cristãos para dizer que há uma solução política. No entanto, os protestos de 1986 ainda eram massivos quando Boeninger chegou para dizer: “já está bem, não devemos ser tão radicais, devemos ser capazes de defender a democracia”. Ele apela para a democracia consensual: o método é sempre chegar a acordos entre os partidos. Mas é também uma forma de garantir um certo número de princípios fundamentais. Por outro lado, a democracia de consenso não faz parte do patrimônio político do Chile. Em absoluto. A patrimônio político do Chile é a clássica democracia parlamentar com uma minoria e uma maioria. O interessante aqui é que a democracia de consenso é de fato uma democracia contra as maiorias.

De que maneira?


Sente-se que a maioria não leva suficientemente em conta os interesses das minorias. Que minorias? Acima de tudo empresários, a democracia consensual deve permitir a construção de mecanismos que permitam o respeito a esta minoria. A democracia contra a qual Boeninger e a coalizão estão lutando é a democracia majoritária. Eles são contra a ideia de que a maioria deve prevalecer sobre a minoria. Portanto, deve haver consenso entre a minoria e a maioria.

Boric continua a confiar na estrutura de consenso. Acho que foi em novembro de 2022 quando ele inaugurou uma estátua em memória de Aylwin e disse algo como: “oh, sim, daqui a dez ou 20 anos, Giorgio Jackson, Camilla Vallejo ou eu, poderíamos ser lembrado como Aylwin é, eu ficaria feliz”.

É difícil pensar nesses cenários que partem da ruptura — penso também no caso grego, como exemplo — e acabam se reinserindo em um certo status quo anterior.


Realmente muito complicado. Tudo depende também em grande parte da atitude dos partidos políticos que compõem a esquerda parlamentar. O Syriza é um bom exemplo. Tinham o vento da mobilização popular a seu favor, então chega nesse momento a ameaça da Troika da União Europeia, juntamente com os partidos de direita, e dizem-lhes que o que eles têm de fazer é submeter-se. E o que eles fazem então? Isso é típico da esquerda, grande parte da esquerda parlamentar diz a mesma coisa: “Vamos apelar ao povo para nos apoiar”.

O problema é sempre que eles não conseguem se articular, se apoiar nos movimentos sociais, se voltam para o povo em busca de apoio, para conseguir apoio eleitoral. É sempre assim. O que aconteceu na Grécia foi terrível, porque fizeram um referendo, obtiveram 60% de apoio e 15 dias depois decidiram capitular. Algo semelhante aconteceu no Chile. Não quero personalizar a responsabilidade do Boric como indivíduo, trata-se do sistema partidário da esquerda parlamentar, todos voltaram a uma lógica de concertação. Eles dizem: estamos tentando chegar aos acordos que não sejam tão ruins, fazer o possível, sempre com a ideia de que vamos limitar os danos. E isso é uma terrível ilusão, porque quanto mais concessões fazemos à direita, mais eles querem.

Infelizmente, esta é uma experiência histórica muito comum. Essa ideia de tentar parar a direita e dizer, ok, se a gente ceder um pouquinho eles vão parar de nos pressionar e a gente pode discutir as coisas com calma. Não, eles não vão. O caso do Chile hoje é terrível porque o pêndulo está voltando, como dizem. Tem esse movimento que vai muito, muito para a esquerda, com os movimentos sociais, a convenção constituinte, etc. E então, uma vez que o Rechaço ocorre, em 4 de setembro de 2022, o pêndulo volta e a direita se torna cada vez mais agressiva, cada vez mais arrogante. E o que fazem então os partidos da esquerda parlamentar? O que Boric faz? Recuar. Recuar e recuar e recuar.

Com qual objetivo?


Eles imaginam que vão conseguir conter a direita dentro de certos limites, mas vejam o que acabou de acontecer: chegou-se a um acordo no dia 12 de dezembro, eu falo disso no prefácio da edição em espanhol do meu livro, porque já suspeitava naquela época que o que viria depois do acordo seria terrível. E assim foi: o 7 de maio foi um desastre eleitoral, a esquerda parlamentar perdeu em todos os aspectos.

No início falaram que chegariam a um acordo, que seria melhor. Um mau negócio é melhor do que nenhum acordo. Eles conseguiram o acordo, exceto que Kast não o assinou. Então todos os partidos da esquerda parlamentar assinaram o acordo junto com a direita… Nem me atrevo a dizer moderado, porque a direita moderada no Chile é uma direita bastante agressiva. Esse é um bom exemplo. Eles perderam tudo. Quiseram limitar os estragos e perderam as eleições.

Há uma reflexão entre os que se mobilizaram no Chile, que também se reflete em seu livro, que questiona se os movimentos sociais estavam muito à frente, muito na vanguarda, e esqueceram, antes da convenção constituinte, que os movimentos sociais são não a sociedade.


Sim, os movimentos sociais no Chile se politizaram muito, muito rapidamente. Era como se os jovens que participaram das manifestações estivessem refazendo o mundo a cada dia. E havia uma pequena fração da sociedade que os seguia. Mas a grande maioria não. Por isso eu insisto muito: movimentos sociais e sociedade não são a mesma coisa, mas na maioria das vezes as pessoas que estão há três anos participando de movimentos sociais têm dificuldade de aceitar isso. É difícil para eles aceitarem a ideia de que não trabalharam o suficiente com as classes trabalhadoras para que elas acompanhem, para que elas aderirem às ideias.

As mais lúcidas nesse contexto são as feministas chilenas, que realizaram em fevereiro passado o quinto Encontro Nacional, que foi a Conferência Plurinacional de Mulheres e Dissidentes em Luta. Fizeram um documento resumido. A primeira vez que o li achei extraordinário, elas mesmas disseram: no último capítulo havia um parágrafo inteiro sobre não ter feito o suficiente para atingir as mulheres dos bairros populares.

Como se faz essa pedagogia política diante dessa subjetividade neoliberal de que você fala no livro, e que estaria tão consolidada?


É difícil porque, por um lado, houve o que poderíamos chamar de uma subjetivação coletiva que permitiu que uma certa minoria se libertasse das garras do neoliberalismo. Mas, ao mesmo tempo, o grosso da sociedade permanece completamente dependente dele. E é que a subjetividade neoliberal não é uma subjetivação coletiva, é uma subjetivação individual, que está na relação com a dívida, na relação com o consumo, na relação com a moradia, com a previdência privada.

O que chama a atenção também é que, muitas vezes, são as pessoas que não têm nada ou quase nada, que têm demonstrado um apego mais forte à propriedade, dizendo: ah, a convenção constitucional vai nos privar das poucas coisas que temos: não sabemos realmente o que vai acontecer, mas temos medo. A subjetivação neoliberal causa medo da democracia radical. Não ignore, não se engane. Se tomarmos a Constituição de 1980 como ponto de partida, são 40 anos de exposição a essa subjetivação. Ou se você considerar a grande virada neoliberal das Juntas Militares de Pinochet, em 1975, são quase 50 anos. Isso transforma as pessoas por dentro.

Então, o rechaço da nova Constituição legitimou a coalizão e a Constituição de Pinochet?


É mais complicado, a rechaço aos partidos políticos tradicionais ainda hoje é muito forte. Há outros fatores: foi a primeira vez que o voto foi obrigatório. Fiquei impressionado no dia 4 de setembro com as imagens de pessoas fazendo fila em frente às seções eleitorais, algumas delas vindas de longe. Se não tivessem o carimbo de que votaram, corriam o risco de multa. As pessoas são obrigadas a ir votar, muitas não sabem em quem, se abstêm ou votam nos partidos que são a favor do rechaço. Mas isso não é necessariamente um apoio ao sistema de concertação, não é que queiram voltar a esse sistema. Esse é exatamente um dos grandes erros de Boric.

Boric pensa depois do rechaço que é preciso voltar ao acordo, então dá o exemplo. Mas já não estamos no contexto que deu origem à concertação. Acabou-se. Os anos 90, 2000 e 2010 acabaram. As pessoas lutam no presente, mas o fazem com a mente obscurecida pelos fantasmas do passado. Essa é a situação.

No livro que você fala sobre o enfastiamento, movimentos ao redor do mundo têm se articulado em torno dessa ideia de não aguentar mais as coisas como elas são. E, no entanto, acabam se deparando com esse tipo de retração constante, acompanhado de repressão.


Isso é o que eu estava dizendo sobre o pêndulo que vai e volta, que é o que eu acho que está acontecendo no Chile. Ou seja: quanto mais radical a revolução, mais violenta a reação. Existe essa ideia de que é absolutamente necessário apagar o que aconteceu da memória dos chilenos. E tem muita gente, até quem participou de movimentos sociais, que não lembra o que aconteceu e o que viveu. Do que participamos? Já não fica nada. Ninguém fala mais sobre isso. É como se todos os vestígios fossem apagados. Não se pode apagar todos os rastros físicos, mas pode tentar apagar da mente os rastros da rebelião, e é isso que está acontecendo.

Inclusive, há pessoas que participaram do movimento que, às vezes, têm vergonha de dizer isso. Isso é terrível. São apenas os jovens ou muito jovens que querem continuar, que dizem para si mesmos, temos que retomar a luta, temos que reconstruir movimentos mais sólidos do que os que construímos no passado.

O que a rebelião chilena deixa para trás, o que esses momentos disruptivos deixam para o futuro?


É bom pensar no futuro, é justamente isso que me chamou a atenção. Por isso adotei a ideia de “A memória do futuro”, elaborada pelas feministas chilenas. A princípio me perguntei o que significa a memória do futuro, se o objeto da memória é o passado, não o futuro. E, no final, percebi que é uma ótima expressão e pensei, oh la la, esse é o título do meu livro, não preciso procurar mais. As feministas disseram em todos os debates: “Não buscamos reproduzir, não buscamos repetir, não buscamos voltar, isso não é problema nosso”. Daí a memória do futuro, o que significa que temos que ter em mente para onde queremos ir agora no presente. Recordar do que queremos focar coletivamente no presente.

Estamos no presente, agimos no presente. Mas, ao mesmo tempo, fazemos isso pensando a partir de um olhar para o futuro. Não se trata de um futuro distante, aquele que chegará em dez anos. Não, o futuro é tarefa coletiva. Acho extraordinária essa ideia das feministas. O futuro é amanhã. Essa é a perspectiva que devemos abrir, é o que temos que discutir. É importante porque a ideia está aberta à deliberação coletiva. O futuro não se escreve, constrói-se no presente, mas sem ser prisioneiro do presente. Essa é a grande vantagem da ideia de “memória do futuro”.

Você traça uma relação entre deliberação e imaginação política.


É verdade. E é que assim que comecei a olhar para o que estava acontecendo no Chile, descobri que havia muita imaginação política lá. Quase em todos os momentos, em todas as etapas de minha pesquisa, encontrei essa imaginação política: tanto no início, quando a rebelião eclodiu em todas as direções — o que havia nos protestos foi um extraordinário exercício de imaginação política —, quanto durante a convenção constituinte.

Quando deliberamos, a imaginação política se refere a tentar imaginar o que vai ser deliberado. O que finalmente será decidido coletivamente é justamente o que não existe, porque é o futuro. Mas, ao mesmo tempo, esses momentos representam a possibilidade de fazer algo para ir em direção a este futuro, para trabalhar na sua construção. O movimento em torno da rebelião chilena, o trabalho da convenção constitucional, esses são realmente os dois momentos em que me pareceu que a primazia foi restaurada à imaginação.

Você revela uma contradição entre essa perspectiva deliberativa, a da imaginação política, e uma certa tendência ao presidencialismo que frustra a abertura.


Roberto Gargarella, constitucionalista argentino, analisa o presidencialismo desde o processo constituinte do México em 1917. Seu olhar tem peso porque há profundidade, há um campo histórico sobre o qual se baseia. O que quero dizer é que o que é especificamente latino-americano, como diz Gargarella, é esse tipo de dualidade: momentos em que há uma grande radicalização do ponto de vista dos direitos sociais, como no caso da revolução mexicana, mas, por outro lado, a estrutura de poder dentro do Estado não muda, há apenas pequenas correções.

Quando eu era jovem, tinha muitas esperanças na América Latina. Nossa geração foi muito marcada pelo que aconteceu lá, discutimos a estratégia de Hugo Blanco no Peru, queríamos reinventar o mundo a partir do que a América Latina tinha a oferecer. Continuamos a fazê-lo, como no Chile. O que vemos é que o problema é que esse presidencialismo persiste, mesmo quando os direitos sociais são reconhecidos. O presidencialismo ainda é a parte da velha estrutura do Estado que permanece inalterada. Mesmo quando há desdobramentos interessantes, como o de Evo Morales na Bolívia, quando são introduzidos mecanismos de participação popular no poder. Porém, quando Evo quis se candidatar à reeleição pela quarta vez, deixou isso de lado e só pensou no que lhe permitiria ser eleito. Então conseguiu que a Justiça Eleitoral modificasse a Constituição, excepcionalmente para ele. E isso, infelizmente, aconteceu em outros países.

Como a ideia de constitucionalismo deliberativo atua contra esse presidencialismo.


Para mim, o constitucionalismo deliberativo é a alternativa que questiona o presidencialismo. Não sou necessariamente contra o papel do Presidente da República, mas sou contra a concessão de poderes excepcionais e extraordinários. Por exemplo, no Chile, o presidente, mesmo no âmbito do projeto da nova Constituição, tinha poder excepcional em matéria orçamentária para o gasto público. Ele tinha o direito de fazer propostas por conta própria e até de pressionar o Parlamento a adotá-las. Isso é mortal. O constitucionalismo deliberativo aposta que a deliberação pode prevalecer em todos os níveis da vida constitucional.

Sempre tivemos a ideia de uma Constituição como uma espécie de salvaguarda da democracia. Mas o que é lamentável é o fato de que as constituições são concebidas antes de mais nada como salvaguardas contra a democracia. Por outro lado, o velho mundo, a velha Europa, mostrou que os poderes presidenciais são algo bastante pernicioso. Macron é o exemplo: faz o que quer porque existe uma Constituição – da época de De Gaulle – que o permite. Eu disse aos meus amigos chilenos: Macron tem o direito de validar, por exemplo, a reforma da previdência, mesmo que o Parlamento diga não. Ele não se importa, ele fez isso, apelando para o artigo 49.3 da Constituição. Esse é o velho mundo, e eu esperava, ou espero, que a América Latina pudesse liderar algo diferente.