POR CLAUDIO KATZ
Tradução de Fernando Lima das Neves para A Terra é Redonda. Publicado na página do autor. Via Esquerda.net
O presidente dos EUA parece um louco mas segue uma estratégia económica aprovada por importantes grupos de poder e não deve ser subestimado. Esta tem três objetivos económicos: restabelecer a hegemonia do dólar, reduzir o déficit comercial e incentivar a repatriação das grandes empresas.
Fiel ao seu estilo de jogador destemido, Donald Trump provocou um caos nos mercados mundiais. Introduziu, retirou e reformulou uma tabela de tarifas alfandegárias que desencadeou uma enorme desordem. A sua bravata recriou os piores pesadelos financeiros das últimas décadas.
O magnata criou um cenário inédito de crise global deliberadamente precipitada. Alguns analistas acreditam que ele tende a recuar diante dos resultados adversos das suas medidas, mas outros consideram que ele continua a assustar os seus interlocutores para forçá-los a capitular.
Há também a impressão superficial de que Donald Trump enlouqueceu e que, na sua decadência, os Estados Unidos ficaram sob o comando de um alucinado. O magnata mente, insulta, agride e parece governar a primeira potência como se fosse um fundo de investimento. Mas, na verdade, está a seguir uma estratégia aprovada por importantes grupos de poder e não deve ser subestimado (Torres López, 2025).
Ele tem três objetivos económicos: restabelecer a hegemonia do dólar, reduzir o déficit comercial e incentivar a repatriação das grandes empresas. A hierarquia e articulação dessas metas é a grande questão do momento.
Centralidade monetária
Algumas abordagens destacam, com razão, a primazia das metas financeiras e monetárias sobre as comerciais ou produtivas. Enfatizam que Donald Trump pretende instaurar um dólar barato para exportar, e um dólar elevado como reserva de valor. Pretende favorecer as exportações norte-americanas, enquanto assegura o estatuto privilegiado da divisa norte-americana como moeda mundial (Varoufakis, 2025). Os dois principais assessores do presidente – Miran e Besset –confirmaram este propósito, confessando que as pressões comerciais são um instrumento de exigências monetárias.
Para conseguir a desvalorização do dólar e a sua permanência como reserva de valor, Donald Trump precisa reforçar a subjugação dos Bancos Centrais da Europa e do Japão. Esta subordinação é indispensável para preservar o papel dos títulos da dívida norte-americana como principal refúgio do capital.
Esta garantia determina o afluxo do excesso de dinheiro no mundo para Wall Street. Tóquio e Bruxelas devem manter a compra destes papéis para convalidar a taxa de câmbio do dólar fixada por Washington, evitando assim tensões cambiais que desmoronariam todo o projeto.
Donald Trump exige a continuação do reinado do dólar e a consequente capacidade dos Estados Unidos de se financiarem à custa do mundo. O imperialismo do dólar permite à primeira potência mundial endividar-se de forma ilimitada e manipular a seu favor todas as economias do mundo.
Para lidar com os sérios questionamentos que este atributo enfrenta atualmente, o magnata pretende recriar os Acordos de Plaza, que os Estados Unidos impuseram à Alemanha e ao Japão nos anos 1980. Nesse momento, os seus dois subordinados concordaram em apoiar o barateamento do dólar e manter uma paridade que garantisse a primazia mundial da moeda norte-americana.
Donald Trump está a moldar esta exigência aos novos tempos e a patrocinar novas moedas digitais ligadas ao poder político do dólar. O potentado criou um fundo de criptomoedas baseado na sua própria figura e promove esse mercado (stablecoins) como um pilar adicional do dólar. Já posicionou estes instrumentos entre os 10 maiores detentores de Títulos do Tesouro (Litvinoff, 2025).O presidente ianque sonha com o retorno do dólar ao seu trono original de Bretton Woods. O seu plano B é reciclar essa centralidade para o nível atingido por Richard Nixon e Ronald Reagan. No primeiro caso, o dólar norte-americano foi libertado da convertibilidade do ouro e iniciou um longo ciclo de predomínio sem suporte metálico objetivo. No segundo, a divisa ianque foi reforçada pelo aumento das taxas de juro, pela ascensão do neoliberalismo e pela financeirização sob o comando da Reserva Federal. Estes dois presidentes compartilhavam com Trump o mesmo perfil de personagens medíocres, mas introduziram mudanças significativas no estatuto mundial do dólar.
Para repetir essa proeza, o magnata deve frear a tendência à desdolarização, que ameaça a supremacia da nota verde. Esta erosão é impulsionada pelos BRICS, que começaram a conceber instrumentos de substituição da moeda norte-americana através de operações de pagamento, transações comerciais e mecanismos de compensação financeira (Sapir, 2024).
Inclusive já existe um projeto de criação de uma moeda dos BRICS que, seguindo uma trajetória diferente da do euro, teria um efeito semelhante. Este plano prevê a gestação progressiva de um banco emissor, com fundos de reserva e cronogramas detalhados de ritmos, taxas e legislações (Gang 2025).
Donald Trump conhece estas ameaças e precipitou o caos, para desencadear a batalha contra os desafiantes da divisa ianque. Ele promove este pânico para disciplinar todos os aliados sob o seu comando. A partir desta centralização, ele espera recompor o dólar e reiniciar o sistema económico mundial a favor dos Estados Unidos. Mas o magnata precisa limitar o alcance da crise auto-gerada, porque se esta convulsão recriar o cenário da pandemia ou o contexto do colapso bancário de 2008, o tremor acabará por afetar o seu próprio artífice (Marcó del Pont, 2025a).
O barómetro imediato da queda é o comportamento dos Títulos do Tesouro. O Japão é o principal detentor desses títulos desde que a China começou a abandoná-los. Os bancos da Europa e de outros países asiáticos também possuem um acervo significativo destes papéis. O plano de Donald Trump naufragará rapidamente se, como sugerido na recente turbulência, os credores da dívida norte-americana venderem esses ativos.
Mas, para além desse cálculo imediato, a grande dúvida é a capacidade geral dos Estados Unidos para recompor a sua moeda. Há várias diferenças substanciais em relação à era Nixon e Reagan. O declínio da primeira potência é muito maior, o circuito de dominação imperial está em erosão, o colapso da URSS e o advento da globalização ficaram para trás e o avanço económico da China é avassalador. A estratégia monetária de Donald Trump também enfrenta uma grande tensão com os bancos, enquanto Wall Street observa com desconfiança um rumo que ameaça cortar os enormes lucros dos últimos tempos.
O bumerang tarifário
O segundo objetivo de Donald Trump é comercial, destinado a reduzir o monumental déficit externo dos Estados Unidos. Trata-se de um objetivo de médio prazo, que não tem a urgência da guinada monetária e que depende em grande medida da recomposição do dólar. O magnata introduz e modifica diariamente as tarifas alfandegárias, devido ao lugar complementar destes instrumentos nas negociações com cada país.O ocupante da Casa Branca, de facto, radicaliza a tendência protecionista inaugurada pela crise financeira de 2008 e o declínio da globalização comercial. Desde essa data, foram introduzidas 59.000 medidas restritivas nas trocas internacionais e as tarifas aduaneiras atingiram o nível mais elevado dos últimos 130 anos (Roberts, 2025a). A guerra comercial que Trump desencadeou com o seu pacote tarifário pomposo está em sintonia com este percurso anterior.
A potência recorreu a uma fórmula absurda para penalizar diferentes países. Inventou um critério arbitrário de reciprocidade para definir a percentagem de cada castigo, com estimativas disparatadas do déficit comercial norte-americano, que omitiram o superávit ianque nos serviços. Esqueceu também que os desequilíbrios comerciais não foram causados pelos países sancionados mas pelas próprias empresas norte-americanas, que canalizaram os seus investimentos para o exterior para aumentar os seus lucros.
As possibilidades de sucesso do plano trumpista são muito reduzidas, uma vez que as importações e exportações norte-americanas já não operam como uma força decisiva no comércio mundial. Elas caíram de 14% em 1990 para 10,35% hoje, e, nesse período, só os BRICS saltaram de 1,8% para 17,5%. A guerra tarifária não tem, por si só, poder dissuasivo e as vendas exibidas pela potência líder em serviços são insuficientes para inclinar a balança (Roberts, 2025b). Algumas estimativas apontam até mesmo que, se os Estados Unidos suspendessem todas as importações, 100 dos seus parceiros poderiam recolocar as suas vendas em outros mercados em apenas cinco anos (Nuñez, 2025).
O maior problema da guerra comercial é a possibilidade de uma escalada incontrolável. Em 1929-34, a espiral descendente do comércio internacional que sucedeu o pacote protecionista (Smoot-Hawley) provocou uma queda de 66% no comércio e esse colapso teve impacto em todos os concorrentes. Donald Trump supõe que evitará essa sequência com negociações bilaterais forçadas a partir do seu gabinete.
Mas o que aconteceu no passado sugere outro resultado quando os conflitos se agravam sem contenção. O efeito recessivo do protecionismo na economia mundial é tão bem conhecido como a ligação entre a Grande Depressão e a retração do comércio. Embora as interpretações mais comuns associem superficialmente os dois processos – omitindo as raízes capitalistas do que aconteceu na década de 1930 – não há dúvida de que o protecionismo desencadeou, impulsionou ou precipitou o colapso desse período.
O mais relevante de uma eventual repetição desse precedente seria o seu efeito sobre a economia norte-americana, hoje muito mais vulnerável às turbulências globais. Esse impacto é maior por causa da centralidade do comércio exterior, que saltou de 6% (1929) para 15% (2024) do PIB do país.
Donald Trump reintroduz o protecionismo num momento inoportuno da história. As tarifas eram um instrumento eficaz para os Estados Unidos no passado, mas não cumprem essa mesma função atualmente. Facilitavam a decolagem das potências emergentes contra competidores que propiciavam o livre comércio, a fim de manterem o seu domínio do mercado mundial. O protecionismo foi utilizado com grande vantagem pela Alemanha no século XIX e pelo Japão ou pela Coreia do Sul no século passado.
Mas a mesma ferramenta não permitiu à Grã-Bretanha conter o seu declínio, e essa ineficácia afeta atualmente os Estados Unidos. Donald Trump patrocina um protecionismo desequilibrado, pois, em vez de encorajar a indústria nascente, procura socorrer uma estrutura obsoleta. Ele simplesmente desconhece que os Estados Unidos já não são o que eram.
O sonho do retorno fabril
O terceiro objetivo de Donald Trump é produtivo. Ele favorece o retorno das empresas ao seu território de origem e vê nesta realocação a única forma de efetivar a recuperação hegemónica ianque. É por isso que identificou a estreia da sua ofensiva (“Dia da Libertação Económica”) com a reindustrialização do país.
Donald Trump é o primeiro presidente a reconhecer abertamente a adversidade gerada pela expatriação das fábricas. Recorre a instrumentos drásticos para inverter este infortúnio, porque compreende que a globalização acabou por afetar a potência que a promoveu. Regista que a primazia norte-americana nos serviços, nas finanças e no universo digital não compensa o retrocesso fabril e a consequente erosão do pilar de qualquer economia.
Mas o seu plano de repatriamento industrial é mais inviável do que o seu projeto monetário ou tarifário. Nenhuma alquimia monetária ou tarifária é suficientemente atrativa para induzir o retorno das empresas que obtiveram lucros elevados no exterior. Por mais persuasivos que sejam os incentivos do magnata, produzir nos Estados Unidos tem um custo mais elevado. A recuperação industrial exigiria um investimento massivo, que as empresas não estão dispostas a fazer com a baixa rentabilidade interna atual.
A viragem protecionista visa modificar essa lacuna, mas defronta-se com a dificuldade de fechar a economia num cenário de cadeias de abastecimento globalizadas. No produto final de muitas mercadorias são incorporados insumos de fábricas instaladas em inúmeros países. Não é fácil imaginar como os Estados Unidos poderiam recuperar a competitividade recriando antigos padrões de produção nacional. Quanto teria que subir uma tarifa para que fosse mais barato voltar a produzir no país?
Basta observar o caso da Nike, por exemplo, que tem 155 fábricas no Vietname e um número monumental de postos de trabalho neste país, para fornecer um terço das importações de calçados dos Estados Unidos. A diferença nos custos de produção é tão sideral que um retorno aos Estados Unidos parece impensável (Tooze, 2025). A dissociação do processo de fabricação na China implicaria um impacto semelhante para empresas como a Apple.
Os economistas de Donald Trump também afirmam que o seu projeto será viável se a primazia do dólar for recuperada e o déficit comercial for reduzido. Acreditam que este processo corrigirá os desequilíbrios globais de consumo, poupança e investimento que afetam a primeira potência. Do lado oposto, os críticos neoclássicos e keynesianos lembram que, no seu primeiro mandato, Donald Trump não conseguiu inaugurar essa mutação.
O debate entre ambas posições gira em torno do impacto positivo ou negativo do protecionismo sobre os gastos, o rendimento, a poupança e o consumo. Mas esquece que o revés dos Estados Unidos não se situa nestes domínios. Resulta da baixa produtividade da principal economia ocidental em comparação com o seu concorrente em ascensão no oriente. São incontáveis tantos os indicadores deste fosso assim como as provas do seu contínuo aumento.
Basta verificar a tendência generalizada das empresas norte-americanas em privilegiar o investimento financeiro, ou em operar como um multibanco de Wall Street, para confirmar o declínio de sua competitividade. Tendem a gastar mais em recompras de ações e pagamento de dividendos do que em investimentos a longo prazo.
Grande parte destas empresas globalizaram os seus processos de fabricação para compensar os elevados custos de produção locais. Mas esta mudança tornou-as fortemente dependentes da importação de bens de consumo baratos da Ásia para manter os salários locais deprimidos.
O grau em que estão ligadas ao fornecimento de insumos chineses foi corroborado pela decisão do próprio Donald Trump de isentar todos os chips e componentes eletrónicos das tarifas impostas ao rival asiático. O mesmo problema estende-se aos bens de capital e intermediários, que representam cerca de 43% das importações totais da China (Mercatante, 2025).
O retrocesso norte-americano não se deve a erros comerciais e a sua reversão não é o resultado do ultimato protecionista. Há, sem dúvida, uma mudança de modelo em curso, corroendo a divisão internacional do trabalho forjada em décadas de internacionalização produtiva. Mas este ocaso não inaugura o processo oposto de nacionalização fabril que Donald Trump imagina, porque a capacidade dos EUA para liderar esta mudança diminuiu drasticamente.
O retrocesso face à China
É evidente que a China é o epicentro da guerra económica iniciada por Donald Trump. Foi o principal alvo das tarifas alfandegárias que desencadearam a vertiginosa escalada mútua. Os 34% iniciais de Washington foram contrapostos com a mesma percentagem por Pequim e a contenda escalou rapidamente para 84%-104% e 145%-125%. Nestes níveis, o comércio entre os dois países tende a anular-se.A centralidade da China na ofensiva de Donald Trump foi adicionalmente corroborada pela sua decisão de manter as sanções para este país, depois de terem sido suspensas para o resto do mundo. As elevadíssimas tarifas sobre Vietname, Camboja e Laos fazem parte do mesmo confronto, pois a China comanda as cadeias de abastecimento destes vizinhos e reexporta as suas mercadorias a partir deles.
Pequim respondeu com firmeza, aplicando imediatamente direitos aduaneiros recíprocos e deixando claro que não aceitará a chantagem ianque. Há muito tempo que se prepara para esta reação e pretende travar a batalha em termos de produtividade, evitando a desvalorização do yuan. Além disso, já está à procura de clientes de compensação e planeia atrativos específicos para Europa e Ásia.
Toda a política de Donald Trump é uma tentativa desesperada de frear o avanço da China. Esta expansão estava apenas a começar na viragem do milénio, quando a primeira potência deixou de receber transferências de rendimentos baixo do parceiro asiático a seu favor. Foi o início de uma troca desfavorável, que atingiu agora um pico difícil de reverter.
O magnata pretende alterar este cenário adverso com ações drásticas. Mas a distância entre as duas potências não se deve apenas a diferenças de política monetária, comercial ou de produção. Está na estrutura social e na gestão do Estado.
Na China existem importantes classes capitalistas que especulam com as suas fortunas e exploram os trabalhadores. Mas esses grupos não controlam o poder estatal e esse limite explica a capacidade e autonomia da liderança política para orientar a economia com padrões de eficiência.
Donald Trump não tem qualquer fórmula para lidar com esta desvantagem, que está além de todas as suas intenções e projetos. Para piorar a situação, ele impulsiona medidas que agravam os dois grandes males do capitalismo contemporâneo: a desigualdade social e as mudanças climáticas. Ele embarcou numa batalha adiada para sustentar a liderança norte-americana num sistema em crise, mas acentua o declínio norte-americano com medidas que adota, modifica e restabelece.
O nostálgico léxico imperial
Donald Trump está a tentar recuperar a centralidade imperial dos Estados Unidos. É a única forma de engrandecer os capitalistas do seu país às custas do resto do mundo. O pacote de sanções, tarifas e chantagens que pôs em prática exige uma revitalização do império.
O magnata pretende recompor essa primazia com atitudes de brigão. Vangloria-se de ter obtido a negociação de direitos aduaneiros com 75 países, depois do susto provocado pela sua tabela de tarifas. Mas mascara a realidade com uma fanfarronice que obscurece o progresso real das negociações.
Com a União Europeia, aprofunda uma disputa que começou com a introdução e suspensão de tarifas de 25%. Trump aspira a impor uma euro-vassalagem, que lhe permitiria reindustrializar o seu país, desindustrializando o parceiro transatlântico.
A primeira etapa desta operação é o rearmamento do Velho Continente, com energia, tecnologia digital e equipamentos fornecidos pelos Estados Unidos. A potência semeou o pânico entre as elites europeias, que, num acesso de russofobia, se lançaram num belicismo cego. Estão a cortar as despesas sociais e já substituem a apregoada transição verde por outra cinzenta, de puro gasto militar.
Mas esta mudança não está isenta de conflitos, e o rápido acordo que Trump esperava assinar com Putin (para apropriar-se das riquezas da Ucrânia) não está atolado apenas com a Rússia. Também deu origem a um conflito sem precedentes entre Washington e Londres sobre quem fica com o botim das terras raras (Marcó del Pont, 2025b).
Mais determinantes são as negociações com os parceiros subordinados na Ásia. Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Filipinas sempre responderam com disciplina invariável ao padrinho estadunidense. Mas a grande novidade dos últimos anos é a crescente relação económica destes países com Pequim. A escala deste negócio levantou sérias dúvidas sobre o bloco anti-chinês promovido pela Casa Branca.
Donald Trump utiliza mensagens imperiais explícitas para fazer valer as suas exigências. Utiliza um léxico tão direto que a estreia do seu segundo mandato suscitou numerosos comentários jornalísticos deste tipo. A tradicional preocupação dos grandes meios de comunicação social com o uso irritante do termo imperialismo foi dissipada pela frontalidade do magnata.[i]
A mesma demonstração de poder imperial rodeou o anúncio da tabela de tarifas. Donald Trump incluiu pomposamente nesta lista todos os países do mundo, para destacar que nenhum deles escapará do látego de Washington. Não hesitou em inserir nações que não comercializam com os Estados Unidos ou em incorporar ilhas habitadas apenas por pinguins.
Mas as proclamações imperiais do opulento nova-iorquino contêm ingredientes mais nostálgicos do que efetivos. Donald Trump sente falta da obra de governantes distantes, que combinaram o protecionismo com a expansão imperial durante os dias de glória do capitalismo norte-americano.
Exalta com particular ênfase o presidente McKinley (1897-1901), que emergiu como um “Napoleão do protecionismo”. Introduziu um drástico aumento de 38-50% nas tarifas aduaneiras (1890), ao mesmo tempo que comandava a expansão para o Pacífico (Havaí, Filipinas, Guam) e a conquista do Caribe (Porto Rico e a aspiração por Cuba). Trump idolatra tanto a sua defesa virulenta da indústria como a sua extensão, a tiros, do raio territorial norte-americano (Boron, 2025).
Mas esta evocação choca com a realidade do século XXI. O magnata não pode instrumentalizar o protecionismo invasor do seu ídolo, optando por combinar a pressão tarifária com a prudência militar. Longe de retomar as intervenções do Pentágono por todo o lado, modera o impulso invasor para conter a deterioração da competitividade económica ianque.
Num gesto de realismo, Donald Trump tomou nota do fracasso bélico de George W. Bush e do revés económico de Joe Biden. É por isso que ensaia uma terceira via de moderação militar e reconfiguração monetária-comercial. Ele sabe que a capacidade ofensiva dos Estados Unidos foi drasticamente limitada por uma economia que detém 25% do PIB mundial (e não os 50% de 1945), em comparação com os 18% crescentes da China.
Donald Trump exacerba o léxico intervencionista diante dos adversários externos. Tal como os seus antecessores contemporâneos, precisa contrapor o declínio económico com uma grande exibição do poder geopolítico-militar que o seu país conserva.
Mas o magnata sabe que a compensação bélica das carências económicas agrava as tensões entre os setores militaristas e produtivistas do establishment. Os belicistas tendem a promover campanhas destrutivas a todo o custo, que afetam o orçamento do Estado e prejudicam a competitividade das empresas.
Donald Trump navega entre os dois setores, fortalecendo o ressurgimento da economia com fórmulas protecionistas. Encoraja o gasto com armamento, mas limita as guerras e procura limitar o efeito negativo do gigantismo bélico sobre a produtividade. A hipertrofia militar imposta pelo Pentágono é uma doença incurável de que sofre a economia americana há muito tempo e que o magnata não pode atenuar.
Tensões locais
As contradições internas que afetam o projeto protecionista são tão amplas como as tensões externas. Representam um efeito inflacionário como ameaça mais imediata. As tarifas aduaneiras encarecerão as mercadorias pela simples introdução de um custo adicional aos produtos importados.
Este efeito será significativo, tanto nos géneros alimentícios básicos como nos produtos mais elaborados. O México fornece mais de 60% dos nutrientes frescos, por exemplo, e estima-se que uma tarifa de 25% sobre os automóveis fabricados neste país (ou no Canadá) aumentaria o preço final de cada unidade em 3.000 dólares. Donald Trump saudou recentemente a mudança da Honda, disposta a fabricar seu novo Civic em Indiana, em vez de Guanajuato. Mas essa mudança aumentaria o custo médio de cada automóvel entre 3.000 e 10.000 dólares (Cason; Brooks, 2025).
É verdade que a inflação também poderia contribuir para a redução do valor real da dívida, mas o seu impacto na economia como um todo seria muito maior do que a diminuição do passivo.
Todos os analistas concordam em indicar o efeito recessivo da guinada protecionista, que poderia provocar uma contração de 1,5 ou 2 pontos percentuais do PIB. A retração do nível de atividade, que estava fora das previsões económicas, surge como uma grande probabilidade a curto prazo.
Esta perspetiva tensiona as relações de Donald Trump com a Reserva Federal, que resiste à redução das taxas de juro. A potência é favorável a essa diminuição para contrapor a provável queda da produção, do consumo e do emprego. O colapso dos mercados, desencadeada pelo anúncio da sua tabela protecionista, agravou este cenário sombrio e as consequentes disputas entre o presidente e o chefe da Reserva Federal.
Donald Trump mantém também a batalha com os setores globalistas, que defendem os interesses das empresas e bancos mais internacionalizados. A elite de Davos está desprestigiada pelos seus fracassos, mas aguarda a oportunidade de retomar a ofensiva. Se os resultados da guinada protecionista forem negativos, esse contragolpe irromperá com força e colocará os democratas na corrida para as eleições intermédias de 2026.
O chefe da Casa Branca cercou-se de empresários em ascensão (tubarões), que litigam com os seus pares do espectro tradicional (falcões). O establishment deu luz verde ao seu projeto, mas esperava tarifas moderadas e um comportamento mais próximo da cautela do primeiro mandato. A agitação atual leva-os a exigir o fim da investida presidencial. Os bilionários estão irritados com a forte redução do seu património provocada pelo colapso dos mercados.
As tensões estendem-se ao próprio entorno do magnata, que tem que arbitrar entre protecionistas extremos (Navarro) e responsáveis com investimentos no exterior (Musk). O próprio plano de controlo tarifário conduz, além disso, à introdução de um emaranhado de regulamentações, o que colide com o desmantelamento burocrático prometido pela nova administração (Malacalza, 2025). Os inúmeros conflitos com que Trump se defronta superam de longe os que ele pode resolver.
Bonapartismo imperial
A conflituosa investida externa, a ausência de resultados imediatos, a forte oposição dos globalistas e a frágil coesão interna induzem Donald Trump a reforçar o autoritarismo da sua administração. É por isso que ele tentará de novo a via bonapartista que explorou sem sucesso no seu primeiro mandato. Precisa também reforçar o poder da Casa Branca, para lidar com a contração dos investimentos dos capitalistas norte-americanos.
Donald Trump procede do duro universo empresarial e está habituado a negociar batendo na mesa para obter vantagens da outra parte. Este comportamento distingue-o dos seus pares no sistema político, que são forjados em acordos, negociatas e hipocrisias verbais.Para consolidar o seu protagonismo, lançou-se na hiperatividade e destaca-se como signatário diário de inúmeros decretos. Procura centralizar o comando para desconcertar os opositores e dá prioridade à lealdade sobre qualquer outro atributo dos seus funcionários.
O magnata ensaia a sua fisionomia bonapartista na tradição norte-americana do líder carismático. Tenta assumir o papel messiânico de intérprete da nação, estigmatizando os migrantes e caluniando o progressismo. Com este personalismo extremo, procura difundir uma imagem de homem predestinado a consumar o reencontro com o sonho americano. Mas este rumo aumenta as tensões com o establishment globalista, que controla os meios de comunicação mais influentes (Wisniewski, 2025).
Donald Trump irrompe no vazio deixado pelo descrédito dos políticos tradicionais. Aproveita o clima criado pela rejeição dos negócios parlamentares obscuros e usa os poderes do presidencialismo para potencializar sua figura (Riley, 2018).
Utiliza uma pregação semelhante à do campo conservador, que exacerba a contraposição cultural entre os Estados Unidos e o resto do mundo. Em confrontação com a tradição assimilacionista, rejeita a imigração latina e enaltece o idioma inglês. Exalta os ideais anglo-protestantes do individualismo e da ética do trabalho, desprezando a tradição hispânica, a qual identifica com a preguiça e a falta de ambição.
O discurso trumpista retoma o legado protecionista (Hamilton) e patriótico (Jefferson) que privilegia a prosperidade interna (Jackson). Disputa com o liberalismo cosmopolita (Wilson), que associa esse bem-estar à abertura ao exterior (Anzelini, 2025).
Com esta visão, Donald Trump regenera os postulados dos soberanistas, que tradicionalmente privilegiaram o racismo e o anti-comunismo na determinação das alianças externas. A simpatia desta vertente americanista pelo nazismo incluía, no passado, a afinidade com a Ku Klux Klan e o apartheid sul-africano. Esta herança é atualmente retomada por Elon Musk e, com esta marca, o trumpismo redobra as suas campanhas contra o perfil multiétnico, multirracial e multicultural do Partido Democrata.
A corrente liderada pelo magnata exprime uma variante etnocêntrica do imperialismo ianque, tão distante do neoconservadorismo republicano como do cosmopolitismo democrata. Ela ressalta os aspetos identitários da ideologia norte-americana e enfatiza o patriotismo reacionário como o componente substancial do seu credo. Mas, com esta filiação ideológica, participa do mesmo conglomerado imperialista que as outras duas vertentes.
George Bush, Joe Biden e Donald Trump são três modalidades do mesmo imperialismo que sustenta o capitalismo norte-americano. As diferentes modalidades dessa dominação são variantes internas de um mesmo bloco. O imperialismo é uma necessidade sistémica do capitalismo que funciona confiscando os recursos da periferia, deslocando os concorrentes e sufocando as rebeliões populares. Donald Trump governa dentro destes parâmetros e a sua crueza torna esta filiação transparente.
Trajetórias, ambições e resistências
É correto classificar Donald Trump como um lúmpen-capitalista, no sentido que Marx deu aos especuladores financeiros da classe alta envolvidos em múltiplas fraudes. A trajetória do magnata reúne todos os ingredientes deste padrão, dado o número de falcatruas, evasões fiscais, falências forçadas, negócios com a máfia e lavagem de dinheiro que marcaram a sua carreira empresarial. Cercou-se de personagens da mesma laia, com prontuários pesados no universo das cavernas financeiras (Farber, 2018).
Mas este itinerário pessoal não tipificou a sua primeira administração, nem define o seu mandato atual. Donald Trump atua como representante de setores capitalistas muito relevantes e lidera uma administração baseada na coligação de grupos empresariais americanistas, com empresas digitais que desertaram do globalismo. Apoia-se no setor siderúrgico, no complexo industrial-militar, na fração conservadora do poder financeiro e em empresas voltadas para o mercado interno, que foram castigadas pela concorrência chinesa (Merino; Morgenfeld; Aparicio, 2023: 21-78).
Donald Trump conquistou o atual mandato com o apoio de uma plutocracia digital, que arquivou aa suas preferências pelos democratas. Os cinco gigantes da informática formam agora o setor preponderante do capitalismo norte-americano, que precisa da belicosidade trumpista para enfrentar os rivais asiáticos.
Mais controverso é o significado do novo poder político que os bilionários digitais obtêm da mão de Donald Trump. Eles já têm o público acorrentado às suas redes e mantêm os clientes amarrados a um emaranhado de algoritmos. Esse vínculo permite que ampliem a sua intermediação lucrativa na publicidade e nas vendas. Agora tentam projetar esse poder noutra escala, através da gestão direta de várias áreas do governo.
Estes grupos formam poderosos oligopólios, que alguns olhares identificam com a depredação e captura da renda. Por isso, usam o termo tecnofeudais para conceptualizar a sua atividade (Durand, 2025).
Outras abordagens rejeitam essa denominação, que dilui o sentido capitalista de empresas nitidamente inseridas nos circuitos da acumulação. A sua liderança tecnológica permite-lhes usufruir da mais-valia extraordinária que absorvem do resto do sistema. Não se desenrola no âmbito das rendas naturais, nem obtém lucros através da coação extra-económica (Morozov, 2023). Mas as duas visões coincidem em ressaltar o inédito manejo da vida social, que obteve um setor levado a capturar porções significativas do poder político. Com o amparo de Donald Trump, buscam neutralizar, antes de tudo, qualquer tentativa de regulação estatal das redes.
A plutocracia digital está embarcada na gestão direta das alavancas do Estado, para moldar a atividade política a seu serviço. Alguns autores utilizam a noção de “capitalismo político” para singularizar essa apropriação. Observam o início do regime de acumulação, baseado na nova dependência dos negócios de um poder político, que define beneficiários com maior discricionariedade fiscal do que no passado. O trumpismo poderia atuar como artífice dessas transformações no cume do capitalismo (Riley; Brenner, 2023).
Mas a sua deriva autoritária já incentivou também a resistência nas ruas. Sob um lema unificado e mobilizador (“Tire as suas mãos”), 150 organizações promoveram um bem sucedido protesto massivo em mil cidades. Começaram a retomar a resposta a partir de baixo, que Trump enfrentou no seu primeiro mandato e conseguiu atenuar na estreia do seu retorno. Em grandes atos posteriores, percebe-se a rejeição do magnata e dos oligarcas que o cercam.
As marchas canalizam o descontentamento com o corte dos direitos democráticos, que promove o ocupante da Casa Branca. Se a erosão da legitimidade interna de Donald Trump ss somar à resistência que suscita no mundo, estarão abertos os caminhos para uma grande batalha contra o seu governo. Dessa convergência poderia emergir uma alternativa que começasse a substituir a opressão imperial pela irmandade dos povos.
Claudio Katz é professor de economia na Universidad Buenos Aires. Autor, entre outros livros, de Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo (Expressão Popular).