Juliano Medeiros
Os olhos do mundo estavam voltados para a Grécia em janeiro de 2015. Seria possível que um partido de esquerda, abertamente antineoliberal e até então marginalizado politicamente chegasse ao poder impulsionado por massivas manifestações populares? A hipótese representava, ao mesmo tempo, o pesadelo das elites europeias e da velha esquerda acomodada ao “consenso europeu” em torno da agenda neoliberal.
Ainda lembro — porque estava lá — da alegria e da esperança compartilhadas nas praças de Atenas. A vitória do SYRIZA e a eleição do jovem Alexis Tsipras como primeiro-ministro atestavam que a nova esquerda, nascida das lutas sociais contra as políticas de austeridade, podia vencer eleições, contrariando a velha tática de moderação política adotada há quase um século pela socialdemocracia.
O êxito do SYRIZA impulsionou partidos como o Podemos, na Espanha; o Bloco de Esquerda, em Portugal; e o Die Linke, na Alemanha. O fenômeno chegou a impactar até o tradicional Labour Party britânico, onde o socialista Jeremy Corbyn chegou a liderança do centenário partido. Mas as elites europeias não permitiriam que aquele movimento prosperasse. A derrota do programa anti-austeridade defendido pelo SYRIZA foi meticulosamente orquestrada pela União Europeia — com a decisiva colaboração de lideranças da própria esquerda radical grega, que se acovardaram diante das imposições da chamada Troika.
A rendição do SYRIZA foi um capítulo difícil de digerir. Forçou os partidos anticapitalistas europeus a buscar táticas alternativas. Na Espanha e em Portugal, a colaboração com os socialdemocratas tornou-se necessária para conter o avanço da extrema direita — embora tenha durado pouco. Na França, uma nova força se reorganizou em torno do veterano líder socialista Jean-Luc Mélenchon. Nos países nórdicos, a aliança com os partidos verdes surgiu como alternativa ao isolamento. Já na Alemanha, o Die Linke afundou em disputas internas e chegou a ser considerado à beira da extinção.
Para o regozijo da velha esquerda e dos setores mais sectários (muitos de orientação comunista), o ciclo de ascensão da nova esquerda foi interrompido tanto pelo avanço da extrema direita quanto pelas exigências da unidade. Em quase todos os países do continente, siglas como VOX, Chega, Front National e Liga do Norte ganharam espaço diante da crise da globalização neoliberal. A esquerda anticapitalista perdeu força, e os socialdemocratas tentaram se reinventar. Mas a sombra da derrota grega ainda ecoa fortemente.
Diante do impasse entre a necessidade de unidade contra a extrema direita e o dever de superar os limites da socialdemocracia, a esquerda radical europeia tenta se reorganizar. Com foco em temas como paz, transição ecológica, feminismo e taxação dos bilionários para financiar políticas sociais e combater desigualdades, partidos de nove países reuniram-se no Porto, em Portugal, para fundar um novo partido continental.
A Aliança da Esquerda Europeia (ELA, na sigla em inglês) é composta por França Insubmissa (França), Podemos (Espanha), Bloco de Esquerda (Portugal), Razem (Polônia), Partido da Esquerda (Suécia), Aliança Vermelha-Verde (Dinamarca), Aliança de Esquerda (Finlândia), EH Bildu (País Basco), além de Die Linke (Alemanha) e Sinistra Italiana (Itália), como observadores. Por ora, o novo partido não terá registro formal no Parlamento Europeu. Seus membros continuarão atuando em uma frente mais ampla — o GUE/NGL —, que reúne partidos comunistas de diversos países, além do Movimento 5 Estrelas, da Itália, e do Sinn Féin, da Irlanda.
O tempo das “internacionais” ficou para trás. A ideia de uma estratégia única para diferentes países já não faz sentido. Apesar da integração de mercados e culturas promovida pela globalização neoliberal, o plano nacional continua sendo o principal terreno de disputa por ideias e projetos de transformação. Ainda assim, é possível fortalecer a cooperação, a troca de experiências, a solidariedade e a identidade política entre partidos e movimentos que compartilham visões semelhantes em diferentes contextos. Existe uma gramática comum à nova esquerda que coloca o feminismo, a luta ambiental e o anticapitalismo no centro de sua agenda, o que pode favorecer ações conjuntas.
As dificuldades da esquerda radical europeia nos últimos anos não serão superadas apenas com medidas organizativas. Mas a criação de um novo partido europeu — um espaço de convergência capaz de impulsionar uma agenda comum diante das ameaças representadas pela escalada militar, pelo avanço da extrema direita e pelo agravamento da crise climática — é mais que bem-vinda. Assim como a Rede Futuro, na América Latina, representa um esforço para superar a fragmentação e buscar caminhos compartilhados. Os que apostaram no fim da esquerda radical estavam errados. O entusiasmo visto nesses dois dias de debates no Porto fortalece a unidade e estabelece marcos de ação conjunta que ajudarão a renovar o projeto da esquerda europeia.
*Juliano Medeiros faz parte da coordenação executiva da Rede Futuro e foi presidente do PSOL (2018-2023). É autor de A nova esquerda na América Latina publicado pela Autonomia Literária (2022).