Elon Musk e a “liberdade” para mandar no mundo

Ivan Longo

 

Elon Musk, bilionário sul-africano radicado nos Estados Unidos e dono da rede X (antigo Twitter), está travando uma batalha tresloucada sem precedentes contra o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, colocando em risco a integridade da democracia não só no país, como em outros lugares do mundo. O magnata, conhecido por sua postura megalomaníaca, agressiva e debochada, utiliza sua influência e dinheiro para desestabilizar governos, promover desinformação e insuflar comportamentos antidemocráticos ao permitir que o X seja uma plataforma para cometimento e incitação de crimes, desrespeitando leis que vão do Brasil à Europa.

A crise atingiu seu ponto mais alto entre os dias 28 e 29 de agosto, quando, após o X de Musk continuar desrespeitando ordens judiciais brasileiras e fechar seu escritório no Brasil, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, intimou o bilionário a indicar um representante legal no país. Esse representante, que deveria assegurar que a rede social pague as multas por descumprimento de decisões judiciais e responda aos processos nos quais está envolvida, entretanto, não foi indicado, e a pena para esta não indicação deve ser o bloqueio dos serviços do X em território brasileiro. Além disso, Moraes ordenou o bloqueio das contas bancárias da Starlink, empresa de satélites de internet de Elon Musk, como forma de pressioná-lo a cumprir as determinações legais.

Em uma série de publicações logo após Moraes intimar Musk, o bilionário, como de praxe, fez chacota e ameaçou o ministro, publicando uma foto de um homem calvo atrás das grades em um comentário no perfil do STF que divulgou a sentença. "Um dia, Alexandre, essa foto sua na prisão será real. Marque minhas palavras", disparou o dono da rede social. Em seguida, Musk iniciou a chacota, incitando ultradireitistas contra o ministro. "Você gosta do meu papel higiênico?", indagou o bilionário junto a uma imagem em que aparece o nome "Alexandre" em um rolo de papel higiênico.

 

Liberdade para quem? O contexto da crise entre Musk e a Justiça brasileira

A crise de Elon Musk com o sistema judiciário brasileiro teve início em abril de 2024, quando o bilionário atacou publicamente o ministro Alexandre de Moraes na rede X, acusando-o de impor censura no país. O "Twitter Files Brazil", um “dossiê” fajuto publicado pelo jornalista norte-americano Michael Shellenberger, serviu como ponto de partida para Musk e seus aliados no Brasil, incluindo figuras proeminentes do bolsonarismo, alegarem que o judiciário brasileiro estava censurando a liberdade de expressão.

Desde então, Musk intensificou sua campanha contra a Justiça do país, sustentando de maneira falsa e ardilosa que o Brasil vive uma "ditadura judicial" e questionando a legitimidade das eleições que elegeram Luiz Inácio Lula da Silva como presidente – endossando, assim, a narrativa golpista encampada por apoiadores de Jair Bolsonaro.

“Como Alexandre de Moraes se tornou um ditador? Ele mantém Lula na coleira”; “Colocou o dedo na balança para eleger Lula”; “Alexandre tem que ser julgado pelos seus crimes”; e “Ditador brutal” estão entre as publicações de Musk em ataque a Moraes.

Musk ainda afirmou, logo após a publicação do "Twitter Files Brazil”, que reativaria todos os perfis na rede X que tinham sido suspensos ou bloqueados por determinação da Justiça brasileira. As contas em questão são de extremistas que cometeram crimes e investigados pelo STF nos inquéritos das milícias digitais e dos atos golpistas em 8 de janeiro de 2023.

O “Twitter Files Brasil”, por sua vez, nada mais é que um compilado de prints de reclamações de executivos do X sobre determinações do judiciário brasileiro, que incluíam solicitações de dados de contas, exclusão de publicações e bloqueio de perfis de pessoas investigadas por divulgação de fake news, incitação ao ódio e articulação de atos golpistas. Ou seja, pessoas que estariam cometendo crimes, ou os incentivando, através da rede social.

Diante das provocações, ataques e ameaças, Moraes incluiu Elon Musk como investigado nos inquéritos das milícias digitais e da tentativa de golpe de Estado no Brasil. Em seu despacho, o ministro alegou que o bilionário incorre em obstrução à Justiça e incitação ao crime.

O jurista Pedro Serrano, renomado advogado constitucionalista e professor da PUC-SP, elogiou a postura do ministro do STF, afirmando que Moraes acertou ao tomar medidas contra o magnata, descrevendo a situação como "uma tirania absoluta" que precisava ser enfrentada.

"Uma coisa é certa, uma rede querer operar no Brasil sem se submeter às suas leis e instituições é querer se pôr como um poder privado acima da soberania estatal e, portanto, acima da Constituição, dos direitos e da democracia", afirma Pedro Serrano. "Uma tirania absoluta, sem limites legais e morais-políticos. A suspensão de atividades até que se submeta às nossas leis é uma obviedade que se impõe. O ministro @alexandre está correto nesse tema", avalia o jurista.

Já o empresário Felipe Neto, um dos maiores influenciadores digitais do Brasil, fez uma analogia que, apesar de um tanto quanto pesada e para lá de escatológica, descreve bem o que está acontecendo no país com as afrontas de Musk ao judiciário.

"Imagine que você convida alguém pra sua casa. Essa pessoa chega toda suja de merda. Você pede pra ela se lavar, mas ela entra, senta no sofá e se esfrega nos móveis. Você continua pedindo educadamente para obedecer o básico, ela ignora e grita que você quer acabar com a liberdade. Depois de inúmeras tentativas, a pessoa está na sua cama, se refestelando em fezes e mijo. Invade o quarto dos seus filhos, começa a estragar tudo. Você então diz que vai expulsar essa pessoa da sua casa. Ela grita que você é um tirano que deveria ser preso, pois a liberdade dela em cagar sua casa deve ser preservada acima de qualquer coisa. Quem está certo nessa situação?", questiona Neto.

O bilionário, entretanto, tem mais de um motivo para se somar às hordas golpistas bolsonaristas e tentar corroer o Estado Democrático de Direito no Brasil utilizando a muleta da “liberdade de expressão”. Todos eles remetem ao mesmo fator: negócios.

As receitas da rede X vêm caindo e o fato é que fake news e discurso de ódio “monetizam” mais que a verdade. Neste sentido, para o bilionário é interessante tentar minar debates sobre a regulação das redes sociais no Brasil e endossar um campo político extremista de direita que se sustenta através desta agenda antidemocrática.

Além disso, o Brasil é um potencial fornecedor de lítio para seus empreendimentos na Tesla - e o fato do país ser comandado por um governo próximo à China e que, recentemente, fechou um acordo de investimentos com a BYD, montadora chinesa de carros elétricos que é a principal concorrente de Musk, ajuda a explicar o ímpeto do bilionário em atacar as instituições do país.

Em entrevista à Fórum em abril, o sociólogo Sérgio Amadeu, professor da UFABC e um dos maiores especialistas em redes digitais do país, explicou que Elon Musk "tem uma concepção de liberdade de expressão que não é democrática" e que passa, essencialmente, por interesses financeiros. "A liberdade de expressão para Elon Musk é o direito dos poderosos exercerem, sem nenhum tipo de bloqueio, seu poder, principalmente o poder econômico".

Segundo o especialista, o bilionário permite em sua rede social mentiras sobre diversos assuntos "porque, para ele, a democracia é uma entrave ao poder da classe dominante, ao poder daqueles que têm dinheiro". Amadeu esclarece ainda que Musk adota o discurso da liberdade pois, para o bilionário, isso seria “sinônimo praticamente de aplicação da força e ele, nesse sentido, não concorda com liberdades democráticas".

Neste sentido, Musk se apoia em um conceito totalmente distorcido de “liberdade de expressão” para dar cabo aos seus negócios espúrios, passando por cima da legislação de um país soberano.

 

Não é só no Brasil

Essa postura golpista de Musk não se limita ao Brasil. Na Europa, a X está sob investigação por violar a Lei de Serviços Digitais (DSA), com a União Europeia considerando até mesmo a possibilidade de banir a plataforma em seu território.

O deputado francês Sandro Gozi, do Parlamento Europeu, afirmou que se Musk continuar ignorando as leis europeias que combatem o discurso de ódio e a desinformação, a Comissão Europeia bloqueará o X em todos os países que compõem o bloco. "A violência online sempre leva à violência offline", disse Gozi, ressaltando que "a extrema-direita esconde sua violência por trás da liberdade de expressão". Estima-se que a rede social X tenha 300 milhões de utilizadores em todo o mundo, sendo 100 milhões deles somente na União Europeia.

O impacto nocivo da X na disseminação de desinformação causou estragos também no Reino Unido recentemente. A rede social foi acusada de ser um dos principais canais de promoção de discursos de ódio que culminaram em manifestações violentas e racistas no país. Episódios recentes de ataques a imigrantes, amplamente motivados por fake news divulgadas na X, evidenciam o papel da rede social na amplificação de retóricas extremistas e na incitação ao ódio racial.

Thierry Breton, Comissário Europeu para o Mercado Interno e Serviços, expressou preocupação com a influência da X nas sociedades europeias, particularmente em relação ao aumento de ataques violentos contra minorias. Breton alertou Musk sobre as obrigações legais impostas pela DSA, que exigem uma moderação rigorosa do conteúdo para evitar a propagação de desinformação e violência. Em resposta a essas preocupações, Musk, em vez de cooperar, publicou um meme ofensivo, sublinhando sua postura de confronto e deboche – além da sensação de impunidade – para com as autoridades.

O comportamento de Musk em relação ao Brasil e à Europa reflete uma tendência mais antiga em suas ações globais, onde interesses econômicos e ambições pessoais se sobrepõem a considerações éticas e legais. Um exemplo notório disso foi seu suposto envolvimento no golpe de Estado que derrubou o ex-presidente Evo Morales na Bolívia em 2019. Na época, Musk foi acusado de ter patrocinado o golpe devido ao interesse no lítio boliviano, um mineral essencial para as baterias dos carros elétricos da Tesla, e a mudança de regime foi vista como favorável aos negócios do bilionário que quer mandar no mundo. A própria admissão de Musk em uma rede social de que "vamos dar um golpe em quem quisermos" gerou indignação internacional e jogou luz aos seus reais interesses: dinheiro e poder.

 

Redes não são “terra de ninguém”

A jornalista Renata Mielli, coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil, vai além. Em entrevista à Fórum, ela destacou que as ações de Musk fazem parte de uma estratégia para minar a confiança nas iniciativas de regulação das plataformas digitais.

"Faz parte desse alinhamento internacional. O Brasil tem um Projeto de Lei para regular as plataformas que não foi aprovado, principalmente, em razão do grande lobby das plataformas digitais (...) Isso é parte dessa estratégia internacional de usar de forma distorcida um direito fundamental à liberdade de expressão para atacar iniciativas nacionais que visam a proteger a esfera pública de debates, a integridade da informação e o debate político nos países", pontua a jornalista.

Alemanha, França, Reino Unido, Austrália, Canadá, China e Índia estão entre os países que, nos últimos anos, aprovaram leis de regulação das redes sociais, com normas específicas para a operação de grandes empresas de tecnologia, as chamadas big techs, estabelecendo sanções rigorosas, inclusive a possibilidade de exclusão do mercado em caso de violação.

 

Sem escritório no Brasil: estratégia para impunidade

Em resposta às multas aplicadas pelo STF por descumprir ordens judiciais, o X de Elon Musk anunciou em 17 de agosto o fechamento de seu escritório no Brasil, demitindo todos os funcionários locais, mas mantendo o serviço ativo no país. A justificativa dada pela empresa foi a necessidade de proteger seus funcionários das supostas ameaças de Alexandre de Moraes. "O povo brasileiro tem uma escolha a fazer - democracia ou Alexandre de Moraes", afirmou a rede social em um comunicado, numa tentativa clara de interferir na política interna do país.

Essa atitude foi duramente criticada por João Brant, secretário de políticas digitais do governo Lula, que classificou a decisão de Musk como uma estratégia para driblar as ordens judiciais.

"Quem está ameaçando a integridade e quem está gerando o risco para o funcionário é o dono da empresa, não a Justiça brasileira", disse Brant em entrevista ao Fórum Café, sugerindo que o bloqueio da plataforma no Brasil poderia ser uma medida necessária caso o X continue desrespeitando as ordens judiciais.

“Como mostra a ordem judicial publicada pelo próprio Twitter/X, a empresa vinha ignorando ordens judiciais e fugindo das intimações. Atitude patética para uma empresa que controla uma plataforma do tamanho que tem no Brasil. Agora fecham o escritório para 'proteger os funcionários' (que não teriam qualquer risco se recebessem as intimações) e é muito provável que deixem de cumprir qualquer ordem judicial. Estão forçando um pênalti e tentando jogar no STF o ônus político de uma decisão que tem fundo comercial”, escreveu o secretário nas redes sociais.

 

Não somos vira-latas

O embate entre Elon Musk e o STF do Brasil é mais do que uma simples disputa legal; é um confronto que coloca em jogo o futuro da governança digital e os limites do poder das grandes empresas de tecnologia. Musk, ao desafiar abertamente as leis e as instituições democráticas, tanto no Brasil quanto na Europa, está forçando governos a reconsiderar como lidar com as plataformas digitais que, em nome de uma falsa interpretação do conceito de “liberdade de expressão”, promovem desinformação, incitação ao ódio e até mesmo golpes de Estado.

O caso brasileiro, em particular, pode se tornar um marco na luta global por uma internet mais segura e responsável, onde a liberdade de expressão não seja usada como pretexto para a promoção de interesses privados em detrimento do bem comum.

Apesar de não ser o responsável pelas decisões judiciais contra o X, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que também vem sendo alvo dos ataques do bilionário, deu o recado nesta sexta-feira, 30 de agosto.

“Todo e qualquer cidadão de qualquer parte do mundo que tem investimento no Brasil está subordinado à Constituição brasileira e às leis brasileiras. Não é porque o cara tem muito dinheiro que o cara pode desrespeitar. Esse cidadão é um cidadão americano, não é um cidadão do mundo. Ele pensa que é o que? Este não é um país com complexo de vira-latas, que o cara gritou e a gente fica com medo. Esse cara tem que aceitar as regras desse país. E se esse país tomou uma decisão através da Suprema Corte, ele tem que acatar. Se vale para mim, vale para ele”.