Equador e o narcotráfico: crônica de uma morte anunciada

Por Thiago Rodrigues 

Imagem: Reprodução Outras Palavras

 

  1. Uma morte a ser investigada

Em 1981, um ano antes de ganhar o Nobel de Literatura, o escritor Gabriel García Márquez publicou uma de suas obras-primas: Crônica de uma morte anunciada. A novela inovou na forma narrativa de um dos mais famosos gêneros literários, o dos romances policiais. Assim como nas histórias de detetives, o narrador procura desvendar um crime.

No entanto, no livro de García Márquez, muitos na cidade onde vivia o personagem principal do livro Santiago Nassar, sabiam que ele seria morto. O texto, de fato, começa com o próprio assassinato de Nassar, revelando até mesmo a identidade dos assassinos. O narrador se interessa, na verdade, por outro mistério: entender por que, sendo assassinato de Nassar uma morte anunciada, ninguém fez nada para impedi-lo.

Hoje, ao tratar do Equador, país vizinho à Colômbia de García Márquez, a desventura de Santiago Nassar vem à mente porque a chamada ‘crise de segurança’ que atinge o pequeno país andino é, também, uma ‘morte anunciada’.

Para quem acompanha, estuda e analisa a história da economia política do narcotráfico – e das políticas de combate a este negócio transnacional – a situação atual do Equador pouco surpreende. Encravado entre Colômbia e Peru, os dois maiores produtores de cocaína do mundo desde o final dos anos 1970, o Equador não tem sido um país estranho à dinâmica internacional do tráfico de drogas.

Então, o que aconteceu para que a violência letal no Equador aumentasse tanto e tão rapidamente e para que os grupos narcotraficantes do país passassem a ser conhecidos além de suas fronteiras?

O argumento central deste texto é o de que o Equador atual está sob a ação de alguns elementos que são constantes à dinâmica internacional de um negócio de proporções multibilionárias: o tráfico de drogas. Estes elementos, presentes na América Latina e no Caribe desde meados dos anos 1970, têm sido presentes e ajudam a compreender a situação de muitos países que vêm sendo impactados diretamente tanto pelo crime organizado, quanto pelas políticas de repressão a ele. Aqui, estes elementos serão chamados de “leis da Economia Política do Narcotráfico (EPN)”.

Usar o termo “leis” não significa entender que existam características inalteráveis definidoras do narcotráfico, independente do lugar e da época histórica. Estas “leis” não são dogmas positivistas, mas variáveis precariamente constantes, ou seja, são constantes apenas diante de fatos históricos concretos, num período histórico determinado (dos anos 1970 em diante) e numa região do planeta (as Américas). Recuperando uma reflexão de Friedrich Engels sobre o método histórico-dialético, “as provas [dos que se analisa] devem ser buscadas na história”.

E foi buscando na história da proibição das drogas, da formação dos regimes repressivos contra o narcotráfico, na organização da economia internacional do tráfico nas Américas desde o começo do século XX, que meus vinte e cinco anos de pesquisa apontaram para a presença de alguns fundamentos que, mesmo com peculiaridades e variações de país para país, constituem uma estrutura – móvel, sem dúvida – que permite analisar, comparar e compreender as dinâmicas do narcotráfico e da ‘guerra às drogas’.

Procurar estes padrões e suas diferenças permite a teorização sobre a questão do narcotráfico/guerra às drogas e não apenas a descrição ou a reunião de fatos sobre o assunto que parecem não se relacionar. Em outras palavras, é possível tratar cientificamente de um assunto que costuma ser marcado por juízos morais, pelo sensacionalismo jornalístico e por avaliações do senso comum. Com isso, é possível entender a questão do narcotráfico/guerra às drogas como um problema de pesquisa que merece e precisa ser compreendido para que se possam pensar soluções eficazes e eficientes para as situações graves e trágicas que o envolvem.

Assim, é possível analisar casos singulares entendendo que nenhum país possui um contexto isolado para uma questão que é ontologicamente (essencialmente) internacional e transnacional. Estudar a questão do narcotráfico no Equador, portanto, significa entendê-la em relação dialética e constante com elementos internos ao país e elementos externos referentes tanto a outros países quanto à dinâmica internacional do narcotráfico. Desse modo, é possível comparar casos e, com isso, compreender as semelhanças e diferenças de forma sistematizada e adensada. Como afirmam Arend Lijphart e Stephen Van Evera, o método comparado de análise em ciência política identifica padrões sem os quais não é possível realizar estudo algum capaz de avançar na compreensão de um dito fenômeno.

Para esboçar esta análise, o artigo se organiza em quatro breves seções além desta introdução nas quais serão apresentadas as características gerais de cada uma das “leis” da EPN, tomando o atual do Equador como análise de caso, de modo a provocar uma leitura que, como sugere R.B.J Walker, estimule a nossa imaginação política para ir além dos limites interpretativos impostos pela lógica da ‘proibição das drogas’ e da ‘guerra contra o narcotráfico’.


2. A ‘guerra’ mais longa do século XX

O que acontece hoje no Equador é resultado de processos que fazem parte da lógica da chamada ‘guerra às drogas’. Esta expressão é a tradução literal de ‘war on drugs’, termo eternizado pelo presidente dos Estados Unidos da América Richard Nixon – no mandato entre 1969 e 1974 – ao nomear assim a política de combate à produção e ao consumo de um conjunto de drogas que estavam sendo cada vez mais consumidas pelos estadunidenses.

É importante frisar de que aquela ‘guerra’ não se dirigia a todas as drogas – substâncias químicas, naturais ou sintéticas, que provocam alterações no funcionamento do corpo quando nele introduzidas – e tampouco de todas as drogas psicoativas – aquelas que interagem com o sistema nervoso central provocando estados alterados de consciência, percepções sensoriais inusuais e alterações de comportamento.

Tratava-se (e ainda hoje se trata) de uma guerra bastante seletiva. Seletiva quanto às substâncias e quanto às pessoas perseguidas e criminalizadas. No que dizia respeito às substâncias em si, algumas drogas psicoativas eram entendidas como provocadoras de comportamentos, efeitos ou sensações ao mesmo tempo ‘imorais’ e prejudiciais à saúde. Exemplos delas: a maconha, o LSD, a heroína e a cocaína. Outras não eram alvo do mesmo repúdio: anfetaminas usadas como remédios para emagrecer, antidepressivos receitados por psiquiatras como a iproniazida (comercializada a partir de 1957), o tabaco, o álcool.

No que dizia respeito aos usuários e aos vendedores, também não havia uma recriminação homogênea: negros, pobres em geral, hispânicos, hippies e contestadores políticos eram associados às drogas ‘imorais e mortais’. Já o cidadão médio americano, o W.A.S.P. – sigla em inglês para ‘anglo-saxão branco e protestante –, usava drogas vendidas nas farmácias, receitadas por médicos ou compartilhadas em situações socialmente respeitáveis.

Nixon não inventou a lógica que dava (e ainda hoje continua dando) fundamento para a ‘guerra às drogas’. Esta lógica tem uma história complexa, iniciada ainda no século XIX, quando a revolução da indústria fármaco-química capitalista transformou novas e antigas substâncias psicoativas em produtos de massa vendidos em escala mundial. A reação moralista ao uso de algumas destas drogas teve como alvo principal as substâncias de uso ‘tradicional’ – ou seja, aquelas pouco ou nada industrializadas e associadas a classes mais pobres e imigrantes – deixando, em geral, espaço e tolerância para as drogas processadas pelas grandes farmacêuticas.

Curiosamente, foi a cocaína, uma exceção a esta regra, a droga que impulsionou o mercado do tráfico de drogas nas Américas a partir dos anos 1970. Em 1859, o químico alemão Albert Niemman isolou 80% dos alcaloides presentes na folha de coca, inventando a cocaína. Quando na corrente sanguínea – injetada ou absorvida por mucosas –, a cocaína mostrou-se um poderoso estimulante. Quando usada sobre os tecidos, converteu-se em excelente anestésico.

Não demorou para a cocaína se transformar em produto versátil, vendido sob vários formatos e para muitas finalidades. De balas contra a dor de dentes e refrigerantes ‘revigorantes’ a experimentações psiquiátricas – como as realizadas por Sigmund Freud – a cocaína foi produzida e vendida legalmente em quase todo o mundo até os anos 1920. Naquela década, avançou o que William McAllister chamou de ‘diplomacia das drogas’, um conjunto de acordos internacionais que estabeleceu um regime de regras globais para controlar a produção, o mercado e o uso de algumas drogas psicoativas.

Após a Segunda Guerra Mundial, este regime foi aprimorado rapidamente, já sem muitas resistências de antigas potências produtoras de psicoativos como a Alemanha – derrotada em 1945 – e o Reino Unido – que ficou sob dependência econômica e militar dos EUA. Consolidou-se, então, o regime proibicionista global, ou simplesmente, o Proibicionismo. A partir dos anos 1960, a cocaína foi incluída no rol das drogas completamente banidas para todo uso médico ou recreativo em todo o mundo.

O que isso tem a ver com o Equador de hoje? Vejamos.

 

3. Dos Andes para o mundo

Cada sociedade, em uma determinada época, tem a(s) sua(s) drogas de predileção, conforme os efeitos psicoativos desejados. Isso se deve à confluência de complexos fatores sociais (valores e costumes, usos religiosos e terapêuticos, domínio tecnológico, relações econômicas e de poder) e naturais (a presença de plantas, fungos ou animais a partir dos quais podem ser extraídas substâncias psicoativas). Nos anos 1960, as drogas ilegais mais utilizadas nos EUA eram as psicodélicas (como a maconha e o LSD) e a heroína (disseminada entre brancos pobres, ex-soldados do Vietnã e comunidades pobres).

A ‘guerra às drogas’ de Nixon começou contra esses alvos. No entanto, após as crises do petróleo e da superprodução que colocaram fim aos ‘anos gloriosos do capitalismo’ do pós-II Guerra Mundial, o novo ciclo econômico ocidental iniciado nos anos 1970 foi liderado pelo mercado financeiro, pela formação de grandes conglomerados multinacionais, pelas indústrias de tecnologia eletrônica e pela globalização comercial. Em Wall Street e na City de Londres, novas drogas passaram a ser buscadas em consonância com as características da economia neoliberal: hiper-individualismo, disposição para o trabalho incessante, ousadia, quebra de qualquer solidariedade de classe, busca pelo enriquecimento rápido. A droga conhecida que caía como uma luva para essa demanda foi a então já centenária cocaína.

Como ela era proibida há décadas, rapidamente as redes de tráfico montadas para o comércio de outras drogas, como a maconha, foram adaptadas para fornecer ilegalmente a desejada cocaína. A matéria-prima para a cocaína se encontra na folha de coca e seus alcaloides. O arbusto da coca mais produtivo é o que nasce no altiplano andino. Desse modo, diante da alta demanda dos centros do capitalismo no Norte Global, a milenar prática do cultivo de folhas de coca nos Andes passou da dimensão voltada para os usos tradicionais da folha para o tamanho de uma indústria ilegal bilionária e transnacional.

Eis a primeira lei da economia política das drogas: havendo demanda, haverá oferta, como em qualquer mercado. Mas esta demanda não é usual. A demanda por drogas é “inelástica”, ou seja, o usuário não passa a consumir menos ou deixa de consumir se ela fica mais difícil de comprar ou de encontrar. Assim, se a repressão aperta e a oferta escasseia, o usuário toma uma destas atitudes: 1) paga mais caro pela droga que consume; 2) consome a mesma droga, mas adulterada para ficar mais barata; 3) busca outra droga com efeito similar.

Foi nesse contexto da explosão de consumo da cocaína em que a ‘guerra às drogas de Nixon’ transformou-se nos anos 1980 na ‘guerra às drogas’ de Ronald Reagan e George Bush (pai). A lógica, no entanto, foi a mesma: focar na repressão à oferta e à demanda. Isso significou a transformação da war on drugs em uma grande estratégia geopolítica dos EUA para a América Latina e o Caribe em tempos nos quais a ‘ameaça tradicional’ da Guerra Fria – o comunismo – enfraquecia o seu apelo como ‘inimigo letal’ sob os apertos de mão entre Reagan e Mikhail Gorbatchev. Significou, também, nos EUA, o aumento da repressão aos traficantes do varejo e aos usuários, sobretudo os mais pobres, negros e hispânicos. Começou o processo que levaria ao atual superencarceramento no país.

Enquanto isso, na Colômbia, organizaram-se grupos com maiores recursos econômicos, de violência e de influência política. Por essa razão, foram os colombianos que mais investiram em laboratórios para a transformação da pasta base de coca (primeira e mais rústica fase de refino) em cocaína. Foram eles, também, que estabeleceram e controlaram as principais rotas de distribuição internacional desta droga.

Naquela década e na seguinte, a mira da war on drugs voltou-se, portanto, aos ‘cartéis’ colombianos. A Colômbia tornou-se um dos países mais violentos do mundo, numa combinação explosiva entre guerra civil revolucionária, paramilitarismo de ultradireita, crime organizado e violência de Estado. Grupos ilegais no Peru e na Bolívia lidavam com os produtores de folhas de coca, empobrecidos e explorados camponeses de origem indígena, e vendiam a pasta base para os colombianos. O Equador estava ali, servindo de espaço para rotas alternativas do narcotráfico, ponto de refúgio e de lavagem de dinheiro.

Em 1993, Pablo Escobar foi assassinado em Medellín por um comando formado por policiais, militares e paramilitares. Na sequência, o rival Cartel de Cali assumiu a hegemonia do mercado mundial de cocaína. Durou pouco. Seus líderes, os irmãos Rodríguez Orejuela, logo foram presos e mortos dentro da prisão. O desmantelamento dos grandes cartéis colombianos foi comemorado pelos governos da Colômbia e dos EUA como uma derrota da qual o narcotráfico jamais se recuperaria. Mas se recuperou, pois se há demanda, há oferta (a primeira lei da EPN). Ligada à “primeira lei”, passa a atuar a segunda lei da EPN: o “efeito balão” (ou “bexiga”).

Essa metáfora é utilizada para indicar que, tal qual um balão cheio de ar infla de um lado se o outro é apertado, a economia das drogas ilegais quando reprimida em um lugar se move para a entrada de novos atores e/ou para a mudar para outras regiões ou países. O fim dos ‘cartéis de Medellín e de Cali’ incentivou que frentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) passassem a buscar mais intensamente fundos no tráfico de drogas, tributando a produção do folhas de coca e de cocaína e, em alguns casos, participando da própria produção e tráfico da droga. Além disso, grupos paramilitares formados com a complacência e apoio do Estado para combater as FARC e outros movimentos sociais e guerrilheiros passaram a atuar como narcotraficantes. Foi o caso das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), o maior deles nos anos 1990 e 2000. Dos destroços dos cartéis surgiram as ‘bandas criminales’ (BACRIM), grupos narcotraficantes menores e, portanto, com menos recursos para distribuir globalmente a cocaína.

O enfraquecimento relativo dos grupos colombianos fez com que outras organizações criminosas vissem oportunidades de negócios, especialmente as mexicanas. Nos anos 1980 e 1990, grupos como o “Cartel de Sinaloa” e o “Cartel do Golfo” dominavam o negócio de contrabandear a cocaína colombiana para os EUA. Esse caminho tornou-se interessante quando, a partir do governo Reagan, a rota internacional utilizada pelos colombianos para transportar cocaína para os EUA – o Caribe – foi ‘congestionada’ por operações militares de interceptação.

Após a era dos cartéis de Medellín e de Cali, os grupos mexicanos se fortaleceram, passando a lucrar mais porque os colombianos passaram a depender mais deles. Ao lado de cocaína e de maconha, outras drogas começaram a aparecer de modo “promissor” para os ‘cartéis mexicanos’: as drogas sintéticas, como as metanfetaminas e os opióides. Eis o “efeito balão” em funcionamento: o narcotráfico não “termina”, mas se desloca evitando a repressão e abrindo novas frentes de ação.

Qual foi a resposta do Estado colombiano para lidar com a continuidade do narcotráfico na era pós-Escobar? A mesma resposta de antes: ‘guerra às drogas’. Em 1999, o presidente Andrés Pastrana assinou com Bill Clinton o Plano Colômbia. Seus sucessores – Álvaro Uribe e George W. Bush (filho) – o colocaram em ação. Uribe foi condescendente com os paramilitares e negociou para eles uma desmobilização. Já com as FARC, foi duro, aplicando os recursos do Plano Colômbia e da sua continuação – o Plano Patriota – para quase nocautear a guerrilha. Quem operou estes planos foi o ministro da defesa de Uribe – Juan Manuel Santos – que, em 2010, venceu as eleições para presidente. Foi com as combalidas FARC que Santos negociou e firmou, em 2016, um plano de paz e de desmobilização.

Nesse meio-tempo, os grupos mexicanos cresceram, cindiram, novos apareceram e começaram a competir pelas rentáveis rotas para o mercado estadunidense. O México dos anos 2000 passou a assistir o funcionamento da Terceira Lei da EPN: sob a ilegalidade, quanto mais atores no negócio, mais violenta tende a ser a competição por territórios e rotas.

O México tornou-se, então, um dos países mais violentos do mundo. Seus ‘cartéis’ multiplicaram-se e aperfeiçoaram métodos para traficar drogas para os EUA e para eliminar seus inimigos, com farto uso de violência extrema transformada em espetáculos públicos macabros. Qual foi a resposta do Estado mexicano para lidar com o fortalecimento do narcotráfico no país? Fácil resposta: a ‘guerra às drogas’.

Em 2007, debilitado por uma vitória eleitoral contestada por suspeita de fraude, o presidente mexicano Felipe Calderón buscou ganhar legitimidade interna pela velha fórmula de declarar uma ‘guerra’. No entanto, a ‘guerra’ de Calderón era para dentro do México: a ‘guerra frontal aos cartéis do narcotráfico’.

Calderón conseguiu, de imediato, apoio popular e suporte financeiro dos EUA. Bush (filho) e ele assinaram um acordo chamado Iniciativa Mérida que, em linhas gerais, repetia a fórmula do Plano Colômbia: declarar o tráfico de drogas uma ‘ameaça à existência do México’ e transformar as forças armadas mexicanas em grupos de elite antinarcotráfico. O Plano foi estendido a países da América Central e do Caribe que viram as atividades do narcotráfico continuarem a crescer.

Em 2012, Calderón deixou a presidência com um saldo de mortos calculados entre 120.000 e 150.000 mortos, a maioria civis e sem comprovação de envolvimento com grupos criminosos. Em 2006, no início da ‘guerra’, existiam quatro cartéis principais (Sinaloa, Golfo, Tijuana e Juárez). Em 2012, além destes quatro, havia aparecido grupos como Los Zetas, Los Caballeros Templarios, La Familia Michoacana e o Cartel Jalisco Nueva Generación.

Os dois sucessores de Calderón – Enrique Peña Nieto (2012-2018) e Andrés Manuel López Obrador – prometeram acabar com a ‘guerra’ e desmilitarizar o país. No entanto, a guerra continuou. O mandato de López Obrador terminará em dezembro de 2024 com o país ainda mais militarizado e violento. Sua promessa de levar as forças armadas aos quartéis resultou na criação de uma Guarda Nacional militarizada e com membros oriundos das forças armadas e com a ampliação do papel dos militares no Estado. Hoje, a Secretaría de Defesa (Exército e Força Aérea) e a Secretaría de Marina administram portos, aeroportos, concessões de autoestradas, de empreendimentos imobiliários, de hotéis e cassinos, além de continuarem envolvidas no combate ao narcotráfico.

Enquanto isso, no Equador, a situação de ‘país envolvido lateralmente no narcotráfico’ mudou de figura rapidamente. O que aconteceu?


4. A bola da vez

O Equador, a partir de 2015-2017, passou a sentir mais fortemente os efeitos do efeito balão. Os planos repressivos na Colômbia, no México, no Caribe e na América Central aumentaram para os grupos narcotraficantes a dificuldade do uso das rotas caribenha/Oceano Atlântico e centro-americana, o que estimulou intensificar o uso de rotas pelo Oceano Pacífico. O Equador conta com portos movimentados, como os de Guayaquil (maior cidade e centro econômico do país) e de Manta, com muitas rotas marítimas estabelecidas com os EUA, com a Ásia e com a Europa (via Canal do Panamá). Menos vigiados e menos visados pela repressão local e internacional, estes portos tornaram-se alternativas rentáveis para o narcotráfico.

Em segundo lugar está a já comentada posição geográfica do Equador. As fronteiras com Colômbia e Peru totalizam 1.440km em território andino e/ou de densa floresta amazônica. São áreas com pouca ocupação humana e que servem historicamente como espaço de trânsito e local de refúgio tático para grupos armados dos países vizinhos, especialmente as FARC. Além disso, nestas regiões, grupos ilegais locais já estavam em operação, dedicados à mineração ilegal, ao contrabando e ao próprio tráfico de drogas. Estes grupos passaram a ser contatados por outros maiores para movimentar um volume mais expressivo de cocaína em direção ao litoral do Equador.

A procura maior pelos grupos equatorianos levou a parcerias com organizações do narcotráfico internacional, particularmente os mexicanos. Nos episódios de violência de janeiro de 2024, escaparam da prisão líderes dos dois mais expressivos grupos narcotraficantes do Equador: José Adolfo Macías Villamar, o “Fito”, e Fabricio Colón Pico, o “Capitán Pico”. Fito é chefe de Los Choneros, grupo aliado ao mexicano Cartel de Sinaloa. Pico é líder de Los Lobos, organização vinculada ao Cartel Jalisco Nueva Generación.

A intensificação do narcotráfico no Equador se deu num contexto de “crime desorganizado”, ou seja, com muitos pequenos grupos atuando, sem a hegemonia de um deles ou um equilíbrio de poder estabelecido entre um pequeno grupo deles. Em suma, não havia nem monopólio, nem oligopólio, e sim competição aberta entre eles. Com o acirramento do interesse dos cartéis mexicanos e das bandas criminales colombianas, a competição por rotas, territórios e bases operacionais ficou mais intensa. Entrou em cena, então, a mencionada Terceira Lei da EPN: maior competição na ilegalidade, ocasiona maior violência.

Para competir violentamente, os grupos começaram a se equipar com armamentos mais poderosos e em maior quantidade. A disputa pelos portos, por territórios nas zonas de fronteiras e nas periferias das maiores cidades ficou mais agressiva e, isso ajuda a compreender por que o Equador passou de 5,6 mortos a cada 100.000 habitantes em 2017 para 42,5 mortos a cada 100.000 habitantes em 2023.

A violência não se deu apenas entre os grupos ilegais, mas deles com o Estado que foi lidando com o aumento da atividade narcotraficante no país a partir da velha e conhecida fórmula da repressão policial e do aumento do encarceramento dos mais jovens e pobres dos equatorianos. Entre 2008 e 2021 o número de presos triplicou passando de 13.125 para 38.693.

Dos 44.626 presos entre janeiro e junho de 2023, a maioria (21.568) foi de jovens entre 18 e 30 anos (39,3% do total). A maioria também é pobre e conta com baixo nível de educação formal (apenas 45% têm a educação básica completa). Os presos por narcotráfico eram, em 2021, 28% dos presos. A maioria dos presos é do sexo masculino (93% do total), mas como ocorre em países como o Brasil, entre as mulheres, a maioria cumpre pena por tráfico de drogas (54,8%). Ser pobre e com baixa instrução formal significa, no Equador, ser uma pessoa de descendência indígena ou afrodescendente. Eis aqui Quarta Lei da EPN: a repressão segue a lógica da seletividade penal.

Não são apenas pessoas pobres e das classes trabalhadoras e precarizadas aquelas envolvidas com o tráfico de drogas. No entanto, são estas as faixas da população visadas pela repressão. Entre elas reúne-se o maior número de mortos/as e de presos/as vítimas da ‘guerra às drogas’ e da ‘guerra entre cartéis’. Desse modo, a ‘guerra’ contra o tráfico funciona como uma potente tática de controle social da pobreza e dos mais pobres, agindo como um instrumento que contém pela violência (morte ou prisão) os segmentos mais numerosos e mais vulnerabilizados de sociedades nas quais se aprofundam a concentração de renda, os índices de pobreza e, em consequência, aumenta a instabilidade social.

No Equador, o crescimento das atividades do narcotráfico encontrou um elemento adicional vindo da natureza estrutural do capitalismo global. Com uma balança comercial que depende da exportação de produtos primários (petróleo, minérios, banana, café, cacau, flores e pescados), o Equador sofreu um grande impacto com a diminuição da demanda mundial por commodities nos anos 2010, especialmente pela diminuição de compras de seu principal parceiro comercial, a China.

A crise econômica colocou em xeque o modelo de redistribuição de renda e de crescimento de tipo nacional-desenvolvimentista levado adiante pelo governo de Rafael Correa (2007-2017). A resposta do eleitorado veio com protestos nas ruas e a eleição de presidentes com propostas de reajustes macroeconômicos neoliberais, o que aprofundou a crise. Os governos de Lenín Moreno (2017-2021) e Guillermo Lasso foram marcados (2021-2023) por protestos de massa, levantes nas ruas, violência repressiva do Estado e aumento da violência. Com movimentos sociais e indígenas fortes e bem-organizados, os governos neoliberais não conseguiram fazer frente às demandas contra os cortes no investimento social. A repressão aumentou, resultando em dezenas de mortos e centenas de presos políticos. Os níveis de pobreza extrema e a falta de oportunidades de trabalho cresceram com velocidade. Dados da ONU de 2023 indicam que hoje, nas áreas urbanas equatorianas, 23% vivem em níveis agudos de pobreza multidimensional – índice que mede renda de até US 1,90 por dia mais nível de acesso a educação, saúde, saneamento básico, segurança alimentar, entre outros –, enquanto em zonas rurais a porcentagem se eleva para 70%.

Assim, a combinação entre grave crise social, econômica e política num contexto de redimensionamento da economia transnacional do narcotráfico formaram o quadro que nos ajuda a compreender a situação atual do Equador. Foi nesse cenário que, em maio de 2023, Guillermo Lasso, diante da possibilidade de ser impedido por crimes de corrupção, decidiu dissolver o Congresso e convocar eleições antecipadas de modo a escolher um sucessor para levar até o final o seu mandato (fevereiro de 2025).

A campanha eleitoral foi marcada pela violência política, com atentados e assassinatos de candidatos. O mais significativo deles foi o ataque que vitimou Fernando Villavicencio, jornalista que concorria à presidência com um programa orientado pelo combate à corrupção e ao narcotráfico. No dia 09 de agosto de 2023, Villavicencio foi assassinado ao sair de um comício. O atentado, executado por sete matadores colombianos, foi atribuído ao grupo Los Lobos. A comoção gerada pela morte de Villavicencio, ocorrida uma semana antes das eleições, impactou fortemente os resultados eleitorais. A candidata apoiada por Rafael Correa, Lucia Gutiérrez, foi ao segundo turno com Daniel Noboa, que figurava em sexto lugar nas pesquisas.

Noboa acabou vencendo o segundo turno. O novo presidente é filho de uma das mais ricas e influentes famílias equatorianas, dona da maior empresa exportadora de bananas. Não tinha experiência alguma como gestor público, mas prometeu levar ‘eficiência empresarial’ para o governo do Equador. Prometeu, também, quebrar a estrutura de funcionamento de ‘crime organizado’ no país.

Noboa indicou que isolaria os líderes dos principais grupos ilegais equatorianos. Foi isso que impulsionou ‘Fito’ e ‘Pico’ a escaparem da prisão, além de promoverem atentados em nove das vinte e quatro províncias do Equador, incluindo um carro-bomba em Quito e a invasão de um canal de TV em Guayaquil durante um telejornal ao vivo. Os ataques visavam a constranger o Estado a reverter decisões que desmobilizassem os esquemas de funcionamento e elos de influência já estabelecidos entre os grupos do narcotráfico, agentes públicos e empresariais.

Na sequência destes eventos, Noboa decretou, pelo Decreto n. 110 de 08 de janeiro de 2024, o “estado de exceção”, dispositivo constitucional que dá ao Estado poderes repressivos e jurídicos extras para lidar com uma grave crise político-social interna. No dia seguinte, Noboa publicou outro decreto (o de n. 111) que é mais significativo para entender a forma pela qual se espera enfrentar a crise de segurança no país.

Nele, Noboa afirma que o Equador “enfrenta índices de violência crescente, penetração do crime organizado no tecido social e institucional, e atos terroristas que atentam contra a soberania territorial e a soberania do Estado”. O presidente vai adiante e defende que o “crime organizado se tornou em um ator não-estatal beligerante” capazes de “planejar, coordenar, executar e assumir (...) atos de violência planejados e indiscriminados contra a população civil”. Esta caracterização abre a possibilidade de que, no parágrafo seguinte, Noboa classifique os “atos” destes grupos como “terroristas”. Deste modo, o documento estabeleceu uma conexão com o direito internacional a partir da condenação ao terror, citando dois convênios contra o terrorismo aprovados pela Assembleia Geral da ONU em 1999 (antes, portanto, dos atentados nos EUA, em 11 de setembro de 2001).

Realizada a ligação discursiva entre “crime organizado”, “atos beligerantes” e “terrorismo”, o documento nomeia 22 grupos ilegais – incluindo Los Choneros e Los Lobos – e ordena às Forças Armadas “executar operações militares para neutralizar [esses grupos].”

O Decreto n. 111 pode ser lido como um claro “movimento de securitização” conforme o conceito defendido pelos teóricos da Escola de Copenhague. Nele, um “ator securitizador” (o Poder Executivo do Estado) afirma enfrentar uma “ameaça existencial” (o perigo de dissolução do ‘tecido social e institucional’) perpetrada por “grupos não-estatais” definidos como “atores beligerantes e terroristas”. Diante do tamanho da ameaça, o presidente decreta “estado de exceção”, o que retira o tema do campo do “debate político” inserindo-o no campo da “segurança nacional”. Sendo identificados como “beligerantes e terroristas”, tais grupos não podem ser, na lógica do decreto, enfrentado pelos meios repressivos regulares do Estado (a polícia). Logo, o presidente aciona os meios mais poderosos à disposição do Estado – e voltados à guerra – que são as Forças Armadas. Segundo a Teoria da Securitização, o Decreto n. 111 é o “ato de fala” (speech act) que define e regulamenta a securitização do crime organizado no Equador.


5. Tragédia anunciada

Apesar de ser um “text book” de processo de securitização, o “estado de beligerância interna” de Noboa também não é original. Nas últimas três décadas, processos similares ocorreram e ocorrem na Colômbia, no Peru, em El Salvador, na Guatemala e no México. Os resultados nestes outros países foram coerentes com o que descreve e prevê as “quatro leis da EPN”: a violência entre Estado e grupos armados ilegais cresce, os grupos narcotraficantes mais poderosos absorvem os menores e conseguem enfrentar o Estado, novas rotas e territórios são disputados em países menos visados pela “securitização”, o número de vítimas fatais entre membros de grupos criminosos e agentes de segurança do Estado cresce, assim como o de cidadãos sem envolvimento algum com o crime organizado, as prisões permanecem superlotadas de jovens pobres e as atividades do narcotráfico não diminuem no cômputo geral, mantendo-se pela via da adaptação ou pelo deslocamento tático para outras regiões.

As Forças Armadas que se tornam “forças antinarcotráfico” veem crescer as denúncias de violação de direitos humanos, de abuso de poder e de corrupção por conta do contato direto com o crime organizado. Além disso, têm as suas já limitadas capacidades operacionais desviadas das suas funções precípuas – a defesa das nações contra ameaças externas – para funções de tipo policial, como perseguir criminosos, executar mandados de busca, destruir laboratórios clandestinos, patrulhar ruas, invadir favelas, realizar blitze em ruas e estradas etc.

O governo Noboa nomeou de Plano Fênix a sua “guerra contra o narcotráfico”, anunciando, no dia 13 de janeiro de 2024, um acordo a ser assinado com os EUA no valor de US 200 milhões para financiar as ações de securitização previstas. O que se pode esperar do Plano Fênix?

Lembrando das quatro leis da EPN – 1) demanda inelástica/oferta resiliente; 2) “efeito balão”; 3) maior competição = mais violência e 4) punição seletiva dos mais pobres – e reparando nas características do Plano Fênix é de se esperar o pior para o Equador. Sabendo das semelhanças gerais entre o contexto histórico-político, social e econômico do Equador atual, da dinâmica internacional da economia do narcotráfico, das medidas antinarcotráfico tomadas pelos Estados individualmente e dos seus resultados, além das constantes pressões diplomático-militares e econômicas da ‘guerra às drogas’ dos EUA sobre a América Latina e o Caribe, é de se esperar que o Plano Fênix reproduza efeitos do Plano Colômbia, da Iniciativa Mérida e de tantos outros colocados em marcha desde os anos 1970. Diferentemente do que sugere o título do plano, o Equador não deve ressurgir das cinzas.

Assim, a situação trágica de violência enfrentada pelo Equador é produto de uma dinâmica geral do narcotráfico e das políticas de repressão a ele. Elementos domésticos/internos ao Equador somam-se a questões internacionais fazendo com que o país se torne “a bola da vez” tanto para as lucratividades do crime transnacional, quanto para as lucratividades da indústria bélica e de segurança, grandes forças do capitalismo global que aumentam as suas já imensas receitas vendendo desde coturnos e uniformes até radares, projetos de prisões e helicópteros para viabilizar a ‘guerra ao narcotráfico’.

As vítimas de mais este capítulo da ‘guerra contra o narcotráfico’ são as mesmas de sempre: os mais jovens e pobres, as mulheres proporcionalmente mais presas do que os homens, os/as afrodescendentes, os/as camponeses/as, os/as favelados/as e habitantes das periferias. Eles/as são as vítimas preferenciais desta ‘guerra’ que coloca frente a frente policiais, criminosos e civis que são, geralmente, da mesma classe social e do mesmo tom de pele.

Por esse motivo, a “crise de segurança no Equador” é a crônica de uma morte anunciada, uma tragédia que terá vítimas bem reais e que, apesar disso, não abalará nem as estruturas do crime organizado transnacional, nem as bases das iniquidades e injustiças do Equador.

A não ser que seja um tolo, uma pessoa, na sua vida cotidiana, não repete uma mesma “solução” para um problema se ela se mostra sistematicamente fracassada. As “soluções” da “guerra ao narcotráfico” vêm sendo fracassadas e tentadas novamente há cinco décadas. São néscios os “tomadores de decisão”, ou o fracasso desta “guerra” produz imensos ganhos políticos, geopolíticos, de controle social e financeiros que justificam errar sistematicamente? Tolo é quem ainda legitima esta ‘guerra’ sem notar a sua lógica e os seus objetivos. Daí a importância de, parafraseando Marx, usar a crítica da ‘proibição das drogas’ e da ‘guerra contra o narcotráfico’ como arma para denunciar os seus efeitos nefastos e viabilizar outros caminhos e soluções.

 

Thiago Rodrigues é cientista político, professor associado no Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenador do grupo de pesquisa Segurança e Democracia nas Américas (SeDeAMERICAS), membro de RedeMarx (Rede de Pesquisadores Marxistas) e bolsista de produtividade em pesquisa PQ do CNPq. É filiado ao PSOL-RJ e membro do Setorial Antiproibicionista do partido. Contato: th.rodrigues@gmail.com; X: @thethiagor