Fim de um ciclo

Por Martin Mosquera

Editorial da Revista Jacobin Latinoamérica

 


Em janeiro de 2015, um editorial da The Economist assinalava: “Tsipras lançou o maior desafio até agora para o euro, e para Angela Merkel, chanceler alemã, que liderou o caminho para a austeridade no continente”. O breve comentário sintetizava a inquietude das elites ocidentais nesse período: o Syriza estava chegando ao poder na Grécia, porém esse não era o único problema. Poucos meses antes, o Podemos cresceu explosivamente na Espanha, Jeremy Corbyn desafiava a liderança do Partido Trabalhista a partir de uma posição até então marginal dentro da esquerda britânica e, do outro lado do Atlantico, Bernie Sanders iniciava sua notável campanha nas primárias democratas nos EUA.

As turbulências não se limitavam aos países capitalistas desenvolvidos, pelo contrário, nas periferias mobilizações sociais e políticas ocorriam a mais tempo. Na América Latina, o ciclo progressista - que não se referia unicamente a uma série de governos heterodoxos - mas também a movimentos sociais fortes e a relações de forças parcialmente favoráveis, ainda mostrava vitalidade. Entretanto, ainda que a Primavera Árabe estivesse experimentando revezes, a situação na região seguia parecendo aberta.

No entanto, emp oucos meses começou uma mudança significativa no panorama político global. Em julho do mesmo ano o Syriza capitulou ante à Troika e aceitou aplicar um novo programa de austeridade, o que representou um golpe devastados para a maior esperança da esquerda europeia de uma geração Podemos, de sua parte, sentiu esse impacto e transitou desde uma radicalidade inicial – quiçá superficial – para um programa cada vez mais moderado, que culminou em um cogoverno com o PSOE na Espanha.

Na América Latina o ciclo progressista que havia tomado impulso no começo do século parecia perder força. No Brasil, um golpe parlamentar iniciado em dezembro de 2015 destruiu o PT e instalou um governo neoliberal, culminando três anos depois com a eleição do neofascista Bolsonaro. Na Argentina, a direita obteve sua primeira vitória em 2015, com Mauricio Macri e, em 2023, depois de um frustrado interlúdio peronista, foi a ultradireita que assumiu o poder. Na Venezuela, a crise econômica se aprofundou, exacerbando uma situação humanitária crítica. No Equador, a direita ganhou sucessivas eleições. Em El Salvador, Bukele consolidou um regime político autoritário e se transformou em uma referência das direitas centro-americanas. O subcontinente latino-americano é o mais disputado, posto que essas tendencias se contrapesam com as recentes vitórias eleitorais progressistas na Colômbia, Brasil e México, porém não está isento da onda reacionária global.

No mundo árabe, a desilusão com o ciclo de protestos iniciado em 2011 se fez finalmente evidente de maneira trágica, com países afundando em regressões autoritárias, guerras civis tribais e massacres em grande escala. Do outro lado, Jeremy Corbyn e Bernie Sandes concluíram suas aventuras em 2020, facilitando o regresso ao business as usual nos partidos trabalhista e demorata em seus respectivos países.

Estamos presenciando o encerramento de um longo ciclo na história da esquerda a nível global. Vários eventos podem ser assinalados como pontos de partida desse ciclo: o levante zapatista de 1994, as greves de novembro e dezembro na França em 1995 ou a mobilização antiglobalização em Seattle em 1999. Após a derrota estratégica representada pelas contrarreformas neoliberais e o colapso da União Soviética, começou um lento ressurgimento da resistência social. Presenciamos, desde então, uma série de ondas de mobilização: na América Latina no final dos anos 1990 e inicio dos anos 2000, coincidindo com os protestos antiglobalização e antiguerra na Europa e Estados Unidos; no mundo árabe, Estados Unidos e no sul da Europa em 2011; seguido pelo ciclo de 2018 e 2019, que abarcou quase todos os continentes de maneira sincronizada.

Periodizar um momento político no tempo presente é difícil. No entanto, existem numerosos indícios de nos encontramos ante a uma nova etapa. Um desses signos é a crise global da esquerda em suas diversas formas, que tem visto deteriorar sua aliança história com as classes populares. As frustações e os limites das experiências recentes levaram a um momento de crescente desmoralização e desidentificação política. Ao mesmo tempo, a extrema direita se mostra cada vez mais forte e capaz de capitalizar as frustrações populares a partir da política neoliberal, adotando um enfoque autoritário, racista, sexista e homofóbico.

Muitos pensaram que a crise capitalista de 2008 seria o momento que impulsionaria a esquerda radical ao centro da cena, em um contexto de crise da política neoliberal e dos partidos tradicionais. Como temos visto, não faltaram tentativas. No entanto, hoje a esquerda se encontra no limite de sua força, não só em âmbito político, mas também no âmbito sindical e social, e a extrema direita ainda consegue avançar, mostrando resiliência frente a suas próprias derrotas, as quais se transformaram em parciais ante o seu progresso.

 

Os Limites de um Período

 

Os momentos de estagnação, derrota ou de retrocesso são frequentemente ocasiões de reflexão e autocrítica como também de confusão e desorientação. Podem se converter em um terreno féril para o desânimo e a apatia, assim como para a retirada sectária ou para a adaptação oportunista. É preciso nos mantermos lúcidos.

Alguns podem argumentar que o mundo segue atravessado por lutas e mobilizações, incluindo os estalidos sociais como a notável sequência de 2019, que Bervely Silver considerou o ano de maior mobilização social global desde 1968. Não lhes falta razão, a situação internacional segue sendo instável e dinâmica. No entanto, com a sequência recente de experiências fracassadas, a crise da esquerda se converte em uma crise global de alternativa política, mais aguda que no passado recente. A incapacidade de conectar as lutas com um horizonte alternativo redefine o panorama em seu conjunto. Nesse contexto, a extrema direita começa a ser um competidor real para capitalizar não apenas o mal-estar popular, mas também as mobilizações sociais (como aconteceu no Brasil em 2014, nos protestos na praça de Maidan na Ucrania e na Primavera Árabe).

Outros responsabilizam exclusivamente o reformismo por suas capitulações e traições. Estaríamos então ante a uma situação clássica de “crise de direção”. No entanto, o problema vai mais além. Mesmo com os fracassos do reformismo, a esquerda radical segue sendo tão impotente quanto antes. Não só não se beneficia quando as desilusões reformistas ficam expostas, ela também é arrastada pela espiral depressiva dessa crise. O reformismo não é simplesmente uma corrente política, é a tendência política “espontânea” da classe trabalhadora. Ninguém se propõe a uma guerra civil para conseguir um aumento salarial. As classes trabalhadoras buscam melhorar sua qualidade de vida por meio dos instrumentos institucionais a disposição e sem grandes convulsões ou custos sociais.

Por isso, ainda que em alguns momentos a margem objetiva para a política reformista se estreite e os partidos desse tipo percam gradualmente sua base material para uma política de conciliação de classe, não existe um equivalente a queda do Muro de Berlim que produza um colapso definitivo do reformismo. Os frequentes prognósticos sobre sua crise final vêm sendo desmentidos sucessivamente e não servem como um guia político eficaz.

Os clássicos do socialismo tendiam a pensar quea classe trabalhadora era instintivamente revolucionária e que só fatores conjunturais podiam levá-la a uma letargia reformista transitória. Porém, a realidade resultou em algum mais complexo. Somente em circunstâncias de crises excepcionais e com uma grande acumulação de forças é possível superar a hegemonia reformista na classe trabalhadora. Ademais, isso não se faz denunciando o reformismo como uma ilusão e antecipando suas capitulações.

Os processos revolucionários não surgiram da perda das ilusões reformistas, mas sim levando essas ilusões até seus próprios limites. A Revolução Russa, como é sabido, se realizou com o lema de “pão, paz e terra”, e não com o chamado direto a expropriação da burguesia. Afinal de contas, um revolucionário é um reformista até o final, que não se detém no limite imposto pela acumulação de capital. A tarefa dos socialistas, então, não é tanto desmascarar ilusões, como passar exitosamente por elas.

As debilidades da esquerda são também as debilidades de um período histórico: a fragmentação da classe trabalhadora, a desarticulação dos partidos operários de massas, o retrocesso da filiação sindical, a ausência de uma consciência socialista nas massas. Seguem sendo produzidas explosões de cólera social no mundo, o problema é que estas ocorrem em um contexto caracterizado pela perda de referências políticas e pelo retrocesso das forças orgânicas da esquerda (partidária, sindical e associativista). Neste cenário, será a hiperliderança populista (como Hugo Chávez, Pablo Iglesias e Jean-Luc Mélenchon) um substituto funcional e inevitável da organização de massas em momentos de debilidade “por baixo”? Os ganhos produzidos por essas hiperlideranças compensam as perdas? Poderíamos prescindir delas enquanto reconstruímos as organizações e a cultura socialista de massas?

O ciclo político recente evoluiu rapidamente “do protesto para a política”, passando de movimentos que propunham uma cultura de resistência e abstencionismo político a formações populistas de esquerda em torno a figuras fortes. Essa mudança pode ser interpretada como uma resposta a situação de estagnação alcançada pelas revoltas de 2011, influenciadas por concepções de autogestão e antieleitorais. No entanto, outra interpretação também é possível. Entre considerar que o verdadeiramente importante está no terreno dos movimentos sociais e assumir que é preferível uma vitória eleitoral progressista pode haver não uma polarização drástica, mas apenas um deslocamento de ênfase.

A crença de que a construção nos movimentos sociais é o verdadeiro terreno estratégico pode levar, sem grandes mudanças conceituais, a aceitar a disputa eleitoral como um complemento exterior, instrumental e subordinado. Isso pode justificar sutilmente uma forma de realpolitik: a conciliação de uma retórica radical na luta social com uma tática eleitoral altamente pragmática e oportunista. Se a tática eleitoral, e a luta política em geral, são consideradas secundárias, a lógica minimalista do “mal menor” pode impor-se sem resistência.

Isso explica que tem havido uma convergência tão natural entre o ativismo dos movimentos sociais e as formações eleitorais populistas, tanto na América Latina como na Europa e Estados Unidos. O populismo não constitui o retorno triunfal da grande política na história, ele é apenas uma forma reduzida da política, limitada a sua dimensão eleitoral e aos golpes de efeito táticos. O populismo e o movimentismo tem em comum deixar de lado aspectos centrais da luta política socialista, e por isso são filhos legítimos desta época: ambos ignoram principalmente a necessidade de construir uma organização política solidamente arraigada na classe trabalhadora, capaz de desenvolver um projeto estratégico para formar a mobilizar seus membros.

 

Os novos partisanos

 

O que temos pela frente? Claro que não sabemos com segurança, porém podemos analisar as tendências mais viáveis. O aspecto mais importante do novo ciclo é a emergência da extrema direita. Em meio a uma crise capitalista de escala histórica, em que o mal-estar gerado por décadas de políticas neoliberais criou um entorno de inseguridade social e autonomia mercantil, a demanda por ordem (quer dizer, proteção, estabilidade, previsibilidade) parece ser a cola de um novo bloco político e social em ascensão. As limitações e experiências fracassadas da esquerda durante o último ciclo fizeram sua parte para abrir o caminho para as forças reacionárias. Porém, é fundamental recordar as tendencias de longo prazo: ainda estamos lidando com as sequelas da crise subjetiva da classe trabalhadora provocada pela queda do “campo socialista” há trinta anos, como bem descreve Henrique Canary.

Nesse contexto de solapamento de crises de distintos tipos (crise subjetiva da classe trabalhadora, crise capitalista, crise da esquerda), a extrema direita captura o mal-estar da época. Isso abre a possibilidade de uma nova grande ofensiva contra a classe trabalhadora, a qual poderia pôr em perigo as conquistas sobreviventes do ciclo histórico anterior. Como disse Angelo Tasca nos anos de 1930, o fascismo foi uma “contrarrevolução póstuma e preventiva”. Ainda que agora não haja mais ameaças revolucionárias, a extrema direita tem seu próprio caráter “póstumo e preventivo”: está ganhando terreno em um contexto onde a esquerda e a classe trabalhadora tem se debilitado, porém ainda conservam posições e conquistas históricas que representam um obstáculo para uma ofensiva capitalista de grande escala.

Essa nova situação não implica em absoluto, como afirmam alguns setores, a existência de um radicalismo abstrato que possa ser canalizado tanto pela esquerda como pela direita. Quem tem a iniciativa e está “radicalizada” é a direita. Nosso campo social está na defensiva, lutando para manter suas posições. Defender que a esquerda anticapitalista pode competir em um espaço comum “antissistema” com a extrema direita é uma via morta, que leva ao isolamento de um radicalismo desconectado das realidades concretas. Ou, em uma variante mais perversa, as intenções de assimilação com setores reacionários ao incorporar temas como o conservadorismo social, como o que fazem Sarah Wagenknecht na Alemanha ou o PC francês, no qual finalmente contribui a normalização e banalização das ideias da extrema direita.