De nada adianta o vento estar a favor, se não se sabe para onde virar o leme. Sabedoria popular brasileira
Ao que erra, perdoa-se uma vez, mas não três.
Sabedoria popular brasileira
Uma onda política e social progressiva está em curso na América do Sul. As placas tectônicas do continente estão se movendo, tendo epicentro no mundo andino. O golpe na Bolívia foi derrotado pela resistência popular e indígena, e o MAS venceu as eleições. Na Argentina o peronismo, com todas as suas contradições e ambivalências, voltou ao poder. A mobilização da juventude no Chile, o estalido social, conquistou a convocação histórica de uma Assembleia Constituinte e garantiu a eleição de Boric. Pedro Castillo, uma liderança dos professores do Peru profundo, conquistou a presidência em Lima. Na Colômbia aconteceu um terremoto eleitoral e, pela primeira vez, uma candidatura de esquerda, através de Petro e Francia, triunfou. A derrota de Bolsonaro é a hipótese mais provável, embora o Brasil permaneça, comparativamente aos nossos vizinhos, na retaguarda da mobilização social. Trata-se, inequivocamente, de uma nova e muito mais favorável situação regional.
Mas os desafios são imensos. Por muitas razões, duas entre elas fundamentais. Em primeiro lugar, ainda vivemos, há trinta anos, uma situação internacional adversa para a luta pelo socialismo, quando pensamos em perspectiva histórica. A maioria da classe trabalhadora, mesmo nos países em que a industrialização já permitiu a configuração de uma classe operária importante, não abraça sequer a esperança do socialismo. E o internacionalismo revolucionário é uma corrente sobrevivente, porém, muito minoritária, ou até, politicamente, marginal. Toda a dinâmica desagregadora na esquerda radical é ainda uma das consequências da derrota histórica que foi a restauração do capitalismo e o fim da URSS.
Em segundo, porque na direção política das esquerdas na posição de liderança, ainda que muito diversa, permanece a expectativa de que é possível ir além do neoliberalismo sem uma estratégia anticapitalista. As derrotas acumuladas entre 2015 e 2021, em escala continental, não foram, felizmente, derrotas históricas, como quando dos golpes militares nos anos sessenta e setenta. Foram duras e amargas, mas não ocorreu a desmoralização social e política de uma geração. Sobrevivemos. Mas não podemos correr o risco de perder a nova oportunidade que a história nos oferece agora. Não podemos repetir os mesmos erros de dez, vinte anos atrás. Seria devastador e imperdoável.
A importância teórica do tema das derrotas históricas permanece um desafio teórico para o marxismo. As duas ondas revolucionárias do século XXI, na América do Sul quando da virada do século, e no Magreb quando da Primavera Árabe foram interrompidas e derrotadas. Não foi a primeira vez que triunfos democráticos nacionais tiveram desfechos desfavoráveis.
Em 1923, a derrota da revolução alemã foi qualitativa para o isolamento da URSS. Em 1937, a derrota da revolução espanhola foi decisiva para abrir o caminho do nazismo para a II Guerra Mundial. Não é possível, portanto, a defesa de uma política revolucionária sem a defesa do internacionalismo. Mas não é possível, tampouco, a defesa de uma política internacionalista, se não for revolucionária. São indivisíveis.
A situação atual na Venezuela é um exemplo deste dilema. Ser internacionalista significa nos posicionarmos no campo militar do governo Maduro contra o imperialismo. Mas só é internacionalista, consequentemente, quem defende romper com o capitalismo. Qualquer projeto na Venezuela que não seja anticapitalista, depois de mais de vinte anos de tentativas exasperadas de evitar uma ruptura, está condenado ao fracasso. A degradação das condições de vida das amplas massas é irrefutável e insustentável. Não há futuro para uma utopia nacional-desenvolvimentista no século XXI, mesmo com as maiores reservas mundiais de petróleo. Quando não se avança, recua-se.
Devemos nos perguntar, todavia, por que ideias internacionalistas permanecem minoritárias. O ponto de partida é não nos enganarmos a nós mesmos. Devemos admitir que estamos em condições tão adversas, que são até piores que aquelas que viveram os internacionalistas da II Internacional, em minoria, antes da vitória da revolução de outubro.
Reconhecer esta situação subjetiva não nos diminui, nem nos enfraquece. Ao contrário, nos fortalece. A angústia é um privilégio da lucidez. Nossa aposta é que as próximas crises do capitalismo serão maiores do que as ficaram para trás. Confiamos na classe trabalhadora.
O proletariado do século XXI é, objetivamente, mais poderoso do que o do século XX. Ele não sabe, mas é maior, mais concentrado, mais educado, mais influente, ainda que muito mais diverso ou menos homogêneo, e o destino de suas lutas é atrair para o campo anticapitalista a maioria dos oprimidos.
Ele resistirá, e veremos combates maiores do que os do passado. E na luta de classes, forças minoritárias podem se transformar em maioria, até rapidamente, quando estão à altura das circunstâncias. As ideias contam. Ideias poderosas são, extraordinariamente, atrativas. Nossas ideias abrirão o caminho, se estivermos à altura dos acontecimentos.
O problema é explicar por que, quase cem anos depois da vitória da revolução de outubro, os reformismos, em suas diferentes variantes nacionais, têm tanta influência. Temos que atualizar a teoria marxista para explicar a longevidade dos reformismos.
A explicação marxista foi, historicamente, a divisão da classe trabalhadora pela ação da social democracia e do estalinismo. Recordemos quais foram os fundamentos da influência destes aparelhos. A teoria leninista da aristocracia operária apresentada quando da deflagração da 1ª Guerra Mundial, no ensaio “A falência da 2ª Internacional” é uma referência incontornável. Esta teoria tem como objetivo explicar porque as organizações construídas no período histórico anterior, a social democracia europeia, tinham demonstrado-se, em sua grande maioria, inférteis.
O que temos que nos perguntar é se ela ainda é satisfatória. Ela mantém vigência? O que diz a teoria da aristocracia operária? Diz que, na época imperialista, uma fração minoritária da classe trabalhadora nos países centrais, uma camada privilegiada ou casta, recebe uma parte dos benefícios que “caiem da mesa do banquete” da repartição do mundo realizado pelo capital.
A hipótese de Lenin é como se a aristocracia operária fosse uma crosta, como as placas tectônicas do planeta, mas embaixo dela existiria um enorme magma de lava revolucionária. Bastaria que a crise do capitalismo, de um lado, e a intervenção decidida dos revolucionários do outro, quebre a crosta, e abre-se o caminho para a erupção vulcânica. O magma estaria ali. A época do imperialismo não teria como ser estável. Seria uma época de guerras e revoluções. A social democracia teria seus dias de influência majoritária contados, porque a possibilidade de reformas ou regulação do capitalismo seria efêmera.
A mobilidade social seria cada vez menor. A possibilidade de reformas progressivas, cada vez mais estreita. O tema da longevidade do estalinismo nos obriga a recordar o desenlace da II guerra mundial e seu fortalecimento na luta contra o nazifascismo, e à permanência de sua influência durante a etapa da guerra fria ou coexistência pacífica.
Bom, passaram-se mais de cem anos desde 1914, trinta anos desde a queda do muro de Berlim, e os reformismos permanecem muito influentes, ainda que com novas roupagens. A primeira questão é, portanto, saber se as nossas explicações histórico-sociais permanecem ou não válidas. Segundo, devemos nos perguntar se elas são adequadas para analisar os proletariados dos países periféricos, constituídos em sua maioria depois da II guerra mundial, alguns somente nos últimos trinta anos.
Não é precipitado concluir que estes prognósticos estavam, pelo menos, parcialmente, errados. Subestimamos a capacidade do capitalismo de contornar suas crises. Subestimamos a possibilidade da concessão de reformas nos países centrais. Subestimamos a possibilidade de estabilização de regimes democráticos nos países periféricos, em especial na América Latina.
Sabemos que partidos são organizações em luta pelo poder, e representam interesses de classe. Isto remete aos fundamentos da existência do movimento operário e do próprio surgimento da corrente marxista. A explicação para as dificuldades e divisões da representação dos que vivem do trabalho se alicerça na tripla condição específica do proletariado.
Frequentemente, não damos o devido valor à esta tripla condição que define a existência da classe trabalhadora. A classe trabalhadora é economicamente explorada, é socialmente oprimida e é politicamente dominada. Nunca na história da humanidade, nenhuma classe que tenha vivido circunstâncias de inserção social semelhante se colocou um projeto de dirigir a sociedade. Não seria razoável ter expectativas facilistas, ingênuas, portanto, ligeiras para este projeto. Devemos ser realistas.
Uma classe que vive esta tripla condição tem, necessariamente, heterogeneidade política no seu interior. Isto é assim porque, só muito excepcionalmente, em condições extraordinárias, ou seja, em circunstâncias nas quais se abre a possibilidade da luta pelo poder é que é possível unir a maioria do proletariado em torno a um projeto anticapitalista.
Em condições normais de existência da classe trabalhadora, inevitavelmente, considerando as diferenciações internas no seu interior, prevalece o projeto reformista de lutar para diminuir as condições de exploração. Ideias revolucionárias sempre forma minoritárias entre os trabalhadores, enquanto não se abre uma situação revolucionária.
É porque o nosso projeto tem pressa que, tão repetidas vezes, somos vítimas de autoengano, e nos equivocamos na percepção de qual é a relação social de forças. As grandes massas só lutam com disposição revolucionária quando estão convencidas da iminência da vitória. Militantes podem e devem ter horizontes mais amplos.
Este processo assumiu e assumirá formas diferentes em distintas sociedades. Estas diferenças explicam-se pela combinação de muitos fatores. Depende da maior maturidade objetiva e subjetiva das classes trabalhadoras. O que, por sua vez, corresponde ao estágio de desenvolvimento econômico e social do capitalismo em cada região do mundo.
A representação política dos trabalhadores não pode ser feita por um só partido. Surgem, previsivelmente, tendências mais moderadas que querem reformar o capitalismo, e tendências mais radicais que querem eliminar as causas da opressão, da exploração e da dominação. O apoio majoritário aos reformistas não se explica porque defendem a regulação do capitalismo, ou porque são mais maduros, prudentes, ou cautelosos. Ele se fundamenta em uma experiência prática incompleta dos grandes batalhões da classe trabalhadora com o capitalismo.
Acontece que estamos ainda em um altíssimo grau de abstração. Útil para explicar porque existem vários partidos operários em luta entre si. Mas, insuficiente. Por duas razões. Primeiro porque o instinto de poder não se desenvolve de forma espontânea entre os trabalhadores. Ele precisa ser introduzido de fora para dentro. O que se demonstrou, em incontáveis experiências históricas, especialmente, difícil.
Segundo, porque não explica porque é necessário construir um movimento ou partido à escala internacional. O que justifica a existência desta forma de partido, uma Internacional, é uma análise que parte de outros considerandos. O considerando fundamental é que não é possível vencer na luta pelo poder sem uma ferramenta de luta que esteja adequada à análise de quem é o inimigo. O inimigo é a ordem mundial imperialista.
Se é verdade que os Estados são nacionais, tão importante quanto, é saber que os Estados assumiram, ao longo dos últimos séculos, a forma de um sistema internacional de Estados. Não há um governo mundial, mas há uma ordem mundial imperialista.
Qualquer projeto que desconsidere a força do Estado capitalista, das suas bases sociais de sustentação que são nacionais, porém, também, internacionais, é uma aventura que condena os trabalhadores, desde a partida, à derrota. Uma burguesia nacional pode governar com o apoio de 20% da população, ou até menos, e governar até com estabilidade política, desde que tenha apoio internacional imperialista. É isto que toda a experiência histórica demonstrou.
Uma luta entre as tendências reformistas e as tendências revolucionárias é inexorável, também, em defesa do internacionalismo. Isto é o ABC. Mas aí vem o problema. A luta da classe trabalhadora se desenvolve dentro de fronteiras nacionais. Assim como o instinto de poder, o internacionalismo é um programa que depende, essencialmente, de um conjunto de experiências acumuladas que precisa ser defendido de fora para dentro do movimento das massas em luta. Até hoje, revelou-se muito difícil. Dramaticamente, difícil. Mas não impossível.