"Isto está errado": Judith Butler sobre o ataque de Trump aos direitos trans

POR JUDITH BUTLER

Precisamos compreender os medos explorados pelos autoritários: quem é este migrante tão perigoso que tem de ser deportado, o palestino cuja morte assegura a ordem, a noção de género tão ameaçadora? Alternativa deve partir da visão de um mundo com segurança para quem atualmente teme o seu desaparecimento e das suas comunidades.

Nas semanas que se seguiram à sua tomada de posse, Donald Trump emitiu uma série de ordens executivas destinadas a minar a lei progressista e, em alguns casos, os fundamentos da própria democracia constitucional. À medida que os despachos vão chegando, uns atrás dos outros, quase uma centena deles até agora, a impressão que se tem é a de um Estado que se auto-amplifica, empenhado em ultrapassar o Estado de direito e em testar os limites do poder autoritário.

O efeito em muitos tem sido o de induzir um sentimento de desorientação e terror; perguntam-se quando, ou se, isto vai parar. Alguns afastam a importância sas ordens, sublinhando as dificuldades da sua aplicação e afirmando a sua fé em que os tribunais acabarão por impedir que se tornem lei. Outros, seguros do seu realismo (ou cinismo?), proclamam o fim inevitável da democracia às mãos do autoritarismo, desistindo antecipadamente da luta. Muitas organizações sucumbiram às ordens assim que estas foram emitidas. Algumas terão cedido por medo das consequências do incumprimento. Outras estão entusiasmadas com o medo que Trump inspira, em dependência do poder a que capitulam. Aparentemente, não pararam para se perguntar qual seria o efeito da sua capitulação, nem para reconhecer que, ao reproduzir e fazer cumprir as ordens, estavam a reforçá-las.

A Ordem Executiva 14168, emitida a 20 de janeiro, intitula-se "Defender as Mulheres do Extremismo da Ideologia de Género e Restaurar a Verdade Biológica no Governo Federal". No livro que publiquei no ano passado, "Who's Afraid of Gender?" (Quem tem medo do género?), referi que a campanha contra a "ideologia de género" só muito tardiamente ganhou terreno nos EUA. O termo em si foi cunhado pelo Vaticano na década de 1990. Foi difundido na América Latina pelas igrejas católicas e evangélicas (ajudando assim a reparar uma fratura entre elas) e adotado pelo Congresso Mundial das Famílias, especialmente em 2017, onde estiveram presentes representantes de Trump. Foi um tema incendiário nas campanhas presidenciais na Costa Rica, no Uganda, na Coreia do Sul, em Taiwan, em França, em Itália, na Argentina e no Brasil, para citar alguns, embora a imprensa norte-americana quase não tenha dado por isso. Na Hungria, Viktor Orbán aliou-se efetivamente à Igreja Ortodoxa Russa na condenação da "ideologia de género"; por sua vez, Putin declarou a sua fidelidade à crítica de J.K. Rowling aos direitos trans, afirmando que as "liberdades de género" associadas ao "Ocidente" eram uma ameaça à essência espiritual e à segurança nacional da Rússia. Os dois últimos papas tomaram posição contra a ideologia de género; o Papa Francisco, apesar do seu ocasional progressismo, acelerou o discurso, insistindo que o género é uma ameaça para homens e mulheres, para a civilização, a família e a ordem natural das relações humanas.

Trump chega tarde a esta festa, embora em 2018 tenha seguido a invocação da lei natural pelo Vaticano, dando instruções ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos para declarar o sexo uma caraterística "imutável" da personalidade humana. A linha adotada pela sua administração foi a de que os genitais e a linguagem vulgar eram os únicos critérios a utilizar na determinação do sexo. Na altura, o objetivo político era impedir as pessoas trans de obterem proteção ao abrigo do Título VII, que proíbe a discriminação no emprego com base no sexo. Mas os novos critérios revelaram-se difíceis de implementar num cenário jurídico complicado por diferenças políticas entre os estados.

Pouco depois, o Supremo Tribunal começou a ouvir argumentos no caso Bostock v. Clayton County (decidido em 2020) sobre se o tratamento discriminatório contra pessoas trans poderia ser considerado legalmente como discriminação sexual. Os nove juízes decidiram por 6-3 que o Título VII podia ser utilizado para proteger as pessoas trans contra a discriminação, uma vez que (a) o sexo atribuído a uma pessoa à nascença pode ser diferente do sexo que a pessoa assume ao longo do tempo, mas ambos são instâncias do sexo e devem ser protegidos contra a discriminação sexual; (b) ser tratado de forma desigual com base na perceção do seu sexo é uma forma estabelecida de discriminação sexual. O problema da discriminação não é o sexo que se tem, mas a forma como o sexo é percecionado e depois tratado. É simplesmente errado se alguém for tratado injustamente com base numa perceção prejudicial do sexo. O argumento do caso Bostock v. Clayton County, escrito por Neil Gorsuch, nomeado por Trump, parecia ter derrotado qualquer esforço para tornar permanente e imutável o sexo atribuído à nascença.

Não é surpreendente, portanto, que a Ordem Executiva 14168 inclua entre os seus ditames a necessidade de corrigir quaisquer "aplicações incorrectas" do Bostock v. Clayton County. De facto, o decreto desloca a base da "classificação biológica imutável de um indivíduo" dos genitais para os gâmetas: ""Mulher" significa uma pessoa que pertence, no momento da conceção, ao sexo que produz a grande célula reprodutora ... "Homem" significa uma pessoa que pertence, no momento da conceção, ao sexo que produz a pequena célula reprodutora". Porquê esta mudança? E o que é que significa o facto de o governo poder mudar de opinião sobre o que é imutável? Afinal, o "imutável" é mutável? A existência de pessoas intersexo há muito que constitui um problema para a atribuição de sexo, uma vez que são a prova viva de que os genitais podem ser combinados ou misturados de determinadas formas. Os gâmetas devem ter parecido menos problemáticos. Há um maior e um mais pequeno: que seja essa portanto a diferença imutável entre feminino e masculino.

Há dois problemas significativos com a utilização de gâmetas para definir o sexo. Primeiro, ninguém verifica os gâmetas no momento da atribuição do sexo, muito menos na conceção (quando ainda não existem). Não são observáveis. Basear a atribuição do sexo nos gâmetas é, portanto, confiar numa dimensão impercetível do sexo, quando a observação continua a ser a principal forma de atribuição do sexo. Em segundo lugar, a maior parte dos biólogos concorda que nem o determinismo biológico nem o reducionismo biológico fornecem uma explicação adequada da determinação e desenvolvimento do sexo. Como explica a Sociedade para o Estudo da Evolução numa carta publicada a 5 de fevereiro, o "consenso científico" define o sexo nos seres humanos como uma "construção biológica que se baseia numa combinação de cromossomas, equilíbrios hormonais e a expressão resultante das gónadas, dos órgãos genitais externos e das caraterísticas sexuais secundárias. Existe uma variação em todos estes atributos biológicos que constituem o sexo". Recordam-nos que "o sexo e o género resultam da interação entre a genética e o ambiente. Esta diversidade é uma caraterística das espécies biológicas, incluindo os seres humanos". Ação combinada, interação, co-construção são conceitos amplamente utilizados nas ciências biológicas. E, por sua vez, as ciências biológicas têm dado contributos consideráveis para a teoria do género, onde Anne Fausto-Sterling, por exemplo, há muito que defende que a biologia interage com processos culturais e históricos para produzir diferentes formas de nomear e viver o género.

A linguagem da "imutabilidade" pertence mais propriamente a uma tradição de direito natural em que os géneros masculino e feminino são estabelecidos pela vontade divina e, por isso, pertencem a uma versão do criacionismo. São caraterísticas imutáveis do ser humano, como afirmou o Papa Francisco. Trump fala em nome da ciência, mas, apesar da aparição da teoria dos gâmetas, fá-lo efetivamente para insistir que Deus decretou o carácter imutável dos dois sexos, e que ele, Trump, o está a decretar mais uma vez, quer para fazer eco da palavra de Deus, quer para representar a sua própria palavra como a palavra de Deus. A doutrina religiosa não pode servir de base à investigação científica ou à política do Estado. Mas é isso que está a acontecer nesta ordem executiva.

O decreto de Trump visa eliminar o "extremismo da ideologia de género" do discurso público e de todas as atividades financiadas pelo governo federal. O Estado toma como certo que a "ideologia de género" existe, mas e se este termo for, na verdade, uma calúnia, algo inventado para reduzir e demonizar o trabalho complexo, produtivo, muitas vezes fraturante, certamente indispensável, feito pelos movimentos sociais e por aqueles envolvidos na investigação, na política social e no direito? Podemos perguntar com razoabilidade se são apenas as formas supostamente "extremistas" da ideologia de género que devem ser combatidas. Em caso afirmativo, existe algum critério proposto que permita distinguir a ideologia de género "extremista" do tipo não extremista? Uma vez que o governo federal se opõe a um fenómeno que considera real, é lógico que nos diga como reconhecer esse fenómeno e como distinguir as suas formas inadmissíveis das potencialmente admissíveis. Tal como as coisas estão, qualquer referência ao "género" na documentação relativa às dotações financiadas pelo governo, incluindo bolsas universitárias, cuidados de saúde e proteção dos direitos civis, põe em risco essas dotações.

Se a "ideologia de género" não existe, se é um fantasma criado com o objetivo de se opor a uma série de políticas sociais que beneficiam as mulheres, as crianças e as pessoas trans, queer, não binárias e intersexuais, então pode dizer-se que a ideologia de género é "construída". É claro que foi a afirmação de que o género é "socialmente construído" que enfureceu os seus opositores em primeiro lugar, especialmente quando interpretaram erradamente essa teoria como significando que uma categoria social de alguma forma traz à existência aquilo que nomeia. Agora, por sua vez, procuram produzir um consenso social de que a "ideologia de género" não só existe, mas que é uma força perigosa e até destrutiva.

Para responder à onda de ordens executivas de Trump, precisamos de formas de pedagogia pública que impliquem a sua leitura atenta, para melhor explicar o que estão a dizer e a fazer com a linguagem que utilizam. Que realidades procuram criar e normalizar? O ritmo tem sido tão rápido que tem sido impossível absorver as implicações de todas as ordens individuais; em vez disso, ficamos a tremer com o seu ataque coletivo. Mas podemos, com um pouco de tempo, desmontar coletivamente cada uma delas em público e construir gradualmente um contra-discurso.

Na Secção 1 do Decreto Executivo 14168, é explicado o seu objetivo:

“Por todo o país, os ideólogos que negam a realidade biológica do sexo têm recorrido cada vez mais a meios legais e outros meios socialmente coercivos para permitir que os homens se identifiquem como mulheres e tenham acesso a espaços e atividades íntimas para um só sexo concebidos para as mulheres, desde abrigos para mulheres vítimas de violência doméstica a chuveiros para mulheres no local de trabalho. Isto é errado.”

O decreto pretende proteger as mulheres opondo-se à ideologia de género, baseando-se no argumento trans-excludente de que as mulheres trans não são mulheres ou constituem uma ameaça para as mulheres, em que uma "mulher" é entendida como um indivíduo a quem foi atribuído o sexo feminino à nascença. A acusação de que o género ou os teóricos do género são uma ameaça para as mulheres esquece que a questão do "género" tem sido central para o pensamento feminista, pelo menos desde o trabalho de Simone de Beauvoir no final da década de 1940. A biologia, argumentou ela, faz parte da situação de uma pessoa, mas não determina o tipo de trabalho que se vai fazer, a pessoa que se vai amar, ou o "destino" da sua vida. As pessoas trans são operadas ou tomam hormonas, quando o fazem, porque procuram alterar a anatomia: compreendem certamente que há uma anatomia que procuram alterar.

A declaração de objetivos atribui um objetivo instrumental às pessoas designadas como masculinas à nascença que procuram fazer a transição: não o fazem porque esperam ter uma vida mais vivível, mas porque – quer dizer apenas aqueles que tomaram medidas para garantir a sua identidade como mulheres – procuram entrar em espaços femininos para, presume-se, prejudicar as mulheres que lá se encontram. Esta presunção é totalmente infundada. Há muitos poucos casos registados em que tais objetivos foram claramente postos em prática, mas o que nos permite tomar esses casos como modelo de transição? Não apontamos para as acções nefastas de determinados judeus ou muçulmanos e concluímos que todos os judeus ou muçulmanos agem dessa forma. Não, recusamo-nos a generalizar nessa base, e suspeitamos que aqueles que o fazem estão a usar os exemplos particulares para ratificar e amplificar uma forma de ódio que já sentem. Para usar uma frase da ordem executiva, isto está errado.

Temos de perguntar se esta ordem é um estratagema conduzido em nome do feminismo, mais uma forma de instrumentalizar as mulheres para fazer avançar o poder do Estado. Com efeito, esta iniciativa põe seguramente em causa os ideais que o feminismo sempre defendeu: superar a discriminação e a desigualdade e recusar noções ofensivas sobre quem está à altura de ser mulher e quem falha nesse aspeto. A pretensa intenção feminista da declaração é desmentida pelo facto de os homens trans não merecerem sequer uma menção. Nem as pessoas intersexuais, que, desde o nascimento, não se enquadram nitidamente em nenhuma das categorias e que constituem, segundo algumas definições, 1,7 por cento da população dos EUA: ou seja, mais de cinco milhões de pessoas. O facto de não se reconhecer nenhuma destas categorias de pessoas é significativo. Recorda-nos que a opressão assume muitas formas: uma coisa é visar uma população específica, como esta declaração visa as mulheres trans, e outra é apagar a realidade de outro grupo, não o nomeando de todo

A ordem executiva continua:

"Os esforços para erradicar a realidade biológica do sexo atacam fundamentalmente as mulheres, privando-as da sua dignidade, segurança e bem-estar. O apagamento do sexo na linguagem e na política tem um impacto corrosivo não apenas nas mulheres, mas na validade de todo o sistema americano. Basear a política federal na verdade é fundamental para a investigação científica, a segurança pública, a moral e a confiança no próprio governo."

Embora a ordem aqui se oponha àqueles que "erradicariam a realidade biológica do sexo", ela também define quais são os interesses das mulheres, o que a confiança no governo exige e o que está em jogo para "todo o sistema americano". Assim, a regulamentação da atribuição de sexo e a erradicação da existência legal trans, intersexo e não-binária é uma questão de interesse nacional: está em causa "todo o sistema americano". É claro que a dignidade, a segurança e o bem-estar das mulheres devem ser assegurados, mas se valorizamos estes princípios, então não faz sentido assegurar a dignidade, a segurança e o bem-estar de um grupo privando outro grupo de dignidade, segurança e bem-estar. Na verdade, a ordem consigna efetivamente as pessoas trans à indignidade radical e à insegurança, se não mesmo à inexistência. As mulheres – incluindo as mulheres trans – e as pessoas trans, intersexuais e não binárias merecem estar livres de ataques à sua dignidade, segurança e bem-estar, não só porque o princípio se aplica a todas elas, mas também porque estas categorias de pessoas se sobrepõem. Nem sempre se trata de populações distintas.

A ordem executiva procura não só defender as mulheres contra o extremismo da ideologia do género, mas também restaurar a "verdade biológica" no governo federal. O que significa para o governo estar envolvido num projeto de restauração ou, mais precisamente, começar a "restaurar" a realidade biológica do sexo "para" o governo? Procura impor uma ordem obrigatória à biologia do sexo: haverá dois sexos e apenas dois sexos e cada um permanecerá inalterável tal como foi originalmente atribuído. Se essa verdade for restaurada "para" o governo, então a verdade biológica é agora o que quer que o governo afirme que é. Lá se vai a ciência da biologia do desenvolvimento ou a investigação sobre a determinação do sexo em antropologia, neurologia, endocrinologia ou qualquer outro domínio. A teoria dos gâmetas ganhou, ou assim diz o governo.

Trump emitiu o Decreto Executivo 14168 no primeiro dia do seu segundo mandato. Nove dias depois, assinou o Decreto Executivo 14188, "Medidas adicionais para combater o antissemitismo", que chama a atenção para a "onda sem precedentes de discriminação antissemita vil, vandalismo e violência contra os nossos cidadãos, especialmente nas nossas escolas e nos nossos campus". Compromete-se a "processar, afastar ou responsabilizar os autores". Em 8 de março, Mahmoud Khalil, um residente permanente dos EUA com um cartão verde que participou no ano passado em protestos contra a guerra de Israel em Gaza, foi detido por agentes do Serviço de Imigração e Alfândegas. Trump publicou na Internet que "esta é a primeira detenção de muitas que estão para vir". Pode parecer que a perseguição de pessoas que protestam a favor da liberdade dos palestinianos não tem nada a ver com as objecções à "ideologia de género" e aos esforços do governo para retirar direitos às pessoas trans. A ligação surge, no entanto, quando consideramos quem, ou o quê, está a ser considerado uma ameaça à sociedade americana. As instituições de ensino e as organizações sem fins lucrativos, especialmente as progressistas, correm o risco de perder os seus benefícios fiscais federais se colaborarem em projectos relacionados com a Palestina ou se não expulsarem estudantes que se envolvam em protestos espontâneos ou "não autorizados". Se os planos da Heritage Foundation se tornarem política oficial, as instituições ou organizações que financiam trabalho crítico do Estado de Israel - ou, mais precisamente, trabalho que possa ser interpretado como crítico - serão consideradas anti-semitas e apoiantes do terrorismo. Se financiarem trabalhos sobre raça e género, não serão apenas culpados de "wokismo", mas considerados antagónicos à ordem social que agora define os Estados Unidos – por outras palavras, uma ameaça à nação.

Qual seria a natureza da "ordem" restaurada se a administração Trump fosse bem sucedida? Nenhum financiamento para a investigação ou educação sem o cumprimento de exigências autoritárias; nenhuma isenção fiscal para organizações sem fins lucrativos; nenhum lugar no país para migrantes ou estudantes internacionais que ousem fazer valer os seus direitos. Não haveria cuidados de saúde para os jovens trans. Os movimentos nacionalistas de direita, quando incitam tanto ao ódio contra migrantes quanto contra pessoas trans, apelam ao regresso ou à proteção de culturas nacionais baseadas na supremacia da branquidão e da família heteronormativa. Os regimes autoritários têm recorrido cada vez mais a um "medo do género" como forma de desviar a atenção da instabilidade económica, ecológica e social. Os argumentos mobilizados contra a "ideologia de género" são semelhantes aos utilizados para se opor ao estudo da "teoria pós-colonial" na Alemanha ou da "teoria crítica da raça" nos EUA; em cada caso, uma caricatura substitui um campo de estudo complexo, enquanto qualquer estudo real nesse campo é ignorado.

Quando os autoritários prometem um regresso a um passado imaginário, alimentam uma nostalgia furiosa naqueles que não têm melhor forma de compreender o que está realmente a minar o seu sentido de um futuro duradouro e significativo. Encontramos isto no discurso da AfD na Alemanha, dos Fratelli d'Italia, dos seguidores de Bolsonaro no Brasil, de Trump, de Orbán e de Putin. Mas também vemos a animosidade anti-género entre os centristas que esperam recrutar o apoio da direita para se manterem no poder. Quando a diversidade, a equidade e a inclusão se tornam "ameaças" à ordem da sociedade, a política progressista em geral é responsabilizada por todos os males sociais. O resultado, como temos visto nos últimos anos, pode ser que o apoio popular introduza poderes autoritários que prometem retirar direitos às pessoas mais vulneráveis em nome da salvação da nação, da ordem natural, da família, da sociedade ou da própria civilização. Os ideais de democracia constitucional e de liberdade política são considerados dispensáveis no decurso de tais campanhas, uma vez que a preservação da nação deve ser colocada acima de tudo: é uma questão de auto-defesa.

Qualquer resposta eficaz ao movimento anti-género implicará uma crítica das novas formas de autoritarismo e das paixões que exploram. É correto, claro, que defendamos o "género", ponto por ponto, contra aqueles que travam uma guerra ignorante contra ele, mas só isso não será suficiente. Precisamos de compreender melhor os medos explorados pelos autoritários: quem é este "migrante", tão perigoso que tem de ser deportado; este "palestiniano" cuja morte assegura a ordem social e política; esta noção de "género" que é tão ameaçadora para o próprio, para a família e para a sociedade? Qualquer alternativa ao autoritarismo deve abordar estes medos com uma visão convincente de um mundo em que haveria segurança para todos os que atualmente temem o seu próprio desaparecimento e o desaparecimento das suas comunidades. Sabemos imediatamente que este mundo imaginado, criado coletivamente e inspirado por ideais democráticos, não teria lugar para a supressão de direitos, para políticas eliminatórias e para a desapropriação forçada, e que recusaria todas as formas de violência, incluindo a violência legal, ao afirmar a igualdade, o valor e a interdependência de todos os seres vivos. Insensato e irrealista, sem dúvida. Mas nem por isso menos necessário.

21 de março de 2025

Texto publicado originalmente na London Review of Books.ks.