Liderança palestina histórica Leila Khaled diz que 'mulheres e crianças não são o Hamas, isso é genocídio'

Por Iolanda Depizzol e Pedro Stropasolas

Em Joanesburgo, a lutadora denunciou a invasão de terras e a violência conduzida por Israel contra o povo palestino.

Para liderança histórica e a ex-guerrilheira pela autodeterminação do povo palestino Leila Khaled, o mundo atual está dividido em interesses, e o dos Estados Unidos é manter a sua base: "O arsenal que chamam de Israel”.

"Estamos prontos para pagar pela nossa pátria, com sangue, com nossa carne, nossas famílias para libertar essa terra", pontua.

Khaled é integrante do Comitê Central da Frente Popular pela Libertação da Palestina (FPLP) e vive em situação de refúgio há 75 anos, hoje na Jordânia (ela completou 79 anos).

"Unidade para um povo sob ocupação é um tipo de arma. E agora Israel quer dizer que estão atacando Hamas, mas crianças e mulheres não são Hamas. Eles estão atacando o nosso povo. E, desta vez, é um genocídio", completa.

A entrevista com a histórica combatente palestina foi conduzida coletivamente pela equipe de comunicação da Conferência Internacional Dilemas da Humanidade, organizada pela Assembleia Internacional dos Povos e realizada em Joanesburgo, na África do Sul, em outubro de 2023. Durante a conferência, Leila Khaled falou sobre sua vida e as lutas pela defesa da Palestina e de seu povo.

Além do Brasil de Fato, participaram da entrevista integrantes do People's Dispatch, Capire, Numsa e BreakThrough News e Pan African Television.

Confira a entrevista completa:

No contexto mais amplo da resistência palestina contra a ocupação sionista, estamos vendo uma intensificação histórica da resistência? O que representa a unidade construída entre diferentes grupos que estiveram historicamente divididos ou que eram ideologicamente diversos?

Primeiramente, nós não fomos divididos. Desde a revolução e a intifada que aconteceu em 1987. Mas, depois dos Acordos de paz de Oslo assinados pela liderança da OLP [Organização para a Libertação da Palestina], que o fizeram por trás dos nossos ombros. Por isso, nós tivemos de nos unir. E nós sempre clamamos pela unidade nacional, porque unidade para um povo sob ocupação é um tipo de arma.

Nós ainda temos agora muitos trabalhando no território, todos juntos, e mesmo antes disso, quando Gaza foi atacada por quatro, cinco vezes durante 2008. E agora Israel quer dizer que estão atacando o Hamas, mas as crianças não são do Hamas. As mulheres não são do Hamas. Eles estão atacando o nosso povo. E desta vez é um ataque genocida.

O ministro israelense Gideon Sa’ar afirmou em uma entrevista que “Gaza precisa sair menor desta guerra”. Isso é prova da real intenção da entidade sionista com o brutal ataque a Gaza?

Gaza agora está em todo o mundo. A área de Gaza está agora em todos os continentes, porque pessoas de todo o mundo que apoiam a luta dos palestinos, mesmo que eles tenham sido assassinados, e assassinados, e assassinados. Mas ainda existe vida em Gaza. E vocês são os olhos de Gaza agora. Vocês são a mídia.

Então, nós não temos medo do que [Benjamin] Netanyahu diz. Eles têm medo, porque os palestinos sempre foram obrigados a ter esperança para implementar seus sonhos, através da luta, usando armas e outros meios de resistência. Eles não pararam. Esse é o caminho que os palestinos escolheram. Nós não temos a opção de luxo de qualquer forma, e nós não temos esse luxo.

Só temos uma escolha: lutar. E libertar a nossa terra e nos libertarmos ao mesmo tempo também dessa ocupação, que está fazendo o mesmo que os nazistas fizeram. Mas eles acrescentaram mais porque as armas são novas agora. Eles estão fazendo um Holocausto. E é um crime de guerra, o que eles estão fazendo.

É por isso que nós chamamos todos nós em toda a Palestina para nos unirmos. E ainda nós não alcançamos a unidade como uma questão política, mas conseguimos unidade no território quando Israel ataca.

A ONU está debatendo uma resolução sobre Gaza. Você tem esperança de que as ações da ONU farão diferença para as pessoas palestinas?

As Nações Unidas em 1948 reconheceram Israel como um Estado. E eles não nos reconheceram como um povo que tem o direito à autodeterminação ou que voltássemos à nossa pátria, de onde fomos expulsos à força por grupos sionistas, milícias, em 1948. Desde então, eles desenharam muitas resoluções mas não foram implementadas.

Sabemos agora que o mundo está dividido de acordo com os interesses, porque o interesse dos Estados Unidos é defender a sua base. O arsenal na Palestina, que eles chamam de Israel. Agora, Eu acho que o mundo agora, há ondas de pessoas tomando as ruas, mesmo em Washington e na Grã-Bretanha e em todo o mundo. Porque eles estão apoiando o direito dos palestinos de ter seu próprio Estado e de viver nesse Estado com dignidade e justiça. Mas, vocês têm visto agora que nós não dependemos das Nações Unidas.

Nós dependemos, primeiramente, de nós mesmos, e para além disso, temos um monte de gente em todo o mundo nos apoiando. Isso nos dá força para suportar os sofrimentos. Estamos prontos para pagar pela nossa pátria, para pagar com sangue, para pagar com a nossa carne, para pagar com as nossas famílias para libertar essa terra. Porque sem isso. Para obter a nossa liberdade as pessoas também precisam se sacrificar.

Há uma tentativa de Israel e seus aliados de caracterizar a resistência palestina como terrorismo. Como você responde a essa caracterização?

Sabemos que eles falam de terrorismo, mas eles são os heróis do terrorismo. A força imperialista de todas as partes do mundo — no Iraque, na Síria, em diversos países. Agora estão se preparando para atacar a China. Tudo o que dizem sobre terrorismo acaba sendo sobre eles. As pessoas têm o direito de resistir a isso com todos os meios, incluindo com a luta armada. Isso está na Carta das Nações Unidas.

Então eles estão violando os direitos de resistência das pessoas, porque é direito delas recuperar sua liberdade. E essa é — como sempre digo — uma lei fundamental: onde há repressão, há resistência. As pessoas não querem viver sob ocupação e repressão. A história nos ensinou que, quando um povo resiste, ele consegue manter sua dignidade e sua terra.

Que tipo de emoções são evocadas quando se vê uma nova geração de pessoas palestinas se colocando na linha de frente da luta, tanto dentro da Palestina histórica quanto na diáspora?

Nós temos uma história de resistência. Desde o início, declaramos que, para recuperar nossa terra e sermos livres, é necessária a atuação de geração em geração. O que aconteceu na Palestina? Fomos tirados de nossa própria terra e outros vieram de fora com armas, e realizaram massacres na Palestina. O movimento sionista preparou isso e o Ocidente o apoia até hoje. Esse é o arsenal deles, a base deles nos países árabes e no Oriente Médio.

Para justificar a atitude deles, querem afirmar que “mais uma vez estamos enfrentando os terroristas”. Isso é terrorismo. E também existe terrorismo de Estado, representado por Israel e por outros governos que estão contra nosso povo.

Imagine chamar a América Latina de quintal dos Estados Unidos. Eles insultam as pessoas, suas terras e até seus governos. Aqueles que são seus aliados são pressionados a dizer essas palavras. Isso significa que eles não se importam com o povo e com sua liberdade de viver em seu país e ter seus recursos, seja a água ou outros recursos naturais. Eles sempre querem roubar o petróleo dos países que têm esse recurso. Veja o que aconteceu na Venezuela. Os EUA não querem promover a democracia, eles estão espalhando medo e ódio com o lema de “democratizar o povo desse país”, como se o povo não tivesse mente para conseguir o que precisa, o que quer. E aí as pessoas não têm escolha, a não ser se revoltar.

O que aconteceu no Chile na época de [Augusto] Pinochet também foi genocídio. O que aconteceu na Argentina. O que aconteceu em Cuba, que está sob cerco há 60 anos. Mas Cuba continua resistindo diante deles, Cuba está construindo seu país. Cuba exportou médicos para o mundo todo na época do coronavírus. Isso significa que esse país e seu povo um dia se revoltaram, chegaram ao ponto de declarar o socialismo no país, e essa é uma expressão para quem está do lado de fora. Nós admiramos Cuba. Essa é uma lição que estamos aprendendo com o país.

Você fez uma coisa muito heroica quando jovem, em 1969, como parte da sua batalha contra essa ocupação e opressão. Estamos em 2023, e a ofensiva de Israel do apartheid está ainda pior hoje do que naquela época. Como você está se sentindo neste momento? O que a motiva a continuar lutando?

Comecei na luta quando tinha 15 anos de idade. Entrei para o movimento nacional árabe e não fui aceita como integrante na época. Disseram: “Você é muito jovem.” Respondi: “Certo, eu posso ajudar”. E tínhamos uma atuação, participamos de manifestações. Eu estava morando no Líbano. Entrei para a revolução pela Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), porque é a liderança do movimento nacional árabe.

Eu tive que aprender essa missão. A primeira missão foi sequestrar um avião — e eu nunca tinha ouvido falar disso. Na nossa terminologia, temos “luta”, temos “batalhas”, podemos ir para prisões. Recebi o treinamento e a FPLP, desde o início, tinha um lema: “Homens e mulheres estão na batalha pela libertação”. Então implementou-se dessa forma, para representar não só as palestinas, mas todas as mulheres, de qualquer nacionalidade, que vivenciam a opressão. No nosso pensamento e nas nossas ideias, a causa palestina não é apenas para as pessoas palestinas, mas faz parte de um movimento internacional por libertação.

Quando cheguei na cabine de pilotagem, tive que me apresentar, e adotei o nome da primeira mulher mártir depois de 1967, Shadia Abu Ghazale. E falei para o capitão: “Somos da unidade Che Guevara”, para mostrar nossa conexão com o movimento de libertação. Essa foi uma tática que utilizamos. Nossa intenção era apenas que o mundo nos ouvisse, porque não estavam nos ouvindo quando estávamos nos acampamentos, onde éramos bombardeados enquanto dormíamos. Não se ouviam os sofrimentos das mulheres e homens prisioneiros nas cadeias, nem as torturas.

Nós pensamos que, se fizéssemos aquilo, as pessoas ouviriam. Elas perguntariam “por quê? Quem são essas pessoas?” E nós queríamos que isso fosse feito de forma fantástica, sem ferir ninguém. E foi o que fizemos: uma operação limpa. Nós queríamos a libertação de nossos prisioneiros. Sabíamos muito bem que os passageiros não tinham nada a ver com o conflito. Mas recebemos uma preparação e muita instrução de nossas lideranças para não machucar ninguém.

Sobre ser mulher e a imagem das mulheres árabes em geral — de que todas usam hijab, de que seu papel na vida é só casar, ter filhos e ser controladas pelo marido ou pelo pai —, precisamos mudar isso por meio da luta nacional.

Que mensagem você têm a passar para a comunidade internacional durante esse momento crítico para a libertação da palestina?

Primeiro, conclamo a mídia. Vocês. Vocês também são o povo que luta. Mas todas as pessoas nessa posição e suas câmeras vão transmitir os fatos sobre a luta em si. Vocês são embaixadoras e embaixadores para nós, porque estão conosco. A mídia desempenha dois papéis: um para os opressores — e eles têm força suficiente para passar a mensagem deles; e vocês, que também podem ter força suficiente para passar uma mensagem para o mundo.

Nós dependemos do povo em luta. Não dependemos de governos, mesmo que declarem nos apoiar. Dependemos das forças progressistas das comunidades em que vocês vivem, e também de se disseminar fatos sobre a luta, e sobre como isso se relaciona com o capitalismo e o imperialismo. O movimento sionista faz parte dos imperialistas. Eles são os inimigos dos seres humanos em todas as partes.

Também conclamo as pessoas do mundo a expulsarem as embaixadas e os embaixadores israelenses, e também para fechar suas embaixadas em seus países. Porque se eles ainda estiverem na sua terra, significa que vocês os reconhecem como embaixadores, enquanto o país e o governo deles mata nosso povo. Se vocês estão com a luta palestina, é preciso agir.

*Entrevista conduzida coletivamente por Iolanda Depizzol, Pedro Stropasolas, Phakamile Hlubi-Majola, and Zoe Alexandra.
Trancrição e edição de texto: Bianca Pessoa
Tradução: Aline Scátola