Via Esquerda.net
“Patrulhar as redes sociais abertas, aplicações e páginas de Internet, bem como da chamada Internet Profunda ou Dark-Web” de forma a “analisar atividades para detetar potenciais ameaças, identificar movimentos de grupos delinquentes ou prever distúrbios”. Tais são alguns dos objetivos de uma “Unidade de Inteligência Artificial aplicada à Segurança”, UIAAS, criada no passado domingo através da resolução 710/2024 publicada no Boletim Oficial da República Argentina.
A unidade fica sob alçada do Ministério da Segurança, chefiado por Patricia Bullrich. O anúncio da medida causa preocupação nos movimentos sociais dado o aumento da perseguição por parte do governo de extrema-direita de Javier Milei. E o próprio historial de intimidação da ministra quando pertenceu ao executivo de Mauricio Macri.
O governo prevê também o uso da Inteligência Artificial para “reconhecimento facial”, já utilizada em Buenos Aires e já com sentenças de inconstitucionalidade, acrescenta-se a possibilidade de “analisar imagens de câmaras de segurança em tempo real” e pretende-se ainda “patrulhar com drones áreas extensas, proporcionar vigilância aérea e responder a emergências”.
À maneira de Milei, o documento legal postula ainda que “esta medida não implica qualquer despesa orçamental”, deixando dúvidas sobre como se pretende implementar sem gastos. Isto se não relacionarmos com outro facto que ocorreu está a decorrer ao mesmo tempo a criação de uma Secretaria de Inteligência de Estado com direito a 100.000 milhões de pesos argentinos de gastos secretos, o que corresponde a 70% do seu orçamento.
Uma especialista em direitos digitais ouvida pelo jornal argentino Página 12 considera a resolução “problemática” uma vez que “pressupõe que a IA tem capacidades que realmente não tem. Beatriz Busaniche, que é presidente da Fundação Via Livre, pensa que a confusão “entre as coisas que se podem fazer com IA, as coisas que não se podem fazer e as coisas que em nenhuma circunstância se devem fazer” leva por um caminho “que pode terminar muito mal”.
Para ela, “esta resolução do Governo é eloquente do mau uso da IA”. Explica que “os sistema de IA treinam-se com grandes volumes de informação e a partir daí identificam certos padrões e fazem diferenças estatística”. Assim, “confiar a um sistema deste tipo decisões que afetam a vida das pessoa é absolutamente problemático”, já para não falar “quando estas têm que ver com a aplicação do direito penal, a identificação de potenciais delitos e o traçar de perfis das pessoas”.
O sistema faz com que se possam espiar pessoas sem qualquer ordem judicial, não se sabendo sequer o que buscam nas redes sociais. Para além do mais, há a questão de interpretação de texto que uma análise deste tipo supõe: “este tipo de sistemas não identifica uma piada, um ironia, uma metáfora, são absolutamente lineares e estatísticos”.
A especialista também coloca em causa a propaganda de que não haveria custos envolvidos em montar o sistema que o decreto prevê dado que “em cada item há um negócio de compra de diferentes tipos de tecnologias”
Noutro artigo no mesmo jornal, Victoria Darraoidou, coordenadora da Segurança Democrática no Centro de Estudos Legais e Sociais, vinca que não há clareza sobre “os pressupostos em que se poderia desenvolver esta atividade de cibervigilância, com que objetivos, que sistemas automatizados, sob quais controlos, como se cumpriria lei de dados pessoais”, entre outras dúvidas. Rodrigo Iglesias, especialista em direito informático, acrescenta que tudo isto “é contrário aos procedimentos devidos, à intimidade das pessoas, não pede autorização judicial para intervir nas possíveis comunicações de advogados com os seus clientes ou de jornalistas com as suas fontes”.
Critica ainda o caráter vago da lei ao dizer, por exemplo, que vai vigiar “aplicações”, o que abre a possibilidade de espiar e-mails e entrar nos programas de mensagens como Telegram, Signal, Facebook, WhatsApp e Instagram.
A Amnistia Internacional da Argentina alerta que “a vigilância em larga escala afeta a liberdade de expressão porque encoraja as pessoas à auto-censura ou a absterem-se de partilhar as suas ideias ou críticas se suspeitarem que tudo o que comentam, postam ou publicam está a ser monitorizado pelas forças de segurança”.