Por Karla Scarmigliat e Federico Pagliero
Via Brasil de Fato
Já se passaram quase oito décadas desde a primeira caminhada histórica das populações originárias de Jujuy, no noroeste da Argentina, por 2 mil quilômetros até a capital federal Buenos Aires. Naquela época, o objetivo era exigir a restituição de seus territórios. Pouca coisa mudou desde então.
Anos depois, a marcha que ficou conhecida como “Malon de la Paz” volta a se repetir: comunidades indígenas que partiram de Quiaca, região que integra o “Triângulo do Lítio”, chegaram neste 1º de agosto, dia da Pachamana (terra), a Buenos Aires, após percorrer oito estados. Na atual edição, dão um grito de socorro contra a reforma da constituição provincial que habilita a utilização de terras que são dos povos originários, incentiva a exploração do lítio e criminaliza o direito a protestos.
A marcha pelo “Terceiro Malon de la Paz” ocorre após mais de um mês de bloqueios de rodovias na região e de respostas violentas do governo aos protestos, com denúncias de sequestros e torturas.
Em Buenos Aires, comunidades acampadas em frente ao Congresso Nacional buscam despertar a população sobre as consequências da exploração do lítio e conseguir que os responsáveis pelo Congresso da Nação e a Corte Suprema da Justiça intervenham contra a Reforma, aprovada sem a consulta prévia e informada aos povos originários, conforme prevê a lei. E prometem não ir embora até que sejam ouvidos.
“A Reforma é feita sob medida para corporações internacionais e multinacionais, para que venham explorar bens naturais como lítio, a água para o uso em operações de mineração, explorar nossos territórios e a biodiversidade, tirando nossos direitos de se expressar livremente”, indica o cacique da comunidade do povo Ocloya, em Jujuy, Nestor Jerez.
De volta aos anos de 1970
O “Terceiro Malón de la Paz” ocorre em um contexto de perseguição sistemática e ilegal de integrantes das comunidades e apoiadores que protestam contra a desacreditada Reforma. Após a aprovação do texto, em 15 de junho, cerca 63 comunidades bloquearem parcialmente duas rodovias de Punamarca, município de Jujuy, em protesto pacífico.
Porém, um dia depois, o local foi cenário de sangrenta ação repressiva do governo. Por mais de oito horas, um exército policial, muitos sem identificação, reprimiu os manifestantes com balas de borrachas disparadas na altura da cabeça, gás lacrimogênio e até com pedras. A presença de crianças, idosos e turistas no local não impediu a ação violenta.
O resultado foi desastroso, com dois jovens que perderam a visão por impactos da bala de goma e mais de 40 pessoas detidas e levadas em caminhonetes sem patentes, muitos sem que a família soubesse sobre o seu paradeiro por horas.
“Sentimos a perseguição de vários de nossos irmãos. Muitos têm medo das caminhonetes sem patente, é como uma ditadura, que vinham e te levavam e ninguém sabia onde você estava. Não tiveram compaixão, porque tínhamos crianças e pessoas idosas que não podiam correr”, relata Romina, 29 anos, mãe e estudante, pertencente à comunidade aborígene de Rodero, em Jujuy. Ela foi atingida com os tiros de bala de goma em diversas partes do corpo, uma delas ficou perto de atingir os olhos.
Bloqueios continuaram
Foram inúmeros casos de pessoas intimadas e buscadas em suas casas por veículos sem patentes. Sequestradas e desaparecidas por horas. Cenas vistas antes apenas na ditadura, com mães gravando vídeos no quais imploram por informações sobre o paradeiro de seus filhos.
Nesse filme de horrores, também se somam prisões ilegais, relatos de torturas de familiares detidos em delegacias e perseguições judiciais. Muitos integrantes de povos de nações indígenas (mais de 40 pessoas) foram citados pela justiça provincial e muitos outros tem recebido a informação de que fazem parte de uma “lista suja”, com pessoas que serão perseguidas judicialmente pelo governo.
“É uma tortura psicológica”, expressou uma originária que não quis ser identificada e que se encontra no bloqueio de Punamarca.
Lítio no centro das tensões
Estar em desacordo com a exploração do lítio é ir contra grandes corporações internacionais. Isso porque o mineral é apontado como futuro energético limpo e livre de carbono para uso nas baterias dos veículos elétricos, o que tem atraído investidores, especialmente após a crise da Ucrânia e o debate internacional sobre as mudanças climáticas.
Argentina, Bolívia e Chile formam o Triangulo do Lítio, região com extensas salinas que comportam 80% de todo o lítio existente no mundo. Isso significa que são lugares em que se conseguem extrair o lítio mais facilmente do que em rochas, deixando o processo mais barato. A extração é feita em piscinas quilométricas abertas no deserto de sal: se evapora a água das salinas e a terra que fica é onde se extrai o lítio.
Danos ambientais e sociais
São 2 milhões de litros de água utilizados para a produção de uma tonelada de carbonato de lítio. Depois de seco, o carbonato de lítio é exportado para os Estados Unidos, China e Japão. Uma das principais empresas que exploram na região, a Exar, é de capital chinês e canadense e prevê extrair um total de 40 mil toneladas de carbonato de lítio por ano, durante 40 anos. Apenas 3% de toda a arrecadação fica na Argentina. Em Jujuy, outros 13 projetos estão em andamento.
“Dizem que vamos ter benefícios, que o povo vai crescer, mas as comunidades continuam pobres e as empresas lucrando. E de nada adianta ter benefícios se não vamos ter água. Com la pacha (terra) vivemos e respiramos”, declara Jaqueline Carrillo, da comunidade de Sausalito, em Jujuy.
O integrante da comunidade indígena de Maimará, em Jujuy, Walter Jurado, de 37 anos, conta que já é possível notar a seca e impactos na fauna e flora. “Nossos animais estão crescendo menos, as árvores que antes cresciam três metros, agora crescem um metro, já não se pode semear com a seca prolongada. Queremos que a água siga fluindo por nossas terras”, diz.
A doutora e bióloga da organização “Povos pela água” de Jujuy, Florencia Babarich, destaca que a extração nas salinas dessa região andina é preocupante pois há um ecossistema muito frágil, com grande biodiversidade, sobretudo microscópica. “Com a evaporação de toda essa água, se termina gerando desbalanços, especialmente hídricos, com consequências que podem ser sentidas a quilômetros de distancia”, explica.
Enquanto isso em Minas Gerais, Vale do Jequitinhonha é reduzido a “Vale do Lítio”
A caça a “mina de ouro” do mercado financeiro já chegou ao Brasil, mais especificamente ao Vale do Jequitinhonha, região norte de Minas Gerais, e é respaldada por intensivo investimento midiático. O governo do Estado de Minas Gerais, sob o comando do governador Romeu Zema, pretende atrair até R$ 30 bilhões (US$ 6,31 bilhões) em investimentos em lítio até 2030 com o programa "Vale de Lítio". A iniciativa abrange 14 localidades que abrigam o maior potencial de lítio do país.
Durante muito tempo, a única empresa a minerar lítio no Vale do Jequitinhonha foi a Companhia Brasileira de Lítio (CBL). A companhia explora o mineral na Mina de Cachoeira, em Aracuaí, e também tem uma planta química em Divisa Alegre. Este ano entrou em cena a companhia SIGMA Lithium Valley, que iniciou com cerca de R$ 5 bilhões em investimentos confirmados.
Os chefes executivos da Lithium Valley vieram da Goldman Sachs, uma das instituições financeiras mais importantes do mundo. No dia 27 de julho de 2023, a companhia enviou sua primeira remessa de concentrado de espodumênio, chamado "lítio verde triplo zero", para a China.
Em Minas Gerais, o processo de licenciamento ambiental ocorreu de forma relativamente rápida. O governo estadual também facilitou a privatização dos direitos de mineração por meio da Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais (Codemge) e da Codemig Participações S/A.
Outras empresas estão começando a investir pesadamente no chamado "Vale do Lítio", que inclui os municípios de Araçuaí, Capelinha, Coronel Murta, Itaobim, Itinga, Malacacheta, Medina, Minas Novas, Pedra Azul, Virgem da Lapa, Teófilo Otoni e Turmalina, no Nordeste de Minas, além de Rubelita e Salinas.
A previsão do governo é que até 2030 os investimentos privados cheguem a até R$ 30 bilhões. Quatro grandes projetos foram atraídos, com geração média de empregos em torno de 3.760 postos de trabalho, segundo comunicado do Estado.
“O governo estadual não está ajudando apenas acelerando o processo de aprovação e facilitando o acesso aos direitos de mineração, mas também por meio de um marketing ativo intensivo em nível internacional, o que raramente é visto por parte do setor público”, analisa o professor Klemens Augustinus Laschefski.
Passado x futuro
Enquanto a Companhia Brasileira de Lítio (CBL) opera uma mina subterrânea, a Sigma Lithium está abrindo enormes cavas para mineração a céu aberto. Em apenas algumas semanas, já destruiu uma área muito maior do Vale do Jequitinhonha do que a CBL fez em 30 anos.
Há também grandes diferenças na produção de resíduos. Enquanto a CBL produz cerca de 10% de resíduos devido à mineração subterrânea do Pegmatito Litinífero, a mina a céu aberto produz 96% de rejeitos. “Na verdade, a Sigma deveria se chamar SIGMA Rejeitos ao invés SIGMA Lítio”, avalia Laschefski.
Ele explica que a companhia é basicamente uma empresa de mineração comum, com todos os problemas que as intervenções em larga escala na paisagem acarretam. “Visitamos comunidades próximas à mina, cuja saúde já está sendo afetada pela poeira, pelo barulho noturno e pelas vibrações das detonações. Algumas casas já estão rachadas”, relata.
Segundo estudos, mesmo que a empresa cumpra as normas ambientais para proteger a vegetação ao longo das margens do rio, não apenas os fluxos de água subterrânea, mas também o próprio Rio Jequitinhonha será significativamente afetado. A região semiárida já está sofrendo com a escassez de água.
Para o professor, mineração e sustentabilidade são uma contradição, pois os recursos logo se esgotarão. O Sigma, por exemplo, calcula que isso levará de 8 a 15 anos. “Depois disso, o fantasma do desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha desaparecerá, enquanto as áreas de mineração serão devastadas”, conclui.
Projeto Sigma
Além da mina atualmente em operação, a Sigma quer abrir outras oito.
A empresa também planeja minerar a céu aberto até 400 metros em ambos os lados do Rio Jequitinhonha.
Os projetos de lítio Itinga e Salinas da empresa cobrem mais de 14.000 hectares no distrito de Araçuaí.
* Karla Scarmigliat é jornalista.
** Federico Pagliero é advogado de Direitos Humanos pela Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos da Argentina (APDH).
Fonte: BdF Minas Gerais
Edição: Rodrigo Chagas e Elis Almeida