Entrevista publicada originalmente no The Conversation.
Traduzida por Carlos Carujo para o Esquerda.net.
Nesta entrevista, a historiadora Taline Ter Minassian explica o colapso da auto-proclamada República de Artsakh, os jogos políticos entre Rússia, Turquia e Irã e a situação da população armênia que teme o futuro.
Depois da ofensiva relâmpago do Azerbaijão, em 20 de setembro, que fez pelo menos 200 mortos e levou à capitulação dos secessionistas, foi instaurado um cessar-fogo no Nagorno-Karabakh. Dois dias mais tarde, o Conselho de Segurança da ONU, reunido a pedido da França, foi palco de acesas discussões entre representantes de Baku e da Armênia, que protege historicamente esta região incorporada no Azerbaijão durante a era soviética, mas habitada quase exclusivamente por armênios.
O Nagorno-Karabakh tinha proclamado a sua independência de Baku em 1991, no momento do colapso da URSS. Seguiu-se uma guerra de três anos, que acabou por ser ganha pelas forças arménias do Nagorno-Karabakh, apoiadas amplamente pela Arménia. Na sequência disto, estabeleceram na região a República de Artsakh, um Estado de facto dotado de um pleno funcionamento estatal, com estruturas oficiais, eleições e um exército, mas que não era reconhecido por nenhum Estado representado na ONU. Baku nunca aceitou esta derrota e o Karabakh tornou-se um dos muitos conflitos congelados do espaço pós-soviético. O Azerbaijão retomou com sucesso as hostilidades em grande escala em 2020, recuperando uma parte considerável da região em disputa. Será que a sua vitória de 20 de setembro significa o fim deste conflito? A historiadora Taline Ter Minassian, especialista na região, responde aqui às principais questões sobre a situação atual no Nagorno-Karabakh e as perspetivas de futuro dos seus habitantes.
Como é atualmente a vida em Stepanakert, a principal cidade do Nagorno-Karabakh e capital da república auto-proclamada em 1991?
As pessoas estão muito assustadas. Muitas delas estão escondidas em caves. Foi declarado um cessar-fogo, mas os soldados azeris estão nas proximidades da cidade. De qualquer forma, não estavam muito longe, porque, mesmo antes do ataque de 20 de setembro, já detinham a cidade vizinha de Shushi, a apenas dez quilómetros de distância, que controlaram durante a guerra de 2020.
Uma parte da população foi alojada no aeroporto de Stepanakert – um aeroporto onde nenhum avião civil aterrou durante trinta anos e que é agora uma espécie de campo entrincheirado nas mãos dos militares russos, presentes como parte da missão de manutenção da paz estabelecida no final da guerra de 2020.
Qual era a situação no Nagorno-Karabakh na véspera do ataque que o Azerbaijão acaba de lançar?
Em 10 de novembro de 2020, um cessar-fogo assinado sob os auspícios de Vladimir Putin tinha acabado com a chamada “guerra dos 44 dias” que foi, de facto, a segunda guerra de Karabakh. A primeira tinha sido ganha pelo lado arménio no início da década de 1990. A segunda, no outono de 2020, foi indiscutivelmente ganha pelo Azerbaijão, que recuperou o perímetro em torno do enclave, ate então controlado pelos arménios, bem como cerca de dois terços do próprio enclave.
O cessar-fogo previa, por um lado, a garantia de comunicações entre a Arménia e o Karabakh, através da estrada do corredor de Latchine, e entre o Azerbaijão e Nakhichevan, um exclave do Azerbaijão situado a oeste do território arménio e que faz fronteira com a Turquia – por outras palavras, o Azerbaijão e a Turquia beneficiariam de uma espécie de ligação terrestre direta.
Um certo número de arménios – invoca-se o número de 120.000 mas é difícil de verificar – tinha permanecido nas zonas de Karabakh ainda controladas pelas autoridades da República de Artsakh, bem como em certos territórios adjacentes tomados pelos azerbaijaneses. Visitei Stepanakert logo no início da aplicação do acordo de cessar-fogo de 2020. A situação parecia mais ou menos estabilizada, nomeadamente devido à presença de forças de manutenção da paz russas estacionadas ao longo do famoso corredor de Latchine.
Mas esta situação não podia satisfazer o Azerbaijão durante muito tempo e, no inverno passado, este montou um verdadeiro bloqueio, impedindo toda a circulação no interior do corredor de Latchine. O Karabakh estava assim cortado da Arménia, ou seja da sua única ligação com o mundo exterior, durante nove meses. Alguns dias antes do ataque de 20 de setembro, o Azerbaijão tinha reaberto uma estrada que liga o seu território a Karabakh, oficialmente para encaminhar ajuda humanitária mas, na realidade, sem dúvida, também e sobretudo para transportar os seus soldados e equipamento militar.
A 20 de setembro, em total violação do cessar-fogo assinado em 2020, o Azerbaijão lançou um violento ataque contra Stepanakert e arredores. Houve muitos mortos, incluindo vários soldados russos, entre os quais um dos altos responsáveis das forças de manutenção da paz. O Presidente Ilham Aliev enviou uma breve carta a Putin lamentando as suas mortes. Em menos de 24 horas, as autoridades da república do Nagorno-Karabakh foram obrigadas a aceitar o desarmamento total.
Por que é que o Azerbaijão decidiu atacar agora?
É uma banalidade dizê-lo mas, para a Rússia, oficialmente o garante do cessar-fogo, a prioridade hoje é obviamente outra. No âmbito da sua guerra na Ucrânia, Moscovo precisa da Turquia, o padrinho internacional do Azerbaijão. Um sinal que não engana: na véspera do ataque do Azerbaijão, Erdogan disse numa entrevista que a Crimeia nunca regressaria à Ucrânia. Nunca antes tinha feito tais declarações. Isto pode ser interpretado como uma espécie de moeda de troca para a passividade do Kremlin no caso de Karabakh. Uma coisa é certa: Aliev não teria agido sem a luz verde de Erdogan. Rico com a venda do seu petróleo e sobre-armado, graças nomeadamente à compra de armas a Israel, com quem se aproximou recentemente, o Azerbaijão era evidentemente muito superior, do ponto de vista militar, às forças de Karabakh.
Como explicar esta aproximação?
É um jogo diplomático muito complexo. Para Israel, que desconfia muito do Irão, é importante ter boas relações com o Azerbaijão, que tem relações tensas com este país, nomeadamente porque os iranianos temem o irredentismo da sua região norte, chamada Azerbaijão iraniano, e também porque o Irão é muito hostil à OTAN, da qual a Turquia, grande aliada de Baku, é membro.
As grandes manobras não param, com cada um a defender os seus interesses: há dois dias, o ministro da Defesa russo, Sergei Choigou, visitou Teerão e os dois países mostraram o seu entendimento… Quanto aos habitantes comuns arménios do Karabakh, não compreendem muito bem este Grande Jogo de que são vítimas pois correm agora o risco de serem expulsos das suas terras.
Existe o risco de uma limpeza étnica orquestrada por Baku em Karabakh?
As autoridades azeris bem podem defender-se e afirmar que os habitantes de Karabakh estão vocacionados a ser cidadãos do Azerbaijão como quaisquer outros, mas, na realidade, há muito tempo que está em curso uma campanha para os aterrorizar e expulsar – foi esse o objetivo do bloqueio do corredor de Latchine que deixou o Karabakh à mercê da fome.
Agora que o Azerbaijão tem nas suas mãos todo o enclave, é difícil imaginar que os arménios possam continuar a viver ali durante muito tempo sem garantias de segurança. Parece provável um êxodo em massa – o que seria uma espécie de repetição das páginas mais terríveis da história dos arménios, como as de 1915 ou 1921.
Como se pode descrever o atual regime do Azerbaijão?
Trata-se certamente de um regime autoritário que não tem absolutamente nada de democracia. É governado por uma dinastia no poder desde a era soviética, uma vez que o anterior presidente do país, Heïdar Aliev (1993-2003), pai do atual presidente Ilham Aliev, que lhe sucedeu após a sua morte, foi um destacado oficial do KGB e membro do Politburo da URSS, antes de se tornar Presidente da República Socialista Soviética do Azerbaijão (RSS).
O regime esmaga todas as vozes discordantes e não tem qualquer intenção de conceder a mínima autonomia a Karabakh, apesar de a região só ter sido integrada na URSS na altura em que gozava do estatuto de região autónoma dentro da RSS do Azerbaijão.
Para além disso, os azeris não param de afirmar que são “os irmãos dos turcos” e utilizam a fórmula “Uma nação, dois Estados” para descrever a sua relação com a Turquia. Os arménios não têm lugar algum nesta visão.
Hoje, Baku e Ancara – que negam oficialmente o genocídio arménio de 1915 – estão numa posição de força e não se pode esperar que mostrem qualquer delicadeza para com os arménios. Estes seriam muito ingénuos se tomassem as palavras dos líderes de Baku pelo seu valor facial – especialmente porque acabaram de trair a sua palavra ao violar impiedosamente o cessar-fogo de 2020.
Desta vez, a Arménia não interveio para apoiar o Karabakh…
Claro, mas não tinha meios para o fazer depois da guerra que perdeu há três anos, na qual tinha perdido milhares de soldados. Há hoje na Arménia um grande movimento hostil ao primeiro-ministro Nikol Pachinian, que é acusado de ter tentado, sem sucesso, jogar em todos os tabuleiros e de ter tentado dar demasiadas garantias à Rússia, ao Azerbaijão e ao Ocidente ao mesmo tempo; mas há também o entendimento de que, sejam quais forem as razões, desta vez o exército arménio não tinha capacidade para ir sozinho em socorro do Karabakh.
Em suma, parece que estamos a assistir a mais um episódio semelhante ao de há cem anos, quando a Arménia ficou encurralada entre a Turquia de Mustafa Kemal e a URSS. Só que já não existe uma URSS para a absorver e a Rússia não vai certamente tentar fazê-lo, quanto mais não seja porque não tem continuidade territorial com a Arménia.
Além do Karabakh, estará a Arménia em perigo?
Teremos de acompanhar esta história da junção do Azerbaijão e da Turquia através do sul da Arménia. Se isto se materializar será mais uma catástrofe para a Arménia que corre o risco de ser reduzida territorialmente. Mas este é um cenário que o Irão quererá absolutamente evitar, porque Teerão está muito interessado em conservar uma fronteira comum com a Arménia e um tal corredor equivaleria a privá-lo disso. Nesse caso, uma deflagração generalizada não poderia ser descartada.
Os ocidentais têm sido mais discretos nesta questão, ainda que a França tenha convocado de urgência o Conselho de Segurança da ONU…
Os europeus estão longe, os americanos ainda mais. O que importa aqui é o jogo das potências regionais. E se o Irão é hostil ao Azerbaijão, por outro lado Ancara apoia-o totalmente e a Rússia não quer ficar zangada nem com o Azerbaijão nem com a Turquia.
Moscovo sempre deu preferência a Baku em detrimento de Yerevan, particularmente pela riqueza de hidrocarbonetos do Azerbaijão – esta é também uma das razões pelas quais o Karabakh acabou por ser atribuído pelos Bolcheviques ao Azerbaijão, em vez de à Arménia. Em suma, mais uma vez, os Arménios encontram-se sozinhos face à sua inextricável situação geopolítica.
Taline Ter Minassian é historiadora e diretora do Observatório dos Estados Pós-Soviéticos do Inalco, Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais.