Por Gilbert Achcar.
Publicado originalmente no blogue do autor. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.
O branqueamento dos judeus derivou para uma admiração por uma Israel vista como super-branca, um posto avançado do supremacismo branco no Oriente Médio. Quando este se lança numa fúria de assassinato e destruição em Gaza, a reação inevitável é um ressurgimento de um antissemitismo centrado no Estado israelense.
É atualmente difícil considerar os judeus europeus como não-brancos. O mantra de que a muito branca “civilização ocidental” seria “judaico-cristã” tornou-se tão omnipresente que adquiriu o estatuto de um preconceito comum, digno do Dictionnaire des idées reçues de Gustave Flaubert. Este mesmo mantra foi fortemente reforçado nos últimos tempos pela forma como os governos ocidentais, a começar pela administração americana de Joe Biden, apoiaram incondicionalmente o governo israelita de extrema-direita de Benyamin Netanyahu nas inúmeras de represálias que lançou contra a Faixa de Gaza, causando a morte de um enorme número de habitantes, incluindo uma proporção aterradora de crianças, bem como a devastação da maior parte do território do enclave e a deslocação da grande maioria dos sobreviventes – tudo isto enquanto hipocritamente afirma estar preocupado com a necessidade de poupar civis. Este apoio incondicional resulta de uma identificação ocidental com os israelitas face ao ataque de 7 de outubro de 2023 que é muito semelhante à “compaixão narcísica” que os europeus sentiram pelos americanos face aos ataques de 11 de setembro de 2001. Há 22 anos, descrevi esta última como um tipo de compaixão “que se comove muito mais com as calamidades que atingem pessoas semelhantes do que com as de populações diferentes”[1].
Os judeus como não-brancos
E, no entanto, a perceção dos judeus europeus como brancos é bastante recente na perspetiva histórica. Durante a maior parte da sua história, os judeus europeus foram vistos como “não-brancos”, principalmente no sentido de não-europeus: migrantes da Ásia Ocidental. As línguas europeias testemunham esta perceção na designação, agora obsoleta, dos judeus como israelitas em inglês e francês, ou na sua designação ainda em vigor como hebreus em grego, italiano, russo e outras línguas da Europa Oriental. Os próprios judeus da Europa aderiram durante muito tempo a uma auto-identificação enquanto povo migrante: não uma componente das inúmeras migrações que estão na origem das nações europeias modernas, mas uma população especificamente desenraizada que preservou a sua singularidade através dos tempos, conforme a narrativa bíblica.
A modernização e a democratização da Europa Ocidental e Central no século XIX tornaram possível uma emancipação e assimilação progressivas dos judeus. Este processo inverteu-se perigosamente quando, no final do século, os judeus do Império Russo foram cada vez mais tomados como bodes expiatórios e emigraram em grande número para o Ocidente para escapar às perseguições, no contexto da primeira grande crise da economia capitalista mundial – a Grande Depressão de 1873-1896. A combinação de migração e crise económica levou a um aumento da xenofobia e do racismo nos países de destino – um fenómeno recorrente desde então. Os judeus foram o alvo da extrema-direita em ascensão na Europa do final do século XIX, uma tendência que continuou e atingiu o seu auge no período entre guerras do século seguinte, marcado pela crise. [2] A secularização da Europa e a ascensão do cientismo no século XIX resultaram na laicização deste ódio renovado aos judeus: os velhos preconceitos cristãos deram lugar a um “antissemitismo” pseudo-científico.
Os judeus da Europa Ocidental distinguiam-se, na melhor das hipóteses, dos imigrantes da Europa de Leste, ou eram postos no mesmo saco destes como membros de uma categoria racial inferior e denegrida [3]. A assimilação dos judeus na Europa Ocidental foi assim largamente invertida entre o final do século XIX e meados do século XX, com a diferença de que os judeus já não eram vistos pelos seus odiadores como um “povo deícida”, mas como membros de uma raça semita ou da Ásia Ocidental/do Próximo Oriente abominada pelos arianos ou europeus brancos. A referência a um continuum indo-europeu ariano foi um dispositivo ideológico adotado pelo nazismo em busca de um fundamento científico na linguística para a sua visão racista do mundo. Era mais aceitável para os europeus do sul, como os fascistas italianos, do que a teoria racial alternativa do "supremacismo branco", conhecida como "Nordicismo", que estava mais próxima da crença espontânea do racismo comum na Alemanha e noutros países nórdicos.
O próprio Hitler ficou muito impressionado com as opiniões do linguista-antropólogo nordicista Hans Friedrich Karl Günther, que refutou explicitamente a caraterização racial dos judeus como semitas ou mesmo como membros de uma “raça judaica”[4]. Günther resumiu as suas ideias sobre os judeus, em contraste com outros povos europeus, no seu livro de 1924, Rassenkunde Europas (Estudos Raciais da Europa). Vale a pena citar longamente estas divagações, que hoje só são conhecidas por historiadores especializados:
Há toda uma série de ideias falsas sobre os judeus. Diz-se que pertencem a uma “raça semita”. Mas isso não existe; existem apenas povos de língua semítica com diferentes composições raciais [...] Diz-se que os próprios judeus constituem uma raça: “a raça judaica”. Isto é igualmente falso; mesmo um exame superficial revela que há pessoas de aparência muito diferente entre os judeus. Os judeus são supostos ser uma comunidade religiosa. Este é o erro mais superficial, pois há judeus de todas as crenças europeias e, particularmente entre os judeus com as mais fortes opiniões judaico-étnicas [Jüdisch-völkisch], os sionistas, muitos não aderem ao credo mosaico. [...]
Os judeus são um povo [Volk] e, como outros povos, podem ser divididos em várias crenças e, como outros povos também, são compostos por diferentes raças. As duas raças que constituem a base do povo judeu são [...] os asiáticos ocidentais [vorderasiatische, igualmente traduzido como próximo-orientais] e os orientais. Há também influências mais ligeiras das raças hamítica, nórdica, da Ásia Central e negra, e influências mais fortes da raça do Báltico Ocidental e, sobretudo, do Báltico Oriental.
Distinguem-se duas partes do povo judeu: os judeus do Sul (sefarditas) e os judeus do Leste (asquenazes); os primeiros representam um décimo, os segundos nove décimos da população total de cerca de 15 milhões. Os primeiros são principalmente os judeus de África, da Península Balcânica, de Itália, de Espanha e de Portugal, e uma parte dos judeus de França, da Holanda e de Inglaterra. Estes judeus do Sul representam uma mistura oriental-ocidental-asiática-ocidental-hamítica-nórdica-negra com predominância da raça oriental. Os judeus orientais constituem os judeus da Rússia, Polónia, Galícia, Hungria, Áustria e Alemanha, provavelmente a maior parte dos judeus da América do Norte e parte dos judeus da Europa Ocidental. Representam uma mistura de Ásia Ocidental-Ásia Oriental-báltica-Ásia Central-nórdica-hamita-negra, com uma certa predominância da raça da Ásia Ocidental.
Em ambos os ramos do judaísmo, no entanto, aparentemente produziram-se processos de seleção semelhantes, que estreitaram, por assim dizer, o círculo de possíveis cruzamentos numa tal mistura racial de modo que os traços físicos e mentais aparecem repetidamente no povo judeu como um todo, que são tão semelhantes entre uma grande proporção de judeus em todos os países que a impressão de uma “raça judaica” pode facilmente surgir[5].
Günther aprovava a “solução” sionista para a questão judaica:
Uma solução válida e clara para a questão judaica reside na separação entre judeus e não-judeus pretendida pelo sionismo, na disjunção entre judeus e povos não-judeus. Entre os povos da Europa, cuja composição racial é completamente diferente da do judaísmo, este último atua, nas palavras do escritor judeu Buber, como “uma cunha que a Ásia cravou na estrutura da Europa, um fermento de agitação e problemas”[6].
O Buber citado por Günther não é outro senão o famoso filósofo austríaco Martin Buber, então conhecido como um fervoroso apoiante do sionismo e admirador de Theodor Herzl. Günther retirou a sua citação da seguinte conclusão de um artigo intitulado “O país dos Judeus” (1910), republicado em 1916 na coleção de Buber Die Jüdische Bewegung (O Movimento Judaico):
O que temos aqui é uma cunha que a Ásia cravou na estrutura da Europa, um fermento de agitação e problemas. Regressemos ao seio da Ásia, ao grande berço das nações, que foi também e continua a ser o berço dos deuses, e reencontremos assim o sentido da nossa existência: servir o divino, experimentar o divino, estar no divino [7].
As diatribes racistas à la Günther foram muito difundidas do outro lado do Atlântico no mesmo período entre as duas guerras. Um autor eminente neste domínio é Kenneth L. Roberts, jornalista e membro da elite WASP [acrónimo de “white Anglo-Saxon Protestant”, protestante branco anglo-saxão] (licenciado pela Universidade de Cornell), cujo discurso não tinha as divagações pseudo-sábias de Günther e está, por isso, de certa forma, mais próximo do racismo anti-migrante dos nossos dias. Roberts disseminará os seus pontos de vista em vários jornais e revistas e, em 1922, publicará uma coletânea dos seus artigos sob o título Why Europe Leaves Home (porque a Europa emigra). Eis uma amostra da sua prosa, extraída desse livro:
“Mesmo as autoridades de imigração mais liberais em matéria de imigração constatam que os judeus polacos são parasitas humanos, que vivem uns dos outros e dos seus vizinhos de outras raças através de meios muitas vezes desonestos, e que continuam a existir da mesma forma depois de chegarem à América, sendo por isso altamente indesejáveis como imigrantes” [8].
“As raças não podem ser cruzadas sem abastardarem, assim como as raças de cães não podem ser cruzadas sem abastardarem. A nação americana foi fundada e desenvolvida pela raça nórdica, mas se mais alguns milhões de membros das raças alpina, mediterrânica e semita forem despejados no nosso seio, o resultado será inevitavelmente uma raça híbrida de pessoas que são tão inúteis e imprestáveis como os mestiços da América Central e do Sudeste da Europa”. [9]
“A América está confrontada com um estado de emergência perpétuo enquanto as suas leis permitirem que milhões de estrangeiros não-nórdicos passem pelas suas portas marítimas. Quando este afluxo deixar de criar um estado de emergência, a América ter-se-á tornado completamente bastarda”. [10.
Também não se deve esquecer que os judeus da Rússia, da Polónia e de quase todo o Sudeste da Europa não são europeus: são asiáticos e, em parte, pelo menos, mongolóides. […] Haverá, claro, muitas pessoas bem intencionadas que negam que os judeus russos e polacos tenham sangue mongoloide nas suas veias. Este facto pode, no entanto, ser facilmente verificado na secção da Enciclopédia Judaica que trata dos cazares. A Enciclopédia Judaica afirma que os cazares eram “um povo de origem turca cuja vida e história estão intimamente ligadas aos primórdios da história dos judeus da Rússia”[11].
O branqueamento dos judeus ocidentais
Por um paradoxo histórico, o pior episódio vivido pelos judeus europeus na sua longa provação de vários séculos – ou seja, claro, o genocídio nazi dos judeus, vulgarmente designado por Shoah em francês e Holocausto em inglês – foi o principal catalisador do seu reconhecimento nas décadas do pós-guerra como parte legítima da civilização ocidental, ao mesmo nível dos europeus de ascendência cristã. Foi sobretudo nos Estados Unidos que esta assimilação e a redefinição da civilização ocidental como “judaico-cristã” progrediram. Como observou Peter Novick em 1999 :
“Antes da Segunda Guerra Mundial, era comum ouvir a América ser descrita como um país cristão – uma designação estatisticamente irrefutável. Depois da guerra, os líderes de uma sociedade não menos cristã na sua esmagadora maioria acomodaram os judeus, passando a falar das nossas “tradições judaico-cristãs”; elevaram os 3% da sociedade americana que era judaica à paridade simbólica com grupos muito maiores, falando de “protestantes-católicos-judaicos”[12].
Mark Silk descreveu como a ideia de “judaico-cristianismo” emergirá na luta ideológica contra o fascismo e como foi integrada após a Segunda Guerra Mundial como um pedigree ideológico distintivo, permitindo estabelecer um contraste com as duas variantes – fascista e comunista – do totalitarismo. Esta ideia tornou-se assim um ingrediente maior da ideologia da Guerra Fria:
“[...] a designação “judaico-cristã” e os termos associados eram imparáveis. Após as revelações sobre os campos de extermínio nazis, uma frase como “a nossa civilização cristã” parecia sinistramente exclusora; era necessário um maior grau de inclusão para proclamar a espiritualidade do American Way. “Quando os nossos próprios líderes espirituais procuram os fundamentos morais dos nossos ideais democráticos”, observou Arthur E. Murphy, de Cornell, na Conferência de 1949 sobre Ciência, Filosofia e Religião, "tendem a encontrá-los na 'nossa herança judaico-cristã', na cultura do 'Ocidente' ou na 'tradição americana'. Por seu lado, Murphy opunha os líderes espirituais americanos aos líderes da União Soviética, que proclamavam os seus próprios ideais morais elevados. [...] “Judaico-cristão” servia o mesmo objetivo, salientando, de uma forma que incluía americanos de todas as crenças, a piedade dos Estados Unidos em contraste com a impiedade da URSS[13].
“O antissemitismo americano fazia parte de um género mais vasto de racismo no final do século XIX, dirigido contra todos os imigrantes do Sul e do Leste da Europa, bem como contra os imigrantes asiáticos, para não falar dos afro-americanos, dos nativos americanos e dos mexicanos. Estas opiniões justificavam todo o tipo de tratamento discriminatório, incluindo o fechamento de portas à imigração da Europa e da Ásia entre 1882 e 1927. Esta situação mudou radicalmente após a Segunda Guerra Mundial. As mesmas pessoas que tinham promovido o nativismo e a xenofobia ficaram subitamente ansiosas por acreditar que as pessoas de origem europeia que tinham expulsado, vilipendiado como membros de raças inferiores e impedido de imigrar alguns anos antes, eram agora cidadãos suburbanos brancos exemplares de classe média” [14].
Hollywood e a “indústria cultural” contribuíram naturalmente de forma poderosa para esta mutação ideológica, nomeadamente na sua representação da Segunda Guerra Mundial e do Shoah. Os judeus retratados em filmes e programas de televisão ao longo dos anos têm sido sobretudo judeus assimilados – quase sem representação dos judeus tradicionalistas da Europa de Leste, em especial os judeus ortodoxos, como os haredim ou os judeus hassídicos, apesar de terem sido proporcionalmente os mais afetados pelo Shoah. Uma anedota reveladora a este respeito é o que Barbra Streisand enfrentou quando tentou obter o apoio de Hollywood para o seu projeto de fazer um filme baseado em “Yentl”, o conto de Isaac Bashevis Singer (em inglês: "Yentl, the Yeshiva Boy"). A diretora de produção da 20th Century Fox, ela própria judia, ter-lhe-á dito: “A história é demasiado étnica, demasiado esotérica.” [15] A mini-série televisiva Holocausto de 1978 – “sem dúvida, o momento mais importante da entrada do Holocausto na consciência geral americana”, segundo Peter Novick[16] – retratava uma família fictícia de judeus alemães da classe média, naturalmente muito assimilados.
O branqueamento dos judeus americanos foi acompanhado por uma mudança na utilização política dominante da Shoah. Em vez de ser um caso extremo daquilo a que o racismo de todos os tipos pode conduzir e, por conseguinte, um ponto de referência invocado na luta contra todas as formas de racismo, o Shoah foi transformado no culminar de um ódio específico apenas contra os judeus. De um grito de alarme contra todos os tipos de perseguição racista suscetíveis de conduzir a um genocídio, o “nunca mais” foi reduzido a um grito de alarme contra o racismo anti-judaico concebido como singular. Como Peter Novick observou em 1999:
“Nas últimas décadas, as principais organizações judaicas invocaram o Holocausto para afirmar que o antissemitismo é uma forma de ódio particularmente virulenta e assassina”. Isto contrastava com a ênfase que tinha sido colocada nas “raízes psicológicas comuns de todas as formas de preconceito racista” nas primeiras décadas do pós-guerra, quando as mesmas organizações judaicas líderes “pensavam que podiam servir a causa da auto-defesa judaica combatendo o preconceito e a discriminação contra os negros, assim como atacando diretamente o antissemitismo” [17].
Isto validou retrospetivamente o famoso protesto do poeta martinicano Aimé Césaire, em 1950, contra a duplicidade de critérios do Ocidente na reação ao destino dos judeus europeus em comparação com o dos não brancos. Césaire formulou-o no seu famoso Discours sur le colonialisme de Césaire, no qual afirmava, referindo-se ao “burguês muito distinto, muito humanista e muito cristão do século XX”, que:
Esta afirmação era apenas parcialmente verdadeira em 1950. Porque, como vimos, os judeus europeus não eram considerados brancos por uma grande parte dos brancos “burgueses do século XX” antes do Shoah. Só mais tarde é que o Shoah adquiriu o carácter de um crime contra os brancos na representação comum. O que continua a ser verdade, porém, é que o tratamento degradante e, em última análise, genocida infligido pelos nazis aos judeus e a uma série de outras categorias humanas teve lugar no coração da Europa, e não algures no coração das trevas, longe da vista dos europeus, onde teria certamente suscitado muito menos desaprovação da sua parte.
A conversão do antissemita em filossionista
Distinguir o Shoah como irredutível a uma instância de racismo e genocídio genérico permitiu uma outra operação: a identificação do Estado de Israel com a condição judaica, apesar de ser a própria antítese dessa condição histórica – um Estado de maioria judaica, fundado na discriminação racista contra os não-judeus, fortemente militarizado e empenhado na perseguição de outro povo, os palestinianos, e na ocupação das suas terras, com ataques assassinos periódicos contra eles, até ao massacre de proporções genocidas que está a ser perpetrado em Gaza no momento em que estas linhas estão a ser escritas.
Sem surpresa, ainda que paradoxalmente, este processo atingiu o seu apogeu na Alemanha, o berço do nazismo e dos autores do genocídio judeu. Foi longamente estudado por Frank Stern no seu livro de 1992 The Whitewashing of the Yellow Badge: Antisemitism and Philosemitism in Postwar Germany, originalmente uma tese de doutoramento defendida na Universidade de Telavive [20]. [20] O estudo de Stern foi atualizado e ampliado por Daniel Marwecki no seu livro de 2020, Germany and Israel: Whitewashing and Statebuilding. [21] Naturalmente, a identificação com Israel na sua luta contra os palestinianos e outros árabes é facilmente transformada num veículo para o racismo anti-árabe e anti-muçulmano, o mesmo racismo em que se baseia a ideologia dominante em Israel. Daí a facilidade com que as correntes de extrema-direita tradicionalmente antissemitas na Europa recorreram ao filo-sionismo para se “desculparem”, dissolvendo os judeus numa brancura genérica, ao mesmo tempo que continuam a considerar Israel como o único país a que legitimamente pertencem.
Perante a recente sequência de acontecimentos em Gaza, a atitude filo-semítica pró-israelita na Alemanha desceu ao grotesco, como Susan Neiman descreveu de forma vivida:
“As denúncias alemãs do Hamas e as declarações de solidariedade inabalável para com Israel tornaram-se tão automáticas que uma apareceu na caixa multibanco do meu banco local: “Estamos horrorizados com o ataque brutal a Israel. As nossas simpatias estão com o povo israelita, as vítimas, as suas famílias e amigos”. O aviso apareceu uma vez quando toquei no ecrã, outra vez quando escolhi uma língua, uma terceira vez quando digitei o meu PIN e outra vez quando o dinheiro saiu da ranhura. Quer venham de uma máquina ou de um político, estas afirmações não me tranquilizam. Pelo contrário, a repetição de fórmulas insípidas aumenta o meu medo crescente de reações negativas. As defesas reflexas da Alemanha em relação a Israel, abstendo-se de criticar o seu governo ou a sua ocupação da Palestina, só podem gerar ressentimentos. A maior parte dos políticos reconhece o problema em privado, mas sente-se obrigada a repetir frases vazias em público – mesmo sabendo que os partidos de direita estão a usar o massacre em Israel para atiçar o sentimento anti-imigração na Alemanha” [22].
Eleonore Sterling, nascida Oppenheimer, cujos pais morreram no Shoah, expressou as coisas muito corretamente no Die Zeit, em 1965: “O antissemitismo e a nova idolatria dos judeus têm muito em comum”. [23] Ambos, acrescentou, “resultam da incapacidade psicológica de respeitar verdadeiramente o “outro”. Tanto para o antissemita como para o filo-semita, o judeu continua a ser um estrangeiro”. O branqueamento dos judeus derivou assim para uma admiração altamente repreensível por um Israel visto como super-branco, um posto avançado do supremacismo branco no Médio Oriente – no berço do Islão, o principal objeto de ódio do racismo atual no Norte global. Quando esse suposto posto avançado se lança numa fúria de assassínio e destruição em Gaza, que o Washington Post descreveu como estando a ser levada a cabo “a um ritmo e nível de devastação que provavelmente excede qualquer conflito recente”,[24] a reação inevitável é um ressurgimento do antissemitismo centrado no Estado israelita – transformando assim, infelizmente, o mantra do “novo antissemitismo” numa profecia que se cumpre a si própria.
Notas:
[1] Foi num livro que escrevi na sequência do 11 de setembro: Le Choc des barbaries: terrorismes et désordre mondial [2002], 3ª ed., Paris: Syllepse, 2017, p. 43. E continuava: "É apenas esta compaixão narcísica que permite explicar – para além da legítima compaixão por qualquer ser humano vítima da barbárie – a formidável, e absolutamente excecional, intensidade das emoções e das paixões que se apoderaram da 'opinião pública' e, sobretudo, dos fazedores de opinião, nos países ocidentais e nas metrópoles da economia globalizada, na sequência dos atentados de 11 de setembro.”
[2] A primeira análise do aumento do antissemitismo na Europa nestes termos foi formulada pelo jovem Abraham Léon (nascido Abram Wajnsztok) – um trotskista belga de origem judaica polaca – antes da sua morte em Auschwitz, em 1944, com 26 anos. Isto foi feito num livro redigido em francês, La Conception matérialiste de la question juive(link is external).
[3] O sionismo político moderno explorou originalmente o desejo dos judeus assimilados da Europa Central e Ocidental de pôr fim ao efeito prejudicial que a vaga migratória dos seus correligionários pobres da Europa Oriental estava a ter na sua própria condição. Isto está bem patente no manifesto sionista de Theodor Herzl, O Estado dos Judeus, como mostrei em "A Dualidade do Projeto Sionista(link is external)", na Palestina. Un peuple, une colonisation, Manière de Voir, n.º 157, fevereiro-março de 2018.
[4] Sobre Hans F. K. Günther, voir Alan E. Steinweis, Studying the Jew: Scholarly Antisemitism in Nazi Germany, Cambridge, MA: Harvard University Press, 2006, p. 25-41.
[5] Hans F. K. Günther, Rassenkunde Europas, 3e éd., Munich: J. F. Lehmanns Verlag, 1929, p. 100-104.
[6] Ibid, p. 105. A concordância entre o desejo antissemita de tornar a Alemanha judenrein e o vontade sionista de transferir todos os judeus para a Palestina levou a que as autoridades nazis colaborassem com os sionistas alemães para organizar a “transferência” dos judeus alemães para a Palestina (Acordo de Haavara, assinado em 25 de agosto de 1933). Esta colaboração durou até 1941, ou seja, até ao momento em que os nazis se voltaram para a “Solução Final”. A melhor e mais fiável fonte sobre esta questão é Francis R. Nicosia, Zionism and Anti-Semitism in Nazi Germany, Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
[7] Martin Buber, Die Jüdische Bewegung: Gesammelte Aufsätze und Ansprachen 1900-1915, Berlin: Jüdischer Verlag, 1916, p. 195.
[8] Kenneth L. Roberts, Why Europe Leaves Home, New York: The Bobbs-Merrill Company, 1922, p. 15.
[9] Ibid., p. 22.
[10] Ibid., p. 97.
[11] Ibid., pp. 117-18.
[12] Peter Novick, The Holocaust in American Life, Boston: Houghton Mifflin Company, 1999, p. 225.
[13] Mark Silk, «Notes on the Judeo-Christian Tradition in America», American Quarterly, vol. 36, n° 1, printemps 1984, p. 69-70. Em seguida, Silk descreve as consequências teológicas desta mudança de perspetiva no judaísmo americano, bem como no catolicismo e no protestantismo, e a diferença entre os dois ramos do cristianismo a este respeito.
[14] Karen Brodkin, How Jews Became White Folks and What That Says about Race in America, New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1998, p. 26.
[15] Neal Gabler, Barbra Streisand: Redefining Beauty, Femininity, and Power, New Haven, CT: Yale University Press, 2016, p. 190.
[16] Novick, The Holocaust in American Life, p. 209.
[17] Ibid., p. 116.
[18] Aimé Césaire, Discours sur le colonialisme [1950], Paris: Éditions Présence africaine, 1955, p. 77-78.
[19] Ver Gilbert Achcar, Les Arabes et la Shoah: la guerre israélo-arabe des récits, Arles: Sindbad Actes Sud, 2009.
[20] Frank Stern, The Whitewashing of the Yellow Badge: Antisemitism and Philosemitism in Postwar Germany, Oxford: Pergamon, 1992. Whitewashing é aqui traduzido por “lavagem” para distinguir este termo de Whitening, que significa “branqueamento” em sentido estrito - conceito utilizado neste artigo e no seu título.
[21] Daniel Marwecki, Germany and Israel: Whitewashing and Statebuilding, Londres: C. Hurst & Co., 2020.
[22] Susan Neiman, «Germany on Edge», New York Review of Books, 3 de novembro de 2023.
Este texto resulta de uma intervenção, feita a 11 de junho de 2022, na conferência "Hijacking Memory: The Holocaust and the New Right", organizada em Berlim pelo Fórum Einstein e pelo Centro de Investigação sobre Antissemitismo da Technische Universität Berlin.