Luci Cavallero e Verónica Gago
Via Vientosur
Tradução: Equipe Radar Internacional
Interessa-nos partir da afirmação da existência de uma força coletiva feminista que produziu deslocamentos, inovações, questionamentos profundos de hierarquias e vetores de politização, que estão sendo contestados com uma reação patriarcal que se expressa no governo de extrema-direita de Javier Milei.
Queremos propor que a virulência política que vemos hoje na Argentina responde, em particualr, a dois saldos do processo de organização feminista dos ultimos anos: a transversalidade das alianças políticas e a politização de zonas de reprodução social, hoje elementos chave para assegurar uma mudança de limite na superpexploração do trabalho e na privatização do ajuste para dentro dos contornos da vida familiar.
A vitória eleitoral de Javier Milei como reação a um ciclo de lutas
A reação colonial-patriarcal deste momento do capitalismo de guerra é global, mas tem características particulares para a América Latina e, mais ainda, no laboratório argentino. Em todo o continente contesta-se, em termos contrarrevolucionarios, um ciclo de mobilizações caracterizado por um protagonismo feminista, popular e de rua, que abarca desde a revolta e o processo constituinte no Chile, as paralisações na Colombia e no Equador, ate as massivas mobilizações e greves feministas na Argentina. Ha algum tempo sinalizamos, durante o governo de Mauricio Macri (2015-2019), uma contraofensiva que se colocava em caráter repressivo, financeiro e religioso: foi no momento que coincidiu o pico de mobilizações pelo direito ao aborto com o retorno do FMI ao pais. Milei é uma radicalização extrema e à direita do governo de Macri, que ganha, depois da ditadura militar (1976-1983), com um programa explicitamente de direita, de uma direita ja organizada como partido em superação do esquema do partido militar.
Hoje a reação inclui alguns setores dos progressismos e das esquerdas que estendem uma culpabilização sobre movimentos que propuseram uma radicalidade massiva no último ciclo de lutas. A culpabilização que, por sua vez, quer se passar como crítica ao progressismo, o coloca a salvo de fazer um balanço da sua própria decomposição.
Na Argentina, é impossível ler o governo de Milei em uma sequência curta: deve-se conectá-lo com a sequência de lutas regionais nos últimos anos, mas também em relação à crise de 2001. Milei encerra, à direita, aquele ciclo de crise caracterizado pelo rechaço às políticas de austeridade e de impunidade e, ao mesmo tempo, expressa a continuidade de uma crise de legitimidade do sistema político que não terminou nos anos posteriores e que se conecta, de modo não linear a nível global, com a saída reacionária da crise financeira de 2008.
A extrema-direita de Milei emerge assim como uma resposta a um neoliberalismo que, apesar de suas ruínas - para parafrasear Wendy Brown (2020) - relança uma agenda neoextrativista na nossa região para auxiliar o mercado global (via colonialismo verde, via ciclos de endividamento), particularmente ao redor da energia, dos minerais raros como o lítio e o agronegócio. Uma novidade é que o governo de Milei nao esta disposto a fazer concessoes diante do aumento da conflitividade social, evidenciando uma radicalização das elites economicas no seu projeto de avanço contra os direitos das classes trabalhadoras, dos povos indigenas e da radicalização feminista.
O voto em Milei como promessa de estabilidade frente a uma economia cotidiana atravessada pela dívida e pela inflação permanente
Afirmar que o regime de Milei tem elementos fascistas não é dizer que a maioria de seus eleitores sejam fascistas. De fato, grande parte do seu apoio pode ser explicado pela economia cotidiana. É um terreno que parece ser ignorado na sua inexorável materialidade e, como tal, na sua racionalidade política.
Ou seja, propomos uma leitura da extrema-direita na Argentina que ao mesmo tempo que dá conta de uma reação patriarcal, colonial e neoliberal sobre um ciclo de lutas, também expressa processos de longo prazo que foram lidos de uma forma eficaz pelas forças reacionárias. Nos referimos concretamente à proliferação da subjetividade política ligada ao empreendedorismo a partir da desestruturação do mercado de trabalho e da consolidação de um “neoliberalismo por baixo” (Gago, 2014). Por sua vez, a expansão do endividamento e da micro especulação na vida cotidiana para resolver a reprodução social consolidam essa trama que faz frente à precariedade e à realidade do “sobreemprego” atual (Cavallero; Gago, 2019).
A simultaneidade dessa dupla leitura evita cair em processos de culpabilização ou até mesmo de reducionismo. Acreditamos que a produção de teoria, longe de contribuir para um niilismo ou a uma justificação do que existe, deve encontrar os pontos a partir dos quais se pode afirmar uma força, sem evitar o exame da eficácia da própria prática política.
Este enfoque é fruto das lutas do movimento feminista do qual somos parte porque o colocamos como uma análise construida desde a pratica politica, fundamental para entender as violencias economicas que sustentam a austeridade como discurso de disciplinamento.
É recorrente vermos um desprezo pelas pessoas mais afetadas pelas dinâmicas econômicas de empobrecimento ao acreditar que elas não entendem isso, ou não o traduzirão eleitoralmente. É um desprezo que supõe, além disso, que há uma ideologia ou valores superiores que tiram a importância do que se sente no bolso.
O desprezo, sabemos bem, é um modo de consideração e confinamento do doméstico, do que se sucede no cotidiano. O doméstico é esse espaço que no discurso econômico fica apagado como lugar de produção de valor, mas também como âmbito central em que se experimentam concretamente os efeitos das desvalorizações. Onde se organiza uma economia de gestos que vão desde buscar preços incansavelmente diante de uma inflação disparada até pegar o transporte público que demora ou com a sensação que se pode ser vítima de um fato de insegurança. A ideia de que essas sensações podem não constituir uma dinâmica política ou que são reparadas no nível de evocações históricas em tempos passados e melhores, é de todo modo insuficiente.
O doméstico - que não se reduz à casa, porque transborda para o bairro, as redes as comunidades - é o lugar onde o dinheiro se transforma em dívida rapidamente, onde a moeda é fumaça, ou onde se sente o declínio arbitrário de um salário social complementar por ter feito uma compra em dólares. A sensação de injustiça que se vive entre esforço e dinheiro é chave. A casta (seja do tipo que for) é aquela que não deve passar por esse cálculo cotidiano.
Não podemos nos conter com rótulos fáceis e condenar o fascismo em abstrato ou apontar com um dedo um setor que expressa a crise da representação política de maneiras difusas e contraditórias. No lugar disso, devemos entender como Milei expressou, durante a campanha eleitoral, quem sente que o dinheiro vai embora como água ou que a dívida é a presença mais permanente nas casas e fantasia dinamitar o Banco Central. Uma fantasia radical.
Deve-se também compreender uma vontade de mudança radicalizada que encontra expressão em quem promete o que todos dizem sob todos os holofotes: o dólar - a moeda do império - é a única coisa estável. Em uma economia que tem bens e serviços fundamentais dolarizados (o preço da moradia por exemplo), a proposta da dolarização de Milei põe o negacionismo do outro lado (e faz com que o negacionismo do terrorismo estatal pareça menos importante). Encarrega-se de pôr palavras em um mundo de experiências cotidianas dos debaixo que oscilam entre o cálculo, a frustração e a especulação.
Esta proposta de levar ao máximo de radicalidade o governo financeiro de nossas vidas (a especulação com a qual devem lidar as pessoas que estão em situação de precariedade) combina-se com um discurso reacionário, misógino e patriarcal. A insegurança levada ao cotidiano lubrifica um discurso sobre a necessidade de se armar, de buscar segurança a todo custo.
Da pandemia à extrema-direita: limites da violência financeira
Estamos diante de uma mudança de limite das violências econômico-financeiras que combina sua intensificação e com a sua aceleração e que reconfigura as possibilidades de sobrevivência das maiorias.
A aceleração da violência econômica através do que temos chamado de ativismo financeiro encontra nas plataformas seu meio predileto. Desde a pandemia, as empresas chamadas FinTech (tecnologia financeira) se consolidaram e se expandiram como meios de pagamento, de especulação e, sobretudo, como fontes de endividamento.
Na domesticidade reorganizada durante a pandemia, a dívida evidenciou de modo paradoxal a combinação entre sua capacidade de resolução de emergências frente à queda dos rendimentos e o aumento do trabalho não remunerado necessário para sustentar a vida. As recentes medidas de ajuste estrutural lançadas pelo governo de Milei radicalizaram e estenderam esses processos (desregulamentação absoluta dos preços, tarifas de serviços, juros dos cartões de crédito etc), produzindo resultados inéditos em termos de velocidade do empobrecimento da população e difusão de ferramentas financeiras para acelerar o endividamento. De tal modo que, no caso da Argentina, os vínculos entre os efeitos da pandemia e a ascensão da extrema-direita são estreitos.
O lar, em um contexto de privatizações e desregulamentações neoliberais, destacou-se por uma crescente quantidade de dispositivos que são utilizados para transferir atividades dos âmbitos assalariados para o trabalho não remunerado, e se converteu em um espaço de permanente gestão tecnológica das finanças pessoais. Em primeiro lugar, entendemos que o telefone móvel e a infraestrutura de comunicação digital têm assumido um papel fundamental na gestão da reprodução social. É ali onde as plataformas digitais se afirmam tanto como infraestrutura para endividamento (o caso das carteiras virtuais que oferecem crédito de forma rápida) como para obter trabalhos intermitentes e precários (plataformas que oferecem serviços de transporte, de aluguel etc.) para pagar dívidas acumuladas e combiná-las com o trabalho de cuidados não remunerado.
A articulação do capitalismo financeiro com as plataformas virtuais permite organizar a cooperação social como força produtiva ao mesmo tempo em que - como sugere Josep Vogl (2023) - lança mão do ressentimento como afeto que comanda sua individualização.
Sendo versáteis na hora de resolver múltiplas tarefas de reprodução social em meio à precariedade, as plataformas financeiras tornaram-se atores fundamentais deste novo limite de extrativismo financeiro inaugurado pela pandemia, mas que se intensificou a partir da desregulamentação da economia.
Decomposição da institucionalidade política via aceleracionismo neoliberal fascista
Este sistema de governança se sustenta através de três vetores: a capacidade de destruição (demissões massivas, a eliminação de órgãos inteiros do Estado, a destruição dos vínculos sociais fomentados por grupos comunitários); a criação do caos (políticas de choque neoliberais e a imposição de novas políticas e normas, algumas delas inconstitucionais) e a implantação da crueldade (reter alimentos das pessoas mais pobres e vangloriar-se disso, festejar as demissões estatais).
A velocidade é estratégica nesta forma de governo porque cumpre distintos objetivos. Por um lado, é um balanço de experiências neoliberais anteriores, sob a ideia de fazer o mesmo, mas mais rápido. Por outro lado, contribui com a construção de uma radicalidade que antagoniza com a sensação de imobilidade dos governos anteriores. Por último, antagoniza de forma concreta com o tempo que implica a produção de alianças políticas e de sustentar instâncias de organização para tomar a rua.
A chamada calma financeira, conseguida nos últimos meses pelo governo e festejada internacionalmente, é uma forma de produção de governabilidade: um governo do tempo da conflitividade assumindo dívida, o que produz uma sensação de estabilidade na economia sustentada pelo incremento da recessão. Uma dupla pinça financeira sustenta a motosserra (o eletrodoméstico fetiche de Milei): endividamento das famílias e endividamento estatal; combinado com a velocidade do choque do empobrecimento e a canalização das energias para a sobrevivência, assim como a radicalização que quer condensar a crise da institucionalidade democrática.
Milei deriva seu poder dos seus vínculos com fundos de inversão (como BlackRock) e com poderosas corporações com interesses extrativistas (daí suas frequentes visitas ao Elon Musk). Esses vínculos profundos tornam-se evidentes ao mesmo tempo em que a sociedade argentina está sendo reconfigurada por novos extremos do capitalismo para um modelo - como já apontamos - extrativo e bélico.
Os obstáculos que encontramos a partir das lutas feministas
A guerra econômica contra a população põe em crise as condições de sobrevivência e as condições de reprodução das lutas. É importante voltar sobre uma sequência histórica que teve 2001 como contraponto do estado da situação atual.
Diferentemente daquela crise, não nos encontramos com uma crise de desemprego, mas sim com uma situação de pluriemprego e endividamento que disputa tempo e energia física e psíquica com a possibilidade de se organizar.
O esgotamento, a depressão, o estado de incerteza que se acelera a partir da aplicação de uma guerra contra a reprodução social, desafiam a capacidade de armar um corpo coletivo para sustentar as lutas e imaginar desobediências.
Os custos da vida foram privatizados em cada casa e sequestraram a possibilidade de ter tempo para lutar e imaginar em comum. Ao mesmo tempo, a aplicação de um ajuste sobre os rendimentos populares, que desde 2018, não param de cair, junto com a estabilização do endividamento como recurso permanente, fizeram com que o chamado à austeridade e ao sacrifício sejam constituídos com uma linguagem popular.
A dívida foi parar nas casas, organizando uma economia cotidiana em que palavras como sacrifício e expressões como não há dinheiro (utilizadas pelo presidente) parecem coincidir com o realismo prático das maiorias.
Em meio a uma luta permanente por recursos, o ressentimento é uma afetividade que toma preponderância. O ressentimento - se evocamos a definição de Adorno (2021) - veicula um deslocamento na atribuição de causas e culpas pela situação de padecimento. É um sentimento causado pela perda de poder em sociedades neoliberais com uma alta concentração de riqueza.
Na Argentina, a estratégia do governo de promover uma guerra entre quem tem algum direito para apontá-los como privilegiados afeta inclusive a possibilidade de estabelecer solidariedade entre as lutas. As lutas contra as demissões dos trabalhadores estatais ou contra a privatização de organismos públicos são observadas com indiferença - ou até mesmo hostilidade - por uma parte da sociedade que não se sente beneficiária desses direitos.
Na Argentina, o feminismo fez um trabalho de costura e aproximação entre distintas realidades de trabalho: as greves feministas têm sido momentos em que se conquistou unidade e transversalidade e, sobretudo, experiências comuns para perceber e dimensionar a heterogeneidade da exploração. Em relação a isso, a extrema-direita trabalha tentando quebrar confluências, segmentando em pequenas guerras quase pessoais as fronteiras dos padecimentos, as escalas de decadência.
A direcionalidade deste afeto é um desafio permanente na nossa prática política, que antagoniza de forma direta com a possibilidade de tramar e tecer alianças políticas entre uma composição cada vez mais heterogênea entre quem vive do nosso trabalho.
Queremos propor uma política da interseccionalidade - na sua genealogia na Améfrica Ladina, como propõe Mara Viveros Vigoya (2023) - como antídoto frente ao encapsulamento permanente dos conflitos entre os setores afetados.
Por último, outro grande desafio com o qual nos encontramos é a possibilidade de articular frente à caotização da vida cotidiana. Se a governabilidade da extrema-direita como força política é construída na produção de caos, próprio do aceleracionismo neoliberal fascista, a tarefa da articulação, da composição e da confluência das lutas se torna um permanente dilema entre emergências e focos de conflitos que se multiplicam.
Aposentadorias, educação pública, saúde mental e moradia: conflitos concretos de recomposição da trama política
A sequência temporal que começa com a assunção da extrema-direita está marcada pela proliferação de uma conflitividade em múltiplos âmbitos que vão desde os trabalhadores estatais, a economia popular, as universidades, as demissões no setor privado e as respostas frente aos ataques contra os transfeminismos.
Esta conflitividade é surpreendida não por algum tipo de negociação, mas sim, pelo contrário, pela negação de qualquer tipo de mediação. Isso se combina com uma pedagogia permanente da impotência que o governo propõe para desmoralizar quem se mobiliza.
Todavia, essa situação não impediu o aparecimento de conflitos nas atividades que tentam recompor a trama política e mostram uma oposição que disputa e recupera a radicalidade das práticas políticas que seguem assumindo a exigência de liberação. Lutas como as que protagonizam os e as aposentadas, as e os estudantes universitários, os feminismos e os setores mais combativos do sindicalismo mantém uma dinâmica política de não abandono da rua. Um espaço que, deve-se ressaltar, o governo não consegue conquistar.
O que fazer?
Isso é o que mais nos interessa, não nos sentimos cômodos em assumir o “realismo capitalista” (Fisher, 2023). Durante todo este ano, fizemos assembleias, apostamos em fortalecer as nossas redes, a entrelaçar os diferentes conflitos, enquanto sustentamos as instâncias de organização transversal.
Um ciclo de mobilizações feministas que em 2025 cumpre 10 anos - com a primeira mobilização massiva de Ni Una Menos em junho de 2005 - e desde onde soubemos traduzir o mal estar em organização, construir massividade e operar em interseccionalidade. Um processo que, naturalmente, teve limites e erros, mas que de nenhuma forma são aqueles que a reação (pela esquerda e pela direita) quer fazer passar como balanço público. Nessa chave nos parece fundamental sustentar algumas questões:
Primeiro. É necessário reafirmar-se na radicalidade contra a culpabilização que tenta eliminar a memória de radicalização do último ciclo de luta. Assim, pretende-se reduzir o longo e extenso ciclo de luta feminista (pelo menos o dos feminismos populares latino-americanos) a um plano meramente simbolico, justo onde houve transformações concretas para colocar em crise a modulação subjetiva, afetiva, material do neoliberalismo. As greves feministas, as lutas pelo direito ao aborto e contra a precarização do trabalho, as lutas por moradia, contra a divida externa e privada são confrontações materiais com zonas onde o neoliberalismo produz insegurança e onde a extrema-direita contrapõe com a intemperie do mercado.
Segundo. Ao mesmo tempo, nos parece indispensável narrar novamente as violências. Um dos saldos do processo de massificação do feminismo foi a repolitização das violências e da capacidade para dar conta das guerras travadas na reprodução social entrelaçando violências financeiras, institucionais, racistas e machistas. Hoje nos encontramos em uma passagem de limite que nos exige repensar não apenas a conceitualização das violências, como também os mecanismos de autodefesa, uma vez que se desdobra uma contraofensiva que disputa a radicalidade com nós.
Este é um processo paralelo à crise do pacto democratico-liberal - conseguido em países como o nosso como efeito de lutas antiditadura e de lutas radicais pelos direitos humanos e é um marco do qual a elite econômica se retirou, mas que nós permanecemos sustentando. De fato, é o que permite a insistência nas lutas anti repressivas. A pergunta é que práticas poderiam ser hoje de contra violência ou de autodefesa frente a esse nível de repressão e crueldade, uma vez que o uso da violência como estratégia de liberação não está entre as opções/repertórios de ação dos movimentos; está ainda em elaboração.
Terceiro. Insistimos em disputar a patir da reprodução social: trata-se de disputar a resolução da interdependência a partir de uma lógica antineoliberal e antifascista. Para isso, as lutas pela reprodução social são e seguirão sendo essenciais. Isso implica um programa político que dê soluções às maiorias (alimentação, moradia, saúde, educação etc), explorando formas de organização que se encarreguem dos pontos onde o neoliberalismo produziu legitimidade política por baixo.
Construir política a partir da reprodução social é estratégico, tanto como laboratório de outras formas de resolver a interdependência como de questionar o consumo e de pôr limites à violência da exploração na vida cotidiana. É aí onde está contida, ainda em um marco de guerra, a possibilidade de disputar o tempo para a produção de vida em comum. Dito de outro modo, não há formas de combater o esgotamento do trabalho superexplorado e precario sem desenvolver outras temporalidades na reprodução social, o que implica seguir desenvolvendo um sindicalismo feminista que orgainze a confrontação com a exploração laboral, financeira, afetiva e algoritmica.
Quarto. É necessário construir organização de uma forma multiescalar e capilar: a extrema-direita copiou esta metodologia. Sonia Correa (2024) propõe pensar essas forças reacionárias sob a figura da “hidra”, como um ecossistema complexo e mutante em que se movem forças religiosas, seculares, empresariais, intelectuais e políticas. É evidente que responde, replica e busca capturar tambem um modo multiescalar e internacionalista de organização feminista que não podemos abandonar. Isso implica identificar os pontos onde as extrema-direitas estão encontrando terrenos de batalha (redes sociais, universidades, escolas, lugares de trabalho, hospitais, economia de plataformas).
Aprofundar nossa política da capilarização implica um tecido de alianças e uma luta corpo a corpo em cada escola, em cada hospital, onde proliferam os discursos e práticas contra a ideologia de gênero. Hoje na Argentina essa batalha é cotidiana e central. A combinação de planos e escalas tende à dimensão estatal através das políticas públicas como pontos estratégicos que estão sendo atacados ou mudando para uma orientação conservadora ou familiarista.
Cinco. Disputar o futuro: a guerra cultural que a extrema-direita está travando tem um componente furioso de disputa sobre o futuro. Diversos autores caracterizam essas forças como um “aceleracionismo reacionário” que situam o passado no futuro ou, como aponta Judith Butler (2024), apelam a um passado mítico a ser restaurado, mas que na verdade nunca existiu. A recuperação de uma “família ideal” funciona de uma forma fantasmática (idem), ao mesmo tempo que explora e nivela a capacidade de especular sobre o futuro em uma dimensão eminentemente financeira. Nesse sentido, a disputa pela educação da juventude é eloquente. Necessitamos propor um futuro em comum, que não seja nem o da especulação financeira nem o da catástrofe.
A aparição de um grande movimento estudantil pela educação pública marca um ponto de inflexão nesse sentido, porque foi uma demonstração profundamente transversal, multisetorial e intergeracional de força, de dignidade e de orgulho. Também porque a juventude entrou em cena saindo por cima da distorção culpabilizadora que lhe querem impingir pelos triunfos eleitorais da extrema-direita. Essa mesma juventude que já foi também culpabilizada pela sua passividade pós-pandemia e que é hoje disputada pela exploração financeira (que através de sintomas como a dependência de jogos não fazem nada mais além de expressar essa disputa pelo mal estar). O acumulado sensivel, organizativo, de linguagem e de alianças feminista tambem esta em ação nessas lideranças juvenis, na sua forma de ocupação da rua, no seu desejo contagioso de não se deixar roubar o protesto e a festa.
Luci Cavallero, feminista, graduada em Sociologia e pesquisadora da Universidade de Buenos Aires. Seus trabalhos abordam o vínculo entre divida, capital ilegal e violencias. Junto a Veronica Gago acaba de publicar o livro Uma leitura feminista da divida.
Veronica Gago, filosofa, politologa, pesquisadora e ativista feminista argentina. Autora de A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular, entre outros textos. Seu trabalho articula o mundo da pesquisa, a academia e o ativismo a partir do feminismo.
Referencias
Adorno, Theodor W. (2021) Rasgos del nuevo radicalismo de derecha. Buenos Aires: Taurus.
Brown, Wendy (2020) Neoliberalismo en ruinas. Buenos Aires: Tinta Limón.
Butler, Judith (2024) ¿Quién le teme al género? Buenos Aires: Paidós.
Cavallero, Luci y Gago, Verónica (2019) Una lectura feminista de la deuda. ¡Vivas, libres y desendeudadas nos queremos! Buenos Aires: Tinta Limón / F. Rosa Luxemburgo.
(2021) La casa como laboratorio: vivienda, finanzas y trabajo esencial. Buenos Aires: Tinta Limón / CLACSO.
Corrêa, Sonia (2024) “En seis meses, Milei resumió treinta años”, disponible en https://www.eldiarioar.com/sociedad/sonia-correa-activista-e-investigadora-feminista-seis-meses-milei-resumio-treinta-anos_1_11765936.html
Gago, Verónica (2014) La razón neoliberal. Economías barrocas y pragmática popular. Buenos Aires: Tinta Limón.
Viveros Vigoya, Mara (2023) Interseccionalidad. Giro decolonial y comunitario. Buenos Aires: CLACSO.
Vogl, Joseph (2023) Capital y Resentimiento. Buenos Aires: Hidalgo Editores.