POR MARTÍN MOSQUERA
TRADUÇÃO
PEDRO SILVA
Via Jacobina
À medida que a extrema direita avança em sua ofensiva autoritária, grande parte da esquerda permanece presa na defesa inerte de uma democracia liberal em crise. Mas qual o papel dessa democracia em um projeto socialista?
Jean-Jacques Rousseau, considerado um dos pais da democracia moderna e um expoente clássico da democracia direta, declarou: “A verdadeira democracia nunca existiu, nem jamais existirá”, pois “é inconcebível que o povo permaneça incessantemente reunido para se ocupar dos negócios públicos”. E acrescentou: “Se houvesse um povo formado por deuses, ele se governaria democraticamente. Um governo tão perfeito não é adequado aos homens”.
Para Rousseau, toda democracia é, em algum grau, representativa, mas isso implica, segundo ele, que ela não é plenamente democrática porque “a soberania não pode ser representada”. Essa crítica, que contrasta democracia e representação, continua a ressoar significativamente nos debates contemporâneos (Hardt e Negri, Kurz, Agamben, Endnotes). Para além da fantasia de uma democracia direta reservada aos deuses, o verdadeiro problema que enfrentamos é outro: se é possível que um eventual relançamento dos processos de transição para o socialismo gere formas institucionais capazes de articular a socialização de setores estratégicos da economia com uma expansão substantiva da democracia em todas as esferas da vida social.
Esta questão assume particular relevância à luz das experiências do século XX e do colapso do “socialismo de Estado”, que deixou um legado de desencanto e confusão quanto à relação entre socialismo e democracia. Mais especificamente, é necessário repensar como os marxistas devem entender e se relacionar com esse instrumento histórico que se desenvolveu gradualmente ao longo dos últimos dois séculos: o Estado democrático representativo, com seus pilares fundamentais como o sufrágio universal, o parlamento, o multipartidarismo, a separação de poderes e o Estado de Direito.
Democracia direta vs. democracia representativa?
A esquerda marxista — com algumas exceções notáveis, porém raras — tem historicamente oscilado entre uma rejeição principista das instituições liberais e uma defesa puramente instrumental delas, baseada na ideia de uma democracia superior, concebida como estruturalmente incompatível com a “democracia burguesa”. A concepção de “democracia operária” como alternativa principista à democracia liberal tem sido articulada em torno de vários eixos que, embora frequentemente apresentados como um todo coerente, não são idênticos e, em alguns casos, são até incompatíveis:
1. Democracia direta, que visa superar a divisão entre massas e política inerente aos mecanismos representativos;
2. representação setorial e piramidal em organismos como sovietes ou conselhos, cujos níveis são articulados por meio do mandato imperativo;
3. e, mais genericamente, a ideia programática e enigmática da extinção do Estado numa sociedade sem classes, onde as relações sociais se harmonizam sem necessidade de uma superestrutura política.
Às vezes, essa última perspectiva convergiu com formas de funcionalismo tecnocrático, como na famosa formulação de Engels — tirada de Saint-Simon — que concebeu o comunismo como uma sociedade na qual o poder público deixaria de se preocupar com “a dominação dos homens” e se limitaria à “administração das coisas e à direção dos processos produtivos”.
O conceito de “democracia direta” tem estado no cerne dos debates da esquerda radical, especialmente desde o final da década de 1960. No entanto, é significativo que Marx, Lênin e Trotsky não utilizem essa expressão, e não por acaso. Marx descreveu a Comuna como uma “nova forma de representação”. Lênin argumentou que “sem instituições representativas, não podemos conceber a democracia, nem mesmo a democracia proletária; sem o parlamentarismo, podemos e devemos concebê-la”. Trotsky definiu o sistema soviético como um sistema representativo estruturado em torno de “grupos de classe e de produção”.
Em A Revolução Traída, Trotsky aprofunda essa distinção: o que ele considera burguês não é a representação em si, mas sua forma parlamentar baseada no sufrágio universal, cujo fundamento reside na atomização individual característica da sociedade civil burguesa, independente das condições materiais vivenciadas pelos indivíduos. A representação soviética, por ser baseada em coletividades sociais — classes e grupos produtivos — rompe com a abstração da cidadania burguesa e com sua lógica atomizadora inerente.
Romper com o caráter burguês da representação exige, nessa perspectiva, reconfigurar o sistema representativo com base nas realidades materiais que estruturam a vida social. Em vez de uma estrutura que se eleva acima da sociedade, a mediação política no formato soviético assume um caráter “transparente”, refletindo diretamente os interesses e as dinâmicas da classe trabalhadora. Assim, não é mais possível falar em “Estado separado”, como no modelo burguês, uma vez que a representação soviética consegue articular uma democracia profundamente enraizada nas condições materiais dos grupos sociais que representa.
Democracia soviética
O modelo de conselhos ou soviético não se refere à democracia de massas direta, mas postula formas “orgânicas” de representação destinadas a superar as limitações do “parlamentarismo burguês”, integrando as realidades concretas dos setores sociais e produtivos ao poder político. Esse regime assumiria uma forma setorial e piramidal, na qual os setores sociais e produtivos seriam representados em vez de indivíduos, e na qual os diferentes níveis da pirâmide seriam articulados por meio do mandato imperativo.
No entanto, essa abordagem enfrenta dois problemas fundamentais. Primeiro, o conceito de mandato imperativo simplesmente não pode ser entendido literalmente. Como Norberto Bobbio apontou: “Aqueles que agem com base em instruções rígidas são os porta-vozes, os núncios, os embaixadores nas relações internacionais; mas a rigidez das instruções não é de forma alguma uma característica da atuação de órgãos coletivos”. Em outras palavras, em um sistema político baseado na representação setorial e piramidal, os órgãos representativos também precisam de autonomia para deliberar e tomar decisões. Em sociedades de massa, a delegação política não é apenas inevitável, mas também uma condição necessária para a viabilidade da democracia.
Em segundo lugar, um regime baseado na representação setorial dificilmente poderia dar origem a uma genuína vontade geral. Na melhor das hipóteses, resultaria em uma estrutura corporativista que implicaria um retrocesso em relação à democracia política baseada no sufrágio universal. Como alerta Michael Löwy, em um sistema de conselhos piramidais, a distância entre a base e o topo é, por definição, muito ampla e é mediada por múltiplas camadas intermediárias, com poucas possibilidades de controle de baixo, ainda menos do que na representação parlamentar. Na pior das hipóteses, esse tipo de estrutura institucional se tornaria o terreno fértil para a centralização burocrática, necessária para compensar a incapacidade dos órgãos descentralizados de articular uma vontade coletiva. Como alertou Daniel Bensaïd, essa concepção poderia degenerar em
[uma] concepção corporativista de democracia socialista que justaporia, sem síntese, os interesses particulares da localidade, das empresas ou dos trabalhadores, sem alcançar um interesse geral. Tornar-se-ia então inevitável que um bonapartismo burocrático confinasse os poderes descentralizados e a democracia econômica local à sua rede, incapaz de propor um projeto hegemônico para a sociedade como um todo.
Por trás dessas concepções de democracia, torna-se visível uma fragilidade estrutural presente em amplos setores do marxismo: a tendência a imaginar a “democracia operária” como um regime de transparência social, onde a relação entre classe e representação política é assumida como equivalente ou praticamente intercambiável. Essa abordagem teve consequências políticas muito concretas. Os bolcheviques, por exemplo, não sabiam como agir quando, poucos meses após a tomada do poder, se encontraram em minoria nos sovietes. Segundo Isaac Deutscher, tal cenário nem sequer havia sido previsto. Reagiram proclamando-se representantes genuínos dos interesses históricos do proletariado, acima de procedimentos democráticos contingentes. As medidas excepcionais, inicialmente justificadas pela emergência, acabaram se cristalizando – pelo menos temporariamente – em uma racionalização teórica do autoritarismo, na qual Trotsky desempenhou um papel fundamental entre 1922 e 1923. Perto do fim de sua vida, no que Moshe Lewin chamou de sua “última luta”, Lênin pareceu adquirir uma consciência mais aguçada do problema burocrático que começava a se instalar no novo Estado.
Nesse sentido — e é importante poder afirmar isso sem ser considerado herético — a crítica de Kautsky a Lênin em 1918 está, em essência, correta. Como ele apontou em sua polêmica com os bolcheviques no poder, uma classe social não governa diretamente: o poder é sempre mediado por partidos, organizações e representações políticas. Confundir classe com sua expressão partidária — ou assumir uma sinonímia entre as duas — abre um caminho bastante direto para formas autoritárias de governo.
A existência de um poder político “separado” é um resultado inevitável da ruptura que a modernidade introduz nas formas pré-capitalistas de soberania. Essa transformação dá origem a um poder público impessoal, que nada mais é do que a base material da democracia política moderna. Nenhuma classe social governa diretamente, sem mediação institucional. Portanto, os procedimentos democráticos e o consentimento social não são meros acessórios, mas elementos fundamentais da emancipação social, como a experiência do século XX claramente ilustra.
O fato de esse nível sem precedentes de vida social – um poder público impessoal e “separado” – ter surgido sob o capitalismo não implica que deva necessariamente desaparecer com ele. Assim como as forças produtivas capitalistas podem ser reapropriadas em uma estrutura pós-capitalista, o poder público democrático pode ser transformado e expandido para responder às necessidades de uma sociedade socialista. Reconhecer isso implica compreender que a democracia socialista não deve se opor às conquistas políticas da modernidade, mas sim reconstruí-las, discernindo entre o que deve ser preservado, o que precisa ser transformado e o que deve ser descartado.
Cidadania e democracia socialista
A conexão entre democracia, cidadania e representação exige uma reformulação crítica que também implica uma ruptura com certos pressupostos da tradição soviética. Definir a cidadania política como mera forma de atomização burguesa tem sido um tema recorrente em diversas leituras marxistas do Estado moderno. No entanto, essa perspectiva tende a subestimar o complexo processo de individuação característico da modernidade, negligenciando, assim, o potencial emancipatório contido nas figuras do indivíduo e do cidadão. A emergência do indivíduo moderno não se opõe à constituição de sujeitos sociais e políticos; pelo contrário, a possibilita.
Somente um olhar nostálgico para as formas comunitárias pré-capitalistas poderia identificar individualização e cidadania com desafeto coletivo. Nas origens do socialismo moderno, convergiram dois fenômenos marcados por uma sensibilidade reativa às mudanças trazidas pelo avanço avassalador da grande indústria: de um lado, o clima intelectual romântico da alta cultura, especialmente na Alemanha; de outro, a experiência concreta dos trabalhadores das artes e ofícios, que viam a industrialização como a destruição de seu controle sobre o processo produtivo. Esses trabalhadores eram espontaneamente “românticos”, e essa sensibilidade permeou os primeiros pensadores socialistas, incluindo o jovem Marx.
No entanto, as comunidades pré-capitalistas não eram verdadeiramente sujeitos coletivos no sentido político moderno, mas sim estruturas hierárquicas organizadas em torno de estamentos e corporações. Essas instituições respondiam a uma lógica conservadora e visavam perpetuar uma ordem social que subordinava o indivíduo a estruturas percebidas como imutáveis. A emancipação do indivíduo dessas formas comunitárias abriu caminho para a adesão livre e consciente a coletivos políticos. Portanto, a modernidade é simultaneamente a era do indivíduo e a era dos grandes movimentos de massa.
É revelador que o surgimento de um poder público não patrimonializado – isto é, um poder que “não se constitui como um aparato privado da classe dominante”, para usar o termo de Pachukanis – coincida com o surgimento do indivíduo moderno dentro do mesmo processo histórico. Vários autores caracterizaram esse fenômeno como a “revolução democrática” moderna (Lefort, Laclau). Marx captura essa transformação histórica quando escreve em “Sobre a Questão Judaica”: “A constituição do Estado político e a dissolução da sociedade burguesa nos indivíduos independentes – cuja relação é baseada no direito, assim como a relação do homem que vivia no estamento e na guilda era baseada no privilégio – se efetiva em um só e mesmo ato.”
A identificação entre o surgimento do indivíduo e a troca de mercadorias expressa uma característica central da sociedade burguesa: sua fundação na figura do trabalhador “livre” e juridicamente igual. No entanto, a individuação moderna não se limita ao “indivíduo mercadoria” ou ao “indivíduo possessivo” descritos por C.B. Macpherson. O capitalismo gera uma forma de exploração historicamente inédita: exige ser mediada por uma relação de igualdade, que tem múltiplas implicações. Não é surpreendente que Marx tenha dito que o valor sob o capitalismo havia transformado a igualdade em uma “ilusão popular”.
O Marx maduro interpreta a dissolução da comunidade clássica e a emergência do indivíduo moderno como um processo contraditoriamente progressista, uma marca registrada dos avanços civilizatórios associados ao capitalismo. Por um lado, esse fenômeno gera um espaço social sem precedentes de liberdade e autonomia, tanto pessoal quanto coletiva; por outro, opera como o ambiente que integra o “trabalhador livre” à dinâmica da socialização assalariada e da exploração capitalista.
A crítica de Marx não visa eliminar a individualidade em favor de uma comunidade transcendente, mas sim questionar como o capitalismo trai essa emancipação parcial do indivíduo. Nesse sentido, ele aponta que “o desenvolvimento superior da individualidade só é alcançado à custa de um processo histórico no qual os indivíduos são sacrificados”. De fato, Marx considerava a “emancipação política”, isto é, o surgimento da cidadania moderna, “um grande progresso”. A característica distintiva do pensamento de Marx, que o diferenciava dos socialismos utópicos de sua época, era a sua postulação da superação do capitalismo partindo das transformações históricas por ele geradas, em vez de se opor a elas.
É verdade que as classes dominantes buscam atomizar a classe trabalhadora, instrumentalizando tanto a “ficção da cidadania” quanto a figura do indivíduo-mercadoria. Os efeitos ideológicos da democracia liberal sob o capitalismo são profundos. Perry Anderson apontou que a democracia política desempenha um papel fundamental na invisibilização da classe dominante, tornando-se “o principal ferrolho ideológico do capitalismo ocidental”. No entanto, não há razão para concluir, com base em tal instrumentalização, que a individuação e a cidadania política sejam processos e instituições intrinsecamente burguesas, como postula uma tradição marxista disseminada que se estende de Lênin a Poulantzas.
O capitalismo instrumentaliza todas as tecnologias sociais e institucionais à sua disposição, mas isso não determina definitivamente seu alcance nem sua adaptabilidade histórica. Essas formas sociais e políticas, embora desenvolvidas no contexto capitalista, não estão exclusivamente vinculadas à dominação de classe. De fato, nascidas sob condições capitalistas, frequentemente representam conquistas históricas que podem ser redefinidas e reapropriadas em diferentes contextos sociais. A natureza dessas instituições políticas depende do sistema geral de relações sociais em que estão inseridas e dos projetos históricos que nelas se desenvolvem.
Socialismo e democracia
O ponto de partida para uma compreensão realista da democracia no socialismo deve ser o abandono de quaisquer ilusões sobre uma simplificação tecnocrática da vida social. As tarefas de gestão não podem ser reduzidas ao “controle dos processos produtivos”, pois estes sempre envolvem decisões políticas. As sociedades contemporâneas não se tornam mais simples com o tempo; pelo contrário, a tendência até agora tem sido de maior complexidade em suas estruturas e dinâmicas. Além disso, em uma sociedade pós-revolucionária, o Estado tende a assumir um número ainda maior de funções, aprofundando a tendência histórica dos Estados modernos de expandir continuamente seu escopo de intervenção. Essa observação exige que reflitamos seriamente sobre as maneiras pelas quais o poder político pode ser efetivamente democratizado, em vez de especular sobre seu desaparecimento em uma utopia de uma sociedade sem Estado ou mediação institucional.
As instituições da democracia representativa nas sociedades capitalistas não estão intrinsecamente ligadas a uma classe social específica. Não podem ser entendidas como uma consequência lógica do desenvolvimento do capital — como sugere a escola alemã de derivação do Estado — nem como o regime político ideal que a burguesia teria estabelecido unilateralmente se tivesse sido capaz de construir o Estado “de cima para baixo”, como apontou Poulantzas. Pelo contrário, na maioria dos casos, são conquistas arrancadas das classes dominantes por meio de lutas populares. A disseminação do capitalismo e a separação entre o político e o econômico que o caracteriza constituem condições lógicas e materiais que tornam a democracia liberal possível; mas essa mesma separação é compatível com uma ampla gama de regimes políticos: de monarquias absolutas ou constitucionais a regimes censitários — hegemônicos no século XIX —, passando por ditaduras militares e outras formas autoritárias. O fato de a democracia liberal ter emergido como a forma “normal” de governo sob o capitalismo não responde a uma necessidade estrutural do sistema, mas é, sobretudo, o resultado das relações de poder entre classes e das lutas que as moldaram historicamente.
Assim como a rede ferroviária ou o sistema computacional, o Estado democrático representativo é uma instituição que pode sobreviver ao contexto capitalista em que se originou e cujo conteúdo e natureza dependem das relações sociais e políticas em que está inserido. Um paralelo útil pode ser encontrado no debate epistemológico sobre validade e factualidade: como poderia argumentar um defensor do objetivismo científico, embora a gênese empírica do conhecimento científico esteja enraizada em contextos históricos específicos, isso não afeta sua validade cognitiva. Slavoj Žižek o descreve da seguinte forma:
Embora seja provavelmente verdade que a física galileana não poderia ter surgido fora do desenvolvimento da economia de mercado capitalista e da perspectiva de dominação tecnológica sobre a natureza, esse fato não invalida a verdade objetiva e científica das descobertas de Galileu, que permanecem relevantes independentemente de suas origens contingentes.
Essa abordagem se opõe radicalmente às concepções que interpretam a sociedade capitalista como um sistema funcionalmente integrado, no qual todos os seus elementos — Estado e capital, forças produtivas e relações de produção, exploração de classe e outras formas de opressão — operam como partes de uma unidade indivisível. Essas perspectivas, frequentemente mascaradas por uma sofisticação teórica complexa, não conseguem responder a questões simples, como se o sistema de esgoto urbano ou a matemática moderna são realmente produtos irrecuperáveis do capitalismo.
Em seu período de maturidade, Marx adotou a lógica oposta: o capitalismo não constitui uma unidade orgânica ou funcional, mas sim mobiliza uma base material que opera como condição histórica para a possibilidade de um projeto social alternativo. Nessa perspectiva, em alguns casos, as estruturas e os avanços materiais e institucionais desenvolvidos sob o capitalismo podem ser reapropriados para fins emancipatórios, despojando-os da dinâmica de exploração em que originalmente emergiram.
A reavaliação das instituições democráticas representativas não implica, numa perspectiva socialista, aceitar a democracia liberal como horizonte último para a democratização do poder. Embora a constituição da esfera política como esfera pública impessoal seja uma condição necessária para a democracia moderna, no quadro do capitalismo essa separação traduz-se numa democracia exclusivamente política, confinada aos procedimentos eleitorais e aos direitos formais, deixando intacta a lógica autorreguladora do mercado. A separação nítida entre o político e o econômico neutraliza a possibilidade de submeter as relações sociais fundamentais ao escrutínio democrático. Contudo, não se trata de rejeitar a democracia política, mas de aprofundá-la: estendê-la para além dos limites impostos pelo capital, para as esferas produtiva e material da vida social.
Portanto, a conexão da esquerda com as instituições liberal-democráticas não deve se limitar a uma defesa reativa contra o autoritarismo ou ser meramente instrumental. Ao contrário, essas instituições podem — e devem — atuar como pontos de apoio estratégicos para a expansão e radicalização dos princípios de liberdade e igualdade inerentes à modernidade, projetando-os para além da esfera política formal e estendendo-os às relações produtivas que a ordem capitalista mantém fora do processo decisório democrático.
Crise da democracia e ascensão da extrema direita
Como essa reflexão se relaciona com a situação atual? O crescente descontentamento com a democracia abriu caminho para o surgimento de tendências autoritárias, enquanto uma defesa meramente tática da democracia “real” se mostra insuficiente quando ela se apresenta como uma casca oca, intimamente ligada às políticas de austeridade e perda de direitos acumuladas nas últimas décadas.
A resposta das elites liberais é previsível e falha: um apelo abstrato para “defender a democracia”, sem reconhecer que foram suas próprias políticas que esvaziaram essas mesmas instituições de conteúdo. Sua estratégia, o “cerco democrático” (frentes republicanas, coalizões anti-ultra, etc.), é insuficiente porque, para muitos, defender a democracia liberal soa muito semelhante a defender a austeridade, a precariedade e a estagnação para as quais essa democracia era o envelope político.
O que fazer então? Devemos descartar qualquer defesa das instituições existentes como uma causa perdida ou, pior, como algo a serviço da extrema direita? Um setor da esquerda parece inclinar-se para essa conclusão, apostando em uma luta exclusivamente no terreno econômico e social. Outros até flertam com uma versão da tática “classe contra classe” em chave institucional: se ninguém mais acredita na democracia liberal, a alternativa não é defendê-la, mas opor-se a ela com uma democracia radical, direta e conselhista contra o autoritarismo da extrema direita. Por outro lado, alguns setores do progressismo optaram por uma solução mais prática: se a direita tem seu “homem forte”, o progressismo também pode ter o seu na forma de populismo de esquerda.
Vista de perto, a situação é mais ambígua do que parece. Por um lado, cresce o descontentamento democrático, alimentado pela identificação do regime político com políticas de austeridade e cerceamento de direitos. Mas mesmo a extrema direita hoje evita um confronto direto com a democracia. Prefere apresentar-se como a voz autêntica do “povo” contra as elites, apropriando-se da linguagem da democracia e da soberania popular. Nisso, o presente difere claramente da década de 1930: a extrema direita atual não busca necessariamente desmantelar as instituições liberais, mas sim esvaziá-las por dentro, articulando um projeto autoritário compatível com a competição eleitoral — às vezes manipulado, mas nem sempre e nem totalmente. Daí a relevância de noções como “autoritarismo competitivo” ou “regimes híbridos”.
Embora enfraquecidas, as instituições democráticas exibem uma surpreendente capacidade de resiliência, um sinal de raízes sociais mais profundas do que frequentemente se supõe. Abandonar esse terreno seria, portanto, um erro estratégico: significaria cedê-lo inteiramente às elites liberais ou, pior ainda, à própria extrema direita. Como aponta Enzo Traverso, diferentemente de outros períodos históricos — o pós-guerra europeu, a recuperação democrática após ditaduras na América Latina — a democracia não é mais percebida da mesma forma hoje, como uma conquista histórica e popular digna de ser defendida. No pós-guerra, ela foi associada tanto ao antifascismo quanto a um constitucionalismo social resultante da influência de partidos comunistas na Europa Ocidental, especialmente em países como Itália e França. No entanto, essas associações se tornaram tênues com o tempo. Ao mesmo tempo, na década de 1990, consolidou-se um novo amálgama ideológico, unindo democracia e neoliberalismo, uma combinação que dominou por duas décadas e que, hoje, em sua crise, alimenta a ascensão da extrema direita.
Assim, não basta hoje apelar à memória antifascista ou antiditatorial: esse legado é muito distante ou diz pouco às novas gerações. Tampouco se trata simplesmente de defender o atual arcabouço institucional em seu sentido neoliberal, pois é justamente essa articulação — democracia formal e neoliberalismo — que a extrema direita consegue desafiar por meio da combinação da rejeição às liberdades democráticas e de uma crítica regressiva à ordem econômica vigente. A única estratégia viável é vincular a defesa das conquistas democráticas a uma agenda de transformação econômica e social. O apreço popular ainda existente pelas liberdades políticas pode ser uma fonte de força, desde que articulado à luta por direitos sociais que décadas de neoliberalismo degradaram.
A deriva autoritária do capitalismo atual abre uma possibilidade histórica que havia sido fechada por décadas. Essa possibilidade foi bloqueada, por um lado, pelo autoritarismo do chamado “campo socialista”, que associava o socialismo a formas opressivas de poder; por outro, pela predominância de um capitalismo legitimado por instituições democráticas formais. Nesse novo contexto, reaparece a possibilidade de reconstruir uma articulação hegemônica que esteve na origem do socialismo moderno: a unidade entre transformação social e liberdades democráticas, presente tanto na tradição socialdemocrata do século XIX quanto no constitucionalismo social forjado no calor das lutas antifascistas do pós-guerra.
Essa articulação — historicamente frustrada ou desviada — continua a apontar para a possibilidade de um bloco histórico latente, uma verdadeira alternativa estratégica ao bloco autoritário em ascensão. Em meio a uma situação marcada por ofensivas reacionárias e pela desintegração da ordem liberal, talvez estejam se formando as condições para restabelecer o vínculo original entre socialismo e democracia.
é graduado em filosofia, professor da Universidade de Buenos Aires, membro do conselho editorial da Revista Intersecciones e militante do Poder Popular.