O triplo lesbocídio da Argentina mostra o impacto dos discursos de ódio

POR ANA DELICADO PALACIOS

O crime ocorrido no dia 5 de maio foi invisibilizado pelos órgãos de comunicação social e abafado como crime de ódio pelo governo de Milei. Neste dia, assembleias por todo o país mobilizaram-se para que não seja esquecido.

Na noite de domingo, 5 de maio, Justo Fernando Barrientos, inquilino de uma pensão no bairro de Barracas, no sul de Buenos Aires, abriu a porta do quarto ao lado do seu, onde dormiam quatro mulheres, e atirou-lhes um explosivo caseiro. “Quando elas saíram do quarto em chamas, ele bateu-lhes e empurrou-as de volta para o fogo”, disse uma das testemunhas à Agencia Presentes.

Pamela Cobas, uma mãe de 52 anos, morreu horas mais tarde devido à gravidade do seu estado. A sua companheira Mercedes Roxana Figueroa, da mesma idade, foi hospitalizada com 90 por cento do corpo queimado e sobreviveu mais dois dias. Após uma semana de agonia, Andrea Amarante também morreu no domingo 12, com 75% do corpo queimado.

Apenas Sofia Castro Riglos, de 49 anos, ainda hospitalizada com ferimentos na face, continua viva, tendo prestado depoimento na quarta-feira perante o juiz de instrução do homicídio qualificado das três mulheres, Edmundo Rabbione, magistrado sub-rogado do Tribunal Nacional Criminal e Correcional n.º 14.

Barrientos, de 67 anos, que foi encontrado pela polícia numa das casas de banho da pensão com uma serra com a qual se tinha auto-ferido, usou insultos como “engendros” [aberrações], “tortas” [fufas] e “gorda suja” (mulher gorda e suja) contra as vítimas.

Tinha havido muitas discussões entre o femicida e as mulheres, especialmente com Pamela e Mercedes, que viviam na pensão há anos e tinham acolhido temporariamente as suas amigas.

“Ele já as tinha ameaçado uma vez. Foi no Natal passado", recordou Diego Hernán Britez, um vendedor ambulante que também estava hospedado na pousada, numa entrevista a Presentes, um meio de comunicação especializado em questões de género e diversidade sexual. “Disse que as ia matar à duas e vejam o que aconteceu agora”.

O caso de Andrea é ainda mais chocante se tivermos em conta que ela era uma sobrevivente do massacre de Cromañón, uma tragédia em que 194 pessoas morreram após um incêndio que deflagrou a 30 de dezembro de 2004 numa discoteca em Buenos Aires durante um espetáculo de rock.

A mulher nunca foi incluída na lista de vítimas criada em 2005 pelo governo da cidade de Buenos Aires, nem foi reconhecida no programa de assistência integral às vítimas da tragédia, criado dois anos mais tarde. Ficou sem casa até ser acolhida pelas suas companheiras.

 

O governo de Milei cala-se sobre o lesbocídio

Com todos estes antecedentes, o caso passou despercebido nos meios de comunicação social locais, tendo sido denunciado por várias organizações LGTBI+. Foi necessária a morte de Andrea para que o triplo assassinato de lésbicas começasse a causar um certo impacto nos programas informativos.

O sigilo do governo presidido por Javier Milei sobre o triplo crime não foi uma surpresa. As suas iniciativas falam por si: proibiu a linguagem inclusiva na administração pública, dissolveu o Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (Inadi), eliminou o Ministério da Mulher, do Género e da Diversidade criado pelo seu antecessor, Alberto Fernández (2019-2023), e desmantelou as políticas públicas promovidas por este organismo.

Esta semana, não teve outra alternativa senão referir-se ao ataque contra as quatro mulheres. “Não gosto de o definir como um ataque a um determinado coletivo”, disse o porta-voz do Presidente, Manuel Adorni, quando questionado por um jornalista nesta segunda-feira. “Penso que é muito injusto falar apenas deste episódio, quando a violência é algo muito mais abrangente do que simplesmente uma questão contra um determinado coletivo”.

Não satisfeito com as suas declarações, o alto funcionário veio horas mais tarde dar lições de gramática a uma deputada de esquerda, Romina del Plá, que tinha questionado a sua tentativa de tornar invisível o crime de ódio de Barracas, ao assinalar que a palavra “lesbicídio” não estava registada no dicionário da Real Academia Espanhola, apesar da academia da língua ter vindo mais tarde a reconhecer a validade deste neologismo.

 

Discurso de ódio da extrema-direita argentina contra a comunidade LGBTQI

“O que está a acontecer é uma autorização do discurso de ódio por parte da mais alta magistratura e do seu grupo mais íntimo de colaboradores e colaboradoras, nesta relação altamente articulada que a extrema-direita tem à escala global”, indica a investigadora feminista, socióloga e historiadora Dora Barrancos, em entrevista ao El Salto.

A novidade, desde o início do século, para a ultradireita “é que fizeram da luta contra a ideologia de género, a homofobia, a lesbofobia e a transfobia uma questão programática”, afirma a antiga conselheira ad honorem para as questões de género do antigo Presidente Alberto Fernández.

“Antes, estes espíritos reacionários atuavam individualmente. Eram vozes atordoadas, meio abafadas, e não tinham hipótese de encontrar um canal, dada a enorme transformação que a nossa sociedade tinha sofrido a nível cultural, social e jurídico. Desde que este magma se tornou poder, há uma autorização para as expressões de ódio mais brutais contra as pessoas de dissidência sexual e contra as feministas”, explica Barrancos.

É uma contradição flagrante: o mesmo Estado que Milei considera uma organização criminosa “é usado para que proliferem vozes antagónicas aos direitos humanos fundamentais”, afirma a investigadora do Conselho Nacional de Investigação Científica e Técnica (Conicet), de cujo conselho de administração foi membro entre 2010 e 2019.

Enquanto Barrientos permanece detido pelo crime das três mulheres, o juiz deve determinar, uma vez excluída a sua inimputabilidade, se deve aplicar a circunstância agravante contemplada no art. 80 do Código Penal, pelo qual os crimes seriam considerados agravados pelo ódio de género ou orientação sexual, identidade de género ou a sua expressão.

“A gravidade é que, se não tiverem um canal de autorização e legitimação, este tipo de personalidades, tão macabras e tão estereotipadamente patriarcais nas suas convicções e ações violentas, permanecem à sombra, embora isso não signifique que não possam agir”, diz Barrancos sobre o feminicídio.

Em 2023, foram contabilizados 133 crimes de ódio na Argentina em que a orientação sexual ou a expressão de género foram usadas como pretexto para os ataques. Esse número é maior do que nos anos anteriores, de acordo com o Observatório Nacional de Crimes de Ódio LGBT+, gerido pelas Defensorias Públicas da cidade de Buenos Aires e da Defensoria Pública Nacional em conjunto com a Federação Argentina LGBT.

As estatísticas de 2024 incluirão o ataque, em março, a Sabrina Bölke, uma ativista do grupo de direitos humanos HIJOS (acrónimo de Filhos e Filhas pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio). A jovem foi espancada, torturada e maltratada na sua própria casa por dois indivíduos que a ameaçaram de morte e escreveram na parede do seu quarto o acrónimo VLLC (Viva la libertad, carajo), o slogan com que Milei encerra os seus discursos.

O triplo crime em Barracas foi precedido de uma entrevista radiofónica questionada com o biógrafo e amigo do presidente Nicolás Márquez, denunciado por violência doméstica e abuso sexual da sua própria filha – crime pelo qual foi absolvido –, que gerou comoção pelo descaramento com que abundou em comentários homofóbicos e discriminatórios.

“Estamos numa encruzilhada face a uma grave perturbação até do senso comum quotidiano, numa circunstância que parece saída do esoterismo, nas suas formas e na sua incoerência linguística”, reflete a historiadora. “Há uma malha ideológica alimentada pela intolerância, aquilo a que culturalmente chamamos fascismo, embora não tenha todas as propriedades, e é por isso que temos de inventar uma categoria. Não é certamente liberal.

 

Ódio transnacional

As correntes de extrema-direita que inoculam no poder narrativas reacionárias com as quais se transmitem estereótipos negativos tiveram como principais exemplos Donald Trump (2017-2021) nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro (2019-2023) no Brasil.

Neste último país, em 2019, veio à tona a existência de um “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto, sede do poder executivo em Brasília, onde uma equipe de funcionários públicos liderada por um dos filhos do então presidente se encarregava de espalhar notícias falsas nos meios de comunicação social e nas redes sociais.

Em plena campanha eleitoral, na corrida para a eleição que seria vencida pelo atual presidente, Lula da Silva, ocorreram três crimes políticos.

Em julho, o guarda municipal e tesoureiro do Partido dos Trabalhadores (PT), Marcelo Arruda, foi morto a tiros na sua própria festa de aniversário por um agente penitenciário, Jorge José Guaranho, que invadiu a festa em Foz do Iguaçu, cidade na fronteira com a Argentina e o Paraguai, aos gritos de “Aqui somos do Bolsonaro!

Em setembro, na reta final das eleições, Rafael Silva de Oliveira, de 24 anos, matou à facada um colega de trabalho, Benedito Cardoso dos Santos, de 44 anos, e depois tentou decapitá-lo com um machado, numa zona rural do município de Confresa, no Estado do Mato Grosso, no nordeste do país.

Poucos dias depois, outro homem de 39 anos, Antonio Lima, foi morto a facadas num bar no estado do Ceará (nordeste) por se identificar como eleitor de Lula.

Para além da retórica negacionista, ensaiada vezes sem conta por Bolsonaro para se dissociar destes crimes, há a estigmatização de certos grupos. Na sua segunda corrida à presidência, Trump referiu-se no mês passado aos imigrantes que estão em situação irregular no seu país como “animais” e “não humanos”.

Os riscos de violência política nos EUA foram evidenciados em janeiro de 2021, quando manifestantes pró-Trump invadiram o Capitólio dos EUA quando o Congresso estava prestes a ratificar a vitória do então presidente eleito Joe Biden.

Em abril, cinco mulheres trans testemunharam num julgamento de crimes contra a humanidade na Argentina. A estas vozes juntou-se a de Valeria del Mar Ramirez, a primeira pessoa trans a testemunhar sobre a sua experiência durante a última ditadura.

 

Futuro efémero

Aos 84 anos, Barrancos acredita que o aparente derrocamento do sector público será temporário, e que é até provável autofagocitar-se, pois é demasiado delirante para durar.

“Se há uma coisa que a Argentina teve, foram passagens tremendamente dolorosas e saídas bem-sucedidas e recuperadoras, no sentido de recuperar uma ideia que é trans-histórica, que é a de que a justiça social é um bem extraordinário”, assume.

Do seu ponto de vista, Milei tem um delírio faraónico, pelo qual cedeu o governo aos grupos de poder concentrado. São estes tentáculos económicos que estão por detrás dos dois grandes projetos do Governo: um decreto de necessidade e urgência que desregulamenta vastos sectores da economia e a Lei de Bases. Esta legislação, atualmente em discussão no Senado, permite a privatização de empresas públicas, delega poderes legislativos no Presidente e promove um regime de investimento questionável para as grandes empresas, além de incluir uma reforma laboral e fiscal regressiva.

A historiadora observa indícios de que a sociedade está cada vez mais tensa, como o demonstram as duas greves gerais que o atual Governo enfrentou nos seus cinco meses de mandato e a grande manifestação de abril em defesa da universidade pública, a maior dos últimos anos.

“Milei finge que governa, mas na realidade reina numa situação distópica, exacerbadamente messiânica. Temos de lhe dizer que está nu. Eppur si muove. Ele está a mexer-se e as águas vão ficar cada vez mais agitadas na medida em que ele quiser avançar com este disparate”, conclui Barrancos.

Assembleias de identidades lésbicas e feministas de todo o país mobilizaram-se na última sexta-feira, no Dia Internacional contra a Homofobia, Bifobia e Transfobia, para dar visibilidade ao crime de ódio de Barracas. A convocatória foi alargada às cidades de Madrid, Barcelona e Valência, num sinal de que o clamor por justiça pelo ataque às quatro mulheres argentinas ultrapassou fronteiras.

Texto publicado originalmente no El Salto. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.