POR TARIQ ALI
Artigo publicado no blog Sidecar
Via Esquerda.net
Os inspetores da AIEA sabem muito bem que não existem armas nucleares. Têm agido simplesmente como espiões voluntários dos EUA e de Israel, fornecendo retratos falados dos principais cientistas que agora foram mortos.
A expansão da guerra da Palestina para o Irã, que começou a 13 de junho, denota uma obsessão israelita que persiste há quatro décadas. Enquanto a administração Trump negociava de má fé com o Irã sobre o seu programa nuclear, o regime israelita aproveitou um intervalo para bombardear Teerã, assassinando cientistas de renome, um general de alta patente e outros funcionários, alguns deles envolvidos nas conversações. Após alguns desmentidos pouco convincentes, Trump admitiu que os EUA tinham sido informados do ataque com antecedência. Agora o Ocidente está a apoiar a última investida de Israel, apesar do que Tulsi Gabbard, a Diretora da Inteligência Nacional nomeada por Trump, disse ainda em 25 de março: “A Comunidade de Inteligência continua a considerar que o Irão não está a construir uma arma nuclear e que o Líder Supremo Khamenei não autorizou o programa de armas nucleares que suspendeu em 2003”.
Os inspetores da AIEA sabem muito bem que não existem armas nucleares. Têm agido simplesmente como espiões voluntários dos EUA e de Israel, fornecendo retratos falados dos principais cientistas que agora foram mortos. O Irã apercebeu-se tardiamente de que era inútil deixá-los entrar no país e foi elaborada uma proposta de lei parlamentar para os expulsar. Os dirigentes do país não tinham nada a ganhar com o sacrifício desta parte da sua soberania, mas agarraram-se à meia esperança e à meia crença de que, se fizessem o que os americanos queriam, poderiam conseguir o levantamento das sanções e uma paz garantida pelos EUA.
Deveriam ter aprendido o contrário com a sua própria experiência histórica. O governo eleito do Irã foi derrubado com a ajuda secreta dos anglo-americanos em 1953 e a sua oposição secular foi destruída. Após um quarto de século de ditadura apoiada pelo Ocidente, a dinastia Pahlavi foi finalmente derrubada. Mas um ano após a Revolução de 1979, o Ocidente - bem como a Arábia Saudita e o Kuwait - financiou o Iraque para iniciar uma guerra contra o Irão e derrubar o novo regime. A guerra durou oito anos e causou a morte de meio milhão de pessoas, sobretudo do lado iraniano. Centenas de mísseis iraquianos atingiram cidades iranianas e alvos económicos, especialmente a indústria petrolífera. Na fase final da guerra, os Estados Unidos destruíram quase metade da marinha iraniana no Golfo e, para não variar, abateram um avião civil de passageiros. A Grã-Bretanha ajudou fielmente a encobrir os factos.
Desde então, a política externa da República Islâmica sempre colocou a sobrevivência do regime no seu centro. Durante a guerra Irã-Iraque, os clérigos não hesitaram em comprar armas aos seus inimigos declarados, incluindo Israel. A sua solidariedade com as forças antagonistas tem sido fragmentária e oportunista, desprovida de qualquer estratégia anti-imperialista coerente, exceto na sua solitária mas crucial qualidade de defensora dos direitos dos palestinianos, numa região onde todos os governos árabes capitularam perante a hegemonia. No dia 15 de junho, pouco depois do ataque israelita, assistiu-se a uma notável procissão de mais de cinquenta burros em Gaza, com os animais enfeitados com grinaldas e cobertos com mantos de seda e cetim; à medida que eram conduzidos pela rua, as crianças acariciavam-nos com genuíno afeto. Porquê? “Porque”, explicou o organizador, “eles têm-nos ajudado mais do que todos os Estados árabes juntos”.
Depois das invasões do Afeganistão e do Iraque lideradas pelos EUA, os iranianos esperavam sem dúvida que a colaboração com Washington - abrindo caminho para o derrube de Saddam Hussein e do Mullah Omar - lhes trouxesse algum alívio. Em muitos aspetos, a “Guerra contra o Terror” não foi uma má época para a República Islâmica. A sua posição na região subiu juntamente com os preços do petróleo, os seus inimigos em Bagdade e Cabul foram brutalmente afastados e os grupos xiitas que apoiava desde 1979 foram levados ao poder no vizinho Iraque. É difícil imaginar que nem o politburo de Bush (Cheney, Rumsfeld, Rice) nem os seus conselheiros árabes não oficiais baseados nos EUA (Kanaan Makiya, Fouad Ajmi) pudessem ter previsto este desfecho, mas parece ter sido esse o caso. O primeiro estrangeiro não ocidental a visitar a Zona Verde como convidado de honra foi o Presidente Ahmedinejad.
Tanto os nacionalistas sunitas como os xiitas juntaram-se para se oporem às forças de ocupação, disparando rockets e morteiros contra a embaixada dos EUA. Foi a intervenção do Estado iraniano que dividiu esta oposição, assegurando que um movimento de resistência iraquiano unido se transformasse numa guerra civil fútil e destrutiva. Muqtada al-Sadr, um dos principais líderes xiitas no Iraque, ficou chocado com as atrocidades cometidas em Fallujah e liderou uma série de revoltas populares contra a coligação americana. No auge do conflito, foi convidado a visitar o Irão e acabou por ficar - ou ser mantido lá? - durante os quatro anos seguintes. A subsequente entrada do Estado Islâmico no campo de batalha reforçou esta aliança tática entre os EUA e o Irão, com o Pentágono a fornecer apoio aéreo para ajudar os ataques levados a cabo pelos 60.000 militantes xiitas no terreno.
A maioria destas forças estava sob o comando indireto de Qassem Soleimani, que comunicava regularmente com o General David Petraeus. Soleimani era um estratega dotado, mas permeável à lisonja, especialmente do Grande Satã. Foi o principal pensador por detrás das táticas expansionistas utilizadas por Teerã após o 11 de setembro, mas a sua tendência para se vangloriar perante os seus homólogos estadunidenses afastou alguns deles, especialmente quando explicou com precisão como os iranianos tinham previsto e explorado a maioria dos erros dos EUA na região. A descrição de Spencer Ackerman soa a verdade:
Era suficientemente pragmático para cooperar com Washington quando isso convinha aos interesses iranianos, como foi o caso da destruição do Califado, e estava preparado para entrar em conflito com Washington quando isso convinha aos interesses iranianos, como foi o caso do apoio de Soleimani a Bashar el Assad, na Síria, ou anteriormente, com as modificações de IEDs que mataram centenas de tropas estadunidenses e mutilaram outras. A impunidade de Soleimani enfureceu o Estado de Segurança e a direita. O seu sucesso doeu.
No entanto, ao mesmo tempo que o poder regional do Irã aumentava, as tensões sociais no país cresciam. A revolução tinha suscitado esperanças no início, mas a guerra que se seguiu com o Iraque foi debilitante. Em parte por esta razão, o Irão assumiu uma posição mais dura em relação à questão nuclear, afirmando o seu direito soberano de enriquecer urânio. A nível interno, este facto foi visto como um meio de congregar a população. No plano externo, tem um objetivo defensivo perfeitamente lógico: o país encontrava-se numa posição vulnerável, cercado por Estados atómicos (Índia, Paquistão, China, Rússia, Israel), bem como por uma série de bases americanas com reservas nucleares potenciais ou reais no Qatar, Iraque, Turquia, Uzbequistão e Afeganistão. Porta-aviões e submarinos dos Estados Unidos com armas nucleares patrulham as águas ao largo da sua costa sul.
Totalmente esquecido no Ocidente é o facto de o programa nuclear ter sido uma iniciativa tomada pelo Xá na década de 1970 com o apoio dos EUA. Uma das empresas envolvidas era um feudo de Dick Cheney, o corrupto vice-presidente de Bush. Khomeini suspendeu o projeto quando chegou ao poder, considerando-o anti-islâmico. Mais tarde, porém, cedeu e as operações recomeçaram. Quando o programa se intensificou em meados da década de 2000, o Irã e o seu líder supremo descobriram que as suas tentativas de apaziguar Washington não tinham dado em nada. Continuavam a estar na mira do Ocidente. A Casa Branca de Bush deu a impressão de que um ataque direto dos Estados Unidos contra o Irão, ou um ataque através do seu braço direito regional, Israel, poderia estar para breve. Os israelitas, por seu lado, opuseram-se veementemente a que alguém desafiasse o seu monopólio nuclear no Médio Oriente. O líder do Irã foi descrito pelo governo israelita e pelos seus fiéis meios de comunicação social como um “psicopata” e um “novo Hitler”. Foi uma crise fabricada à pressa, do tipo em que o Ocidente se tornou especialista. A hipocrisia era de cortar a respiração. Os EUA possuíam armas nucleares, tal como o Reino Unido, a França e Israel; no entanto, a procura, por parte do Irã, da tecnologia necessária para o grau mais baixo de auto-defesa nuclear provocou pânico moral.
Na corrida das potências europeias para melhorar a sua posição junto de Washington, após a invasão do Iraque, a França, a Alemanha e a Grã-Bretanha quiseram provar o seu valor, obrigando Teerã a aceitar limites rigorosos à sua atividade nuclear. O regime de Khatami capitulou imediatamente, imaginando que estava realmente a ser convidado a sair do isolamento. Em dezembro de 2003, assinou o “Protocolo Adicional” exigido pelo EU3, concordando com uma “suspensão voluntária” do direito ao enriquecimento garantido pelo Tratado de Não-Proliferação. Mais uma vez, não fez qualquer diferença. Em poucos meses, a AIEA condenou-os por não o terem ratificado e Israel alardeava a sua intenção de “destruir Natanz”. No verão de 2004, uma grande maioria bipartidária no Congresso dos EUA aprovou uma resolução a favor de “todas as medidas apropriadas” para impedir um programa de armamento iraniano e especulou-se sobre uma “surpresa de outubro” no período que antecedeu as eleições desse ano.
Na altura, argumentei no Guardian que “enfrentar os inimigos que se levantam contra o Irão exige uma estratégia inteligente e de longo alcance - não o atual chorrilho de oportunismo e manobras, determinado pelos interesses imediatos dos clérigos”. Vários intelectuais liberais e socialistas iranianos escreveram de Teerã para expressar um forte acordo, especialmente com a minha conclusão:
A abertura do caminho para o derrube dos regimes iraquiano Ba'ath e afegão Taliban e o apoio às ocupações americanas não trouxeram descanso. O subsecretário de Estado dos EUA falou em “aumentar a pressão”. O ministro da defesa israelita Shaul Mofaz afirmou que “Israel não poderá aceitar uma capacidade nuclear iraniana e tem de ter a capacidade de se defender com tudo o que isso implica, e estamos a preparar-nos”. Hillary Clinton acusou a administração Bush de “minimizar a ameaça iraniana” e apelou à pressão sobre a Rússia e a China para imporem sanções a Teerão. Chirac falou em utilizar as armas nucleares francesas contra um tal “Estado pária”. Talvez se trate apenas de foguetório de alta intensidade, com o objetivo de assustar Teerão até à submissão. É pouco provável que a intimidação tenha êxito. Irá então o Ocidente embarcar numa nova guerra?
A política externa dos EUA foi adequadamente resumida pela declaração lacónica de Bush em 2003, “se não estão connosco, estão contra nós”. A Grã-Bretanha, o Canadá, Israel, a Arábia Saudita e a Austrália não precisaram de ser convencidos. Até hoje, o Iraque não regressou à estabilidade social e económica que tinha antes da “mudança de regime”. Mais de um milhão de mortos e cinco milhões de órfãos foi o preço que o país foi obrigado a pagar depois de o seu governo ter sido falsamente acusado de possuir armas de destruição maciça. Atualmente, as empresas ocidentais sugam a maior parte do petróleo iraquiano.
Muitos dos que conduziram a guerra do Iraque arrependeram-se dela, mas isso não impediu os estrategas imperiais de prosseguirem de forma semelhante noutros locais. Em Gaza, o horror continua. Bombas, mortes, fome e uma insensibilidade que evoca a forma como a Wehrmacht tratava o Untermensch eslavo. O jornal israelita Haaretz publicou um editorial, mais duro do que qualquer coisa que tenha aparecido nos diários liberais da zona euro-atlântica, que ataca a patética decisão dos líderes europeus de sancionar apenas os dois fascistas do governo de Netanyahu e, em vez disso, exige sanções totais contra o próprio Israel. É isto que os verdadeiros amigos de Israel deveriam exigir, em vez de encorajarem a sua política kamikaze e as suas campanhas genocidas.
Após o sucesso quase total de Israel no arrasamento da Faixa de Gaza e no extermínio de dezenas de milhares da sua população, o governo de Netanyahu sentiu claramente que era altura de alargar a guerra a outros alvos. Em primeiro lugar, a campanha das Forças de Defesa Israelitas contra o Hezbollah, que matou grande parte da sua liderança e deixou a organização muito enfraquecida, colocando o Líbano de rastos. (Não é de admirar que os jovens libaneses tenham subido aos terraços dos seus telhados para aplaudir os drones iranianos). Depois veio a Síria, onde Israel lançou múltiplos ataques sem sequer fingir que se tratava de auto-defesa. Em colaboração com a Turquia, membro da NATO, e com os remanescentes do aparelho baathista, Israel ajudou a instalar um governo fantoche sob a direção de um lacaio dos EUA bem treinado, o antigo operacional da Al-Qaeda Jolani.
O palco estava agora montado para o ataque ao Irã. Como sempre, os dois pesos e duas medidas do Ocidente estão em ação quando Israel está envolvido. Israel não aderiu ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, não assinou a Convenção sobre Armas Biológicas e a Convenção de Otava, não ratificou a Convenção sobre Armas Químicas e há décadas que desrespeita o direito internacional e as resoluções da ONU, tendo sido emitidos mandados de captura do TIJ contra Netanyahu e Gallant por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, para além de uma investigação de genocídio em curso. É assim que se parece um Estado pária.
Os dois países estão atualmente a comunicar através de drones, F35s e mísseis. Tanto Teerão como Telavive foram atingidos. O objetivo israelita declarado de destruir os reactores nucleares não foi cumprido e a afirmação de Netanyahu de que irá provocar uma mudança de regime produziu o efeito contrário. Mulheres sem véu têm-se manifestado nas ruas, gritando “Arranjem uma bomba atómica”. Uma delas disse a um jornalista: "No parlamento, estão a discutir o encerramento do Estreito de Ormuz. Não há necessidade de discutir. Basta fechá-lo". Trump está a insistir que a guerra só pode terminar quando Teerã se render completamente. Muitos iranianos acreditam agora que as recentes negociações nucleares foram sempre uma farsa. Em 2020, Trump usou tácticas semelhantes para levar a cabo o assassinato de Soleimani, persuadindo o primeiro-ministro iraquiano a agir como mediador nas conversações EUA-Irão, de modo a atrair o general para Bagdade. Até agora, os iranianos têm resistido ao ataque. O país que precisa urgentemente de uma mudança de regime é Israel..