Por Susanna de Guio, no El Salto | Tradução: Rôney Rodrigues
Campo e cidade novamente se articulam para enfrentar oligarquias e governo ilegítimo. Camponeses marcham a Lima. Exigem novas eleições e justiça aos mortos pela repressão. País vive convulsão política. Próximos dias serão decisivos
Um novo ciclo de protestos parece começar no Peru. Neste 19/7, dezenas de milhares de manifestantes tomaram as ruas de Lima, exigindo, sobretudo, a destituição da presidente ilegítima Dina Baluarte, eleições para renovar o Executivo e o Congresso, nova Constituição e justiça para as 49 pessoas assassinadas durante os protestos de dezembro a fevereiro. Caravanas de camponeses, de várias regiões e províncias, como mostra o Nodal, rumam em direção à capital do país, sob a expectativa de promover uma “terceira tomada de Lima”. O Ministério do Interior implantou postos policiais para evitar a chegada a Lima de pessoas “vinculadas a organizações delinquentes”. Em 15/7, Baluarte anunciou que está descartada a possibilidade de adiantar as eleições, visando extender seu mandato até 2026.
O Peru voltou a se mobilizar neste 19 de julho pela primeira vez desde os protestos ocorridos entre dezembro e fevereiro em todo o país, após a destituição do presidente Pedro Castillo. As grandes marchas em Lima e em 59 províncias do país voltaram novamente a exigir algumas reivindicações claras e comuns: a renúncia de Dina Boluarte e o pedido de justiça e reparação para as vítimas dos massacres que ainda permanecem impunes.
A “terceira tomada de Lima” estava sendo preparada há meses com delegações organizadas para viajar à capital, principalmente das regiões andinas, mas finalmente as mobilizações também foram realizadas em muitas cidades como Cuzco, Apurímac, Puno, Ayacucho, Arequipa, Huancayo e Huancavelica, onde a polícia começou cedo a dispersar os manifestantes com gás lacrimogêneo.
Em Lima, as delegações se reuniram na Praça 2 de Maio à tarde, chegando das periferias norte, sul e leste da cidade para marchar em direção ao Palácio da Justiça. O bloqueio do percurso com barricadas não permitiu o avanço e a população seguiu pela avenida Abancay em direção ao Congresso, onde a polícia reprimiu os manifestantes dividindo a marcha em duas, que voltaria a se concentrar no final do dia na praça San Martín.
Segundo dados da Ouvidoria, houve oito feridos, dois policiais e seis manifestantes, entre eles dois jornalistas. Números sugerem uma atuação diferente das forças de segurança em relação ao que aconteceu no ciclo anterior de protestos, onde a repressão foi brutal, 49 pessoas foram mortas por armas de fogo, houve mais de mil feridos, detentos que ainda sem julgamento e o registro de inúmeras violações de direitos humanos.
Para todas essas vítimas que ainda esperam por justiça, a principal palavra de ordem que se ouviu durante a mobilização é: “o sangue derramado jamais será esquecido” junto com o canto “Dina, assassina, o povo te repudia”, mas o protesto também traz consigo uma série de outras reivindicações que respondem à variada composição social dos que aderiram à marcha. Há grupos que pedem a libertação de Pedro Castillo e outros com o lema “que saiam todos”; muitos pedem o fechamento do Congresso e novas eleições, ou em outros casos uma Assembleia para redigir uma nova Constituição. Entre os cartazes nas ruas também se destacavam a reivindicação por melhores salários e a saída das tropas militares dos Estados Unidos que treinam as Forças Armadas do Peru.
Preso desde 7 de dezembro, Pedro Castillo continua se considerando o presidente legal do Peru. Aqui você pode ler uma entrevista feita El Salto com o presidente destituído. Castillo exige um processo constituinte para seu país e denuncia a repressão de Dina Boluarte.
Além dos coordenadores territoriais das províncias e das associações de familiares das vítimas, numerosas organizações sindicais, grupos da capital como as redes feministas e LGBTIQ, trabalhadores da cultura, estudantes e até alguns representantes de partidos políticos progressistas como Peru Libre e Nuevo Peru participaram desta terceira tomada de Lima. A Universidad Nacional Mayor de San Marcos — que em janeiro foi invadida por um contingente policial com tanques para receber manifestantes no campus — nesta ocasião suspendeu suas atividades presenciais, mas na manhã desta sexta-feira havia pichações apoiando os protestos e contra o governo. Também em Cajamarca e Huancavelica os estudantes ingressaram na universidade aderindo ao convocatória.
No início de julho, a Central Única de Rondas Campesinas do Perú (Cunarc) previa a chega de 30 mil pessoas a Lima, e as expectativas foram cumpridas: o Ministério do Interior relatou 21 mil participantes e a Coordenadoria Nacional Unitária de Luta do Perú (CNULP) falava em 100 mil pessoas. As manifestações transcorreram de forma pacífica, apesar da campanha de medo instalada pelas instituições e pela mídia contra possíveis atos de vandalismo e de violência. A própria presidente Dina Boluarte contribuiu para isso: após o encontro bilateral com o presidente do Equador, Guillermo Lasso, em junho, ela lançou a polêmica pergunta “quantas mortes mais eles querem?”, anunciando assim mais repressão como única resposta ao legítimo direito ao protesto social.
Aguardando o dia 19 de julho, a polícia peruana implementou medidas de segurança desproporcionais na capital, como o destacamento de 24 mil agentes ou barreiras policiais nos principais acessos a Lima, identificando os peruanos que entravam das regiões como se fossem estrangeiros em seu próprio país. Além disso, na última sexta-feira as forças policiais formaram batalhões pelas avenidas da capital como “ensaio” para o desfile cívico-militar durante as Festas Nacionais, nos dias 28 e 29 de julho.
Além disso, continua o “terruqueo” por parte de diferentes instituições e meios de comunicação, uma prática que consiste em rotular como terrorista qualquer expressão de protesto social usando o fantasma do Sendero Luminoso, apesar de esta organização ter sido derrotada na década de 1990. Por exemplo, o chefe da Direcção contra o Terrorismo (Dircote) José Zavala assegurou que o Sendero Luminoso está presente em todo o país e que a alteração da Constituição é um pedido que parte deles.
Por outro lado, em 11 de julho, o governo teve que demitir o vice-ministro da Interculturalidade, Juan Reátegui, depois que ele se reuniu com o grupo extremista de direita La Resistencia, ligado ao fujimorismo e já protagonista de ações violentas contra jornalistas, ONGs e grupos de esquerda.
Enquanto isso, as últimas pesquisas do IEP de junho mostram um governo e um Congresso sem legitimidade: 80% da população desaprova a gestão de Boluarte; este é o pior índice desde que assumiu, enquanto a reprovação do Legislativo chega a 91% e a aprovação permanece em 6%.
Embora a mobilização de 19 de julho não tenha tido características nem dimensões para poder influenciar as decisões de um Executivo surdo às suas reivindicações, o Defensor Público Josué Gutierrez Condor referiu-se ao dia das marchas, saudando “a atitude pacífica de todos os cidadãos que ontem se mobilizaram de forma cívica e altiva na sua grande maioria, e manifestaram as suas reivindicações” acrescentando que agora cabe ao Executivo e ao Legislativo atendê-los e procurar uma abordagem.
“Isso está indo de menos para mais”, explicou Jaime Borda, secretário-executivo da Red Muqui, que promove os direitos das comunidades e populações afetadas pela mineração nas regiões andinas do Peru. “Se a convocação para o dia 19 é ampla, significa que outras mobilizações podem acontecer e que a reivindicação vai se espalhar”.
Com efeito, a Coordenação Nacional Unitária de Luta, composta por sindicatos e organizações sociais, já anunciou uma jornadas de mobilização estão marcadas para os feriados nacionais, de 27 a 29 de julho. Agora Lima e as principais províncias estão em alerta para ampliar as reivindicações que já estão há seis meses sem qualquer tipo de resposta.