Via Brasil de Fato
Especialista alerta que saída de Dina Boluarte não encerra crise, e manifestações populares devem seguir no país.
Após quase três anos de um governo sem apoio popular, a presidente peruana Dina Boluarte foi destituída na madrugada de sexta-feira (10). A medida ocorreu devido a uma reviravolta repentina das forças políticas que até então haviam sido o único suporte dela. O Congresso aprovou – em uma sessão maratona, com 122 votos a favor – uma moção de “vacância presidencial” por “incapacidade moral permanente”.
A decisão foi tomada – a menos de seis meses das próximas eleições gerais – pelo mesmo Congresso que atualmente registra os níveis mais altos de desprestígio no país, com a reprovação atingindo nove em cada dez peruanos. Tratavam-se dos mesmos parlamentares que, em pelo menos sete ocasiões anteriores, haviam protegido Boluarte frente a graves acusações, que iam desde enriquecimento ilícito e corrupção até sérias violações de direitos humanos.
Os votos decisivos para a queda da presidente vieram justamente de antigos aliados: o partido de extrema direita Fuerza Popular, liderado por Keiko Fujimori, e a Alianza para el Progreso, um grupo “fisiológico”, sem ideologia definida, dedicado a negócios dentro do Legislativo e liderado por César Acuña Peralta. Ambas as bancadas, que até então sustentavam o governo, foram fundamentais para a destituição ao retirarem abruptamente o apoio.
Mandato marcado por crise e repressão
Boluarte assumiu a presidência após a destituição de Pedro Castillo, em dezembro de 2022. Os quase três anos de governo registraram uma impopularidade sem precedentes, com uma aprovação positiva que, no último ano, não ultrapassou 2%, e uma gestão marcada pela violenta repressão aos protestos que eclodiram no início do mandato, nos quais mais de 60 manifestantes foram assassinados.
A destituição dela é apenas mais um capítulo na espiral de crise política em que o Peru está mergulhado há anos. Apenas nos últimos nove anos, sete presidentes passaram pela Casa de Pizarro, palácio do governo peruano, sem que nenhum tenha conseguido completar um mandato constitucional.
Boluarte deixa o poder como uma das figuras presidenciais pior avaliadas do mundo. Dessa forma, a ex-presidente perdeu os privilégios que a protegiam perante a Justiça, ficando exposta a graves acusações de corrupção, como o chamado “Rolex Gate”, em que a imprensa revelou que ela usava relógios de luxo avaliados em até 14 mil dólares em eventos oficiais, sem explicar a origem.
Congresso desacreditado e novo presidente questionado
A destituição de Boluarte foi a forma encontrada pelo Congresso – profundamente corroído pela corrupção e desacreditado aos olhos da população – para tentar se reposicionar às vésperas das próximas eleições, desfazendo-se do elo mais frágil da cadeia: a Presidência.
O jornalista e analista político Jorge Ballón Artaza explica, em entrevista ao Brasil de Fato, que o “pacto de governabilidade” com setores da direita e da extrema direita que mantinha a presidente, liderados pelo fujimorismo, se quebrou como parte de um “cálculo político-eleitoral”.
“A decisão de destituir Boluarte foi, essencialmente, um cálculo político-eleitoral. Os setores que impulsionaram sua vacância foram os de Renovación Popular. A proposta desencadeou rapidamente um verdadeiro efeito dominó, e as forças políticas que até então sustentavam o governo – como Fuerza Popular e Alianza para el Progreso – decidiram largar a mão de Boluarte, que ficou sem nenhum apoio político e que nunca contou com apoio popular.”
Renovación Popular é um grupo liderado por Rafael López Aliaga, atual prefeito de Lima e figura de extrema direita alinhada ao movimento Maga (sigla para Make America Great Again, ou Torne a América Grande Novamente, em tradução livre para o português), do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Ballón Artaza detalha que, por não haver um vice-presidente em exercício, de acordo com o artigo 115 da Constituição Política, a chefia do Estado recai sobre o presidente do Congresso. Foi assim que José Enrique Jerí – um advogado de Lima, de 38 anos, que até poucos dias era um dos principais aliados de Boluarte – assumiu de forma relâmpago como novo chefe de Estado.
Jerí é, por si só, um exemplo do colapso do sistema político peruano. A chegada dele ao Congresso não se deu por eleição popular direta; ele assumiu como legislador em 2021, ocupando a vaga deixada após a inabilitação de Martín Vizcarra, que havia obtido apenas cerca de 11,6 mil votos. No entanto, conseguiu se consolidar graças à sua habilidade em articular acordos internos.
No início deste ano, foi apresentada contra ele uma denúncia formal por violência sexual. Segundo a denunciante, a agressão teria ocorrido durante as festas de Ano Novo em uma casa de campo em Canta, região noroeste de Lima. A denúncia indica que Jerí teria adulterado uma bebida alcoólica para deixar a vítima inconsciente e cometer o crime. Em decisão contestada e que gerou repercussão nacional, o procurador supremo Tomás Gálvez Villegas determinou o arquivamento da denúncia por falta de provas em agosto passado.
A essa acusação somam-se graves denúncias de enriquecimento ilícito, pois apenas entre 2023 e 2024 Jerí teria multiplicado o patrimônio, passando de menos de 100 mil soles declarados para mais de um milhão em apenas um ano.
“Triunfo parcial” e continuidade dos protestos
“Existe um profundo descontentamento na população, sobretudo pelo que representa Jerí. Percebe-se uma continuidade de um governo parlamentarista, já que a figura de Boluarte era tão fraca que, na realidade, se mostrava acessória ou meramente cosmética dentro do aparato de poder controlado pelo Congresso”, afirma Ballón Artaza.
Em um contexto em que o índice de rejeição da ex-presidente chega a 96% da população, o analista aponta que a destituição é percebida por muitos setores mobilizados como um “triunfo parcial” ou um “avanço incompleto”.
“Há tempos, amplos setores vêm exigindo que Boluarte deixe o poder; no entanto, considera-se um avanço incompleto porque a força que a sustentava – o Congresso da República – ainda permanece.”
Durante as massivas mobilizações do último mês, os cânticos mais repetidos foram: “Que se vão todos!”.
“Exigia-se a saída de Boluarte, mas também dos membros do Congresso. E o descontentamento se estende às forças policiais, a certos setores empresariais e aos meios de comunicação tradicionais. É provável que continuem ocorrendo manifestações populares. De fato, os chamados para as mobilizações do próximo 15 de outubro, denominadas a ‘Grande Marcha Nacional’, continuam vigentes”, conclui.